maio 14, 2016

........................ A LÓGICA INQUIETA de IOLANDA COSTA


Ilustrações:
GEORGIA O'KEEFFE

Professora licenciada em Filosofia, arte-educadora e especialista em História Regional, IOLANDA COSTA (n. em 1967, Itabuna, Bahia) estreou como poeta na antologia “Poetas Novos da Região Cacaueira”, em 1987. Em 2004, lançou seu primeiro livro individual, “Poemas Sem Nenhum Cuidado” (FICC) e, em 2009, “Amarelo Por Dentro”. No mesmo ano, participa das coletâneas “Poetas Brasileiros Contemporâneos” (CBJE), “Poesia de Corpo e Alma” (CBJE) e “O Que é Que a Bahia Tem” (Litteris).Foi convidada em 2010 para a Praça de Cordel e Poesia na 10ª Bienal do Livro da Bahia. No ano seguinte, integra a antologia “ENEBI (Encontro de Escritores Baianos Independentes) de Poesia & Prosa”

Escrito à flor da pele, seu livro mais recente, “Filosofia Líquida” (2012), procura desvendar a origem das coisas e das não-coisas, ampliando o repertório e as investigações literárias da poeta grapiúna.

Acredita que existem diferênças essenciais entre a poesia escrita por homens e a escrita por mulheres?

Essa questão nos leva à velha discussão sobre a existência de uma literatura feminina, tão amplamente polemizada nas últimas décadas e escassamente respondida. Acredito que, quando se escreve, o texto perde as marcas de gênero, mas isso implica a temática, a abordagem e a forma em que esse texto é construído. Mulheres escrevem sobre ciência e filosofia e devem escrever como cientistas e filósofas. Dispensar os estrogênios e os esgarços. E a mulher escritora o faz, sim, lúcida e racionalmente! Mesmo em poesia. Mesmo nessa expressão onde as metáforas e as subjetividades imperam, a poesia produzida pela mulher escritora não se veste mais de contemplação e fragilidade, como a caracterizaram. A mulher transgrediu, passionalizou-se, intrometeu-se em política e economia e dominou as métricas. 

Mas, em quê pode, essencialmente, diferir? Talvez sejam os elementos que configuram cada universo, suas experiências, suas individualidades... Há descrições de que a poesia masculina é mais vigorosa, objetiva e ordenada, em contraposição à feminina que, em inúmeras escritoras, se apresenta como descontínua, antirracionalista, confessional e romântica. Apolíneo e dionisíaco, em seus significados mais simbólicos. Não há o que temer. Os fluxos se amalgamam. Poderia jurar, se não soubesse, que o epifânico, subjetivo, metafórico, lírico, desvairado, inconsciente e visionário Manhã, de Giuseppe Ungaretti, criado em 1917, foi escrito por uma mulher.

Você é uma poeta extremamente intuitiva, que não planeja versos exaustivamente. Como é que eles surgem no seu cotidiano literário? 

Nunca soube explicar bem o meu processo criativo. Sinto-me intuitiva no momento em que estou lidando com as palavras, escrevendo-as. Parece que o ato de escrever, a minha letra, a caneta (sempre preta) e  o  espaço do papel  desdobram-se  e, energeticamente, atraem as palavras, enunciados completos e prontos ou entrecortados e vagos... E é exaustivo! Como nunca modifico o poema, no outro dia, transcorro horas arquitetendo-o, abrindo-lhe janelas e veios ou suprimindo, aqui e acolá, alguns delírios, até encontrar a imagem, o ritmo e a elegância pretendidos. É experimentação. É jogo. 

Escrever é exercício de sensibilidade e inteligência, mas também passei a vida inteira, enquanto dormia, ouvindo trechos de romances e poemas lidos em voz feminina (inconsciente) e, não raramente, uma palavra desconhecida me acordava. Em 1993 me sobressaltei com a palavra “antese”, quase gritada. Não sabia o seu significado, me lembrava tese, antítese, algo assim. Quando pesquisei o substantivo tive uma grata surpresa e, misticamente, correlacionei o termo com o símbolo rosacruciano da rosa (alma) e como uma resposta, a mim,  das minhas práticas meditativas.  Nessa labuta entre razão e psiquismo, estejamos inteiros e abertos ao verbo: “Céus, orvalhem!”.

Sempre levou sua poética à sério?

A essa inclinação pessoal, distorcida e melancólica de perceber o mundo, desde a infância e desdobrada até aqui, sim. Os escritos sempre foram consequência dessa sensibilidade. Eu escrevia compulsivamente dos onze aos vinte e dois e quando participamos da antologia Poetas Novos da Região Cacaueira(1987) eu apenas brincava e artesanava os poemas em meio a colagens, costuras, pinturas e ilustrações. Era quase fabril. Cheguei a editar alguns folhetos e, em eventos culturais, distribuía. (Sonhava com a minha cidade cheia de poemas escritos pelas ruas, bares, vendas, ônibus e praças). Tenho espaços de tempo longos entre uma publicação e outra, até agora. Sou dada a enjoar-me de tudo o que escrevo. Mas “a poética insiste, azul/ como anil dissolvido na água.” (Amarelo Por Dentro, 2009).

SE

O translúcido verso ido
erra a mão,
erra o frasco,
toma aspirina
e confunde chuva com aspargos.
Tivesse acertado a rima
levaria camomila pela rua,
sais para o lençol.
Um sol, um búzio, um esquadro,
barcarola repetida em teu ouvido.

Tem hábitos regulares de escrita?

Escrevo quando estou motivada ou quando o texto é “sob encomenda”. Durante o dia quase não tenho tempo e, ainda cansada, ludibrio esse tempo e adentro a madrugada, parceira silenciosa das escrevinhanças. Sabemos que a leitura de outros poetas  se consubstancia como um instrumento de trabalho imprescindível. Tenho a devoção regularíssima de ler poesia alheia todos os dias. Poesia não se  repete. Quem escreve precisa encontrar o seu timbre, o seu elemento identificável e suas influências e ler poesia, livro, texto, filme, imagem, escultura, dança, música fortalece a nossa estética.

Acha que escrever poesia pode ser ensinado?

Pode-se ensinar, sim. Daí as oficinas disso ou daquilo... Conheço pessoas que, por gostarem muito de poesia, se arremessaram  no jogo e acabaram  produzindo. Talvez, no começo,  seja assim para todos nós. Mas não basta, não é? Ser um bom escritor de poesia não é tarefa simples. Exige, independente de quaisquer conteúdo emocional, elaborações sintáticas inusitadas,  uso de metáforas e elementos que inaugurem uma nova realidade, afastando-se da rotina do coloquial. E isso não é fácil! Li, alguma vez, que o poeta é um fatalizado. Nasce-se ou descobre-se poeta, mesmo. Mas o transcurso deve ser de aperfeiçoamento: ensaios, rascunhos, leituras, recolhimentos.

O que pode dizer sobre a poesia grapiúna?

A poesia grapiúna está emoldurada e presa a um passado cacaueiro ou de representações cacaueiras. A distinção de alguns nomes esteve ligado, durante algumas décadas, à riqueza do cacau e às editorações proporcionadas a eles. À margem, muitos poetas logotipavam, incansavelmente, as suas quimeras e os seus assombros sem participarem do banquete. Algumas publicações esparsas de um ou outro e um esquecimento expresso pelo tempo. Transcorridos os anos, parte dessa poesia resiste, por sua qualidade, e é mencionada, superficialmente, nas escolas, ou estudadas, no ensino superior, em alguma disciplina do curso de Letras. Outros poetas consistentes que antecederam ao ouro do cacau, em Itabuna, como José Bastos, Plínio de Almeida e Firmino Rocha, já falecidos, tiveram,  há pouco tempo,  suas obras reeditadas pela Fundação Itabunense de Cultura. Uma ação muito bacana, mas absolutamente isolada e estéril (como são quase todas!) e que se repete por todo o país porque não conseguimos “trocar figurinhas” com o leitor, que ainda não nasceu. 


Não há políticas públicas para a leitura em nossa região! A educação desanda, frívola, regida pela banalidade televisiva e a violência. Mas tivemos, sim, bons poetas. Ternos, vigorosos, líricos, polêmicos, visionários, resistentes. E ainda temos! Não somos muitos, falamos línguas bem diferentes e não somos fortes. Alternativamente criamos projetos e nos agremiamos, vez ou outra, sob a égide do ser grapiúna (olha que merda!). Percebo que, por aqui, há uns cinco anos, os poetas têm reagido – editado, publicado, divulgado, postado. Mas falta-lhes o incentivo, a apropriação das suas obras pelas universidades, faculdades e escolas. Uma apropriação que poderia começar por uma aproximação, ao menos. 

Em agosto de 2012 comemorou-se, em Ilhéus, os cem anos de Jorge Amado e escritores e poetas regionais e de outros estados foram convidados a discorreram sobre  suas obras e recitarem os seus poemas. Não havia um único estudante na platéia, durante aquela semana, com exceção de uma turma do Ensino Médio noturno, acompanhada pela professora, visivelmente deslocada. Contudo, o poeta escreve. A despeito de títulos, publicações ou reconhecimentos, “escrevemos como quem rega girassóis” (Poemas Sem Nenhum Cuidado, 2004).

ACHADOS

ainda vão dar em festa
lúmen trinca fresta
todas as suas coisas escritas.
pressente o lago, a romã
a arché
e a chegada dos barcos
de velas sublinhadas
e tripulação inesperada.
conhece a página com o time aberto
ao escrevê-la inteira e sem resíduos.
hóstia e flor a destilar-se
em consoantes verbos, peregrinos.

Fale um pouco sobre o seu novo livro, “Filosofia Líquida".

O termo “líquida” remete-nos a Bauman, à fragilidade dos laços, à sociedade moderna em que tudo pode se desfazer. Mas a minha intenção foi a de abordar, numa linguagem poética, coloquial e liquefeita, os meus parcos estudos de Filosofia, ao longo dos anos (decidi pelo curso aos onze porque achava a palavra lindíssima e, me parecia ainda mais bonita a subjetividade do seu significado, expressa no Dicionário Prático Ilustrado” de meu pai, editado em 1958). A plaquete Filosofia Líquida” (Agora, 2012), composta de nove poemas, é uma amostra desse projeto. Os poemas trazem antigos e solidificados conceitos filosóficos que tento dissolver/liquefazer utilizando-me de prosaicos e contemporâneos enunciados e servindo-me de elementos do cotidiano para denunciar um sentimento ou  demonstrar crenças profundas. 

A ideia da plaquete, muito inspirada no nosso combativo e alternativo  Hélio Pitanga, atraiu outros poetas especialmente pelo baixo custo editorial, fazendo  surgir a Coleção Pedra Palavra (estamos no n° 7, sem contar essa primeira). Um pretexto, essa Coleção,  para reafirmamos  a poesia e acreditarmos na  espiritual e ambiciosa missão que a escritora Maria Carpi nos delega : “ser poeta para o grande milagre do diálogo amoroso da humanidade e da natureza”. Tentemos, pois!


antonio nahud e iolanda costa



5 comentários:

Conceição Portela disse...

vcs são maravilhosos...

Iolanda Costa disse...

Valeu, Antonio Nahud!

FL8 disse...

Que beleza de entrevista. Um sonho de juvenil: ver a cidade povoada de poesia. Outros grapiúnas possuem mesmíssimo sonho. Sonhemos juntos. Vem aí muita coisa boa que permite "trocar figurinhas com um leitor que não nasceu". Uni-vos.


Onde encontrar a Coleção Pedra Palavra?

Augusto B. Medeiros disse...

Muito bom conhecer!

Tania Caffe disse...

Lindo!