abril 10, 2019

.................................................................. ACONTECEU em VÊNUS



Deter-me aqui. Vislumbre um pouco a natura.
O rútilo blau do mar matutino,
a abóboda sem nódoa, a orla ocre. A tudo
embeleza a luz efusa.

Deter-me aqui. Me iluda um tal panorama
(verdade: estático, o vi fugaz);
um tal, e não, também aqui, as fantasmagorias,
as rememorações, a luxúria das miragens.

KONSTANTINOS KÁVAFIS
(Alexandria, Egito. 1863 - 1933)
MAR MATUTINO

Fotografias: HERBERT LIST
(Hamburgo, Alemanha, 1903 - 1975)


PELLA, MACEDONIA

Este é um tempo estranho. Optamos por uma máxima que diz que tudo já foi feito e qualquer tentativa de novidade é, portanto, inútil. A Terra segue explorada até seus confins, o oceano profundo está fora do nosso alcance e o infinito Universo é um desconhecido. O capitalismo é ambíguo, mas é o que se ajusta melhor aos nossos caprichos. Pobres haverá sempre, como disse Jesus Cristo, embora não falasse com resignação. Sair às ruas não é recomendável nesta época de terrorismo e violência. Por exemplo, a troca constante de tiros entre policiais e traficantes, nos morros do Rio de Janeiro, apavora. Para evitar esse tipo de infortúnio, existe a internet. Aquele que anseia alguma forma de experiência limite, que se inscreva em um reality show. E os artistas, que sejam fotografados e comentados entre as migalhas dos grandes do passado. Nenhum escultor superará Michelangelo. Nenhuma atriz de cinema terá a luminosidade da alemã Marlene Dietrich. Nenhum brasileiro escreverá um romance superior a  “Grande Sertão: Veredas”.

Existe a possibilidade de situações mágicas, em que o mundo e as pessoas se tornam sensatos, criativos e até solidários. O verão europeu, ou melhor, qualquer espécie de férias em qualquer lugar, é propícia para a felicidade. É revigorante ver rostos belos de diversas raças em um mesmo espaço. Como se Dionísio deixasse o exílio e fizesse a festa acompanhado por um cortejo de Sátiros, Silenos e Bacantes. Os estrangeiros nunca adivinham que venho do Brasil, acham que sou árabe ou cubano, como se fossem a mesma coisa. Em algumas situações, sinto-me exótico como Sophia Loren em Hollywood, mesmo não tendo olhos verdes. Visto batas brancas, verdes e violetas; pinto os olhos de henna como os gregos ou os mouros, uso brincos ciganos de prata e converso em outros idiomas sem evitar o sotaque baiano.


Em Pella, ao norte da Grécia, escrevo na cabine de uma furgoneta azul-turquesa chamada Vênus. Sam, o bonitão amigo ruivo neozelandês que conheci em uma estação de trem, prepara tortilla na churrasqueira ao lado do jardim de oliveiras. Ele nasceu numa fazenda de gado e agora corre mundo. Logo irá a Ibiza, eu a Chechaouén, no Marrocos. É um desses encontros cúmplices e fugazes tão comuns nos verões da juventude. Durante o dia, o sol brilhou com força e as rodovias estavam vazias. À noite, as Persêidas ou “As lágrimas de San Lorenzo”, uma chuva de meteoritos que acontece nesse momento do ano, acende o céu em milhares de pontos de luz. Situação exata para contatos do Terceiro Grau. Se eles sabem que eu sei que sou observado por que não se aproximam? Creio que tenho visto demais a filmes de ficção-científica. É meu gênero cinematográfico favorito.


Um cão magro brinca com um pedaço de pau, enquanto leio sobre a morte de Bernard Levin, brilhante comentarista do jornalismo britânico. Extravagante e contraditório, insolente e ao mesmo tempo inseguro, Levin era mais odiado que admirado. Na tevê, usava a técnica da agressividade intelectual para amedrontar seus entrevistados, desvendando verdades. Não era superficial e vaidoso como Jô Soares. Foi cuspido em público no intervalo de uma representação teatral e um entrevistado partiu a sua cara ao vivo por uma crítica especialmente cruel contra sua mulher. É da turma da escrita culta e afiada como uma lâmina, que inclui, entre outros, Ring Larder Jr., Budd Schulberg, H. L. Mencken, Dorothy Parker, Gore Vidal, Tom Wolfe ou os brasileiros Paulo Francis e Sérgio Augusto. Seus desafortunados imitadores chovem aos montes, e no nosso país Diogo Mainardi é a atual versão Frankenstein.


De um só gole viro a taça de vinho dos deuses, homenageando Levin. Pella é a terra natal de Alexandre Magno, o Grande. Convivi intimamente com ele lendo uma série de livros sobre a sua vida, inclusive o fabuloso “O Garoto Persa / The Persian Boy” (1972), de Mary Renault. Plutarco conta que o nascimento de Alexandre foi precedido por visões e prodígios. Teve lugar no mês de Hecatombeón, que os antigos macedônios chamavam Loo e nós agosto, e coincidiu com aquele incêndio que destruiu o famoso templo da deusa Artemís, em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Num pequeno museu local admirei a cabeça de Alexandre representado como um jovem efebo. Falta o nariz e é idêntica a outras que vi em museus e publicações. Alexandre foi um dos primeiros a se preocupar com a imagem pública, o marketing político que hoje acaba em grandes saques nos cofres públicos. Teve seus próprios escultores e pintores, que reproduziam sempre o mesmo retrato. Não mostra a um homem, e sim a um ideal, um deus. Nunca conheceremos sua aparência real, nem sequer aqui, no lugar em que nasceu.


O ator Colin Farrell interpreta o herói no filme do polêmico Oliver Stone. Quando perguntado se os amores homossexuais do bravo conquistador seriam abordados na história, ele respondeu: “Como pano de fundo, discretamente. A sexualidade de Alexandre não é fundamental para o nosso filme”. Como assim? Desde quando a sexualidade de um protagonista não é importante para o cinema norte-americano? Caso fosse mais uma das versões da vida de Cleópatra, ela faria sexo com Júlio César e morreria de amor por Marco Antônio. O recinto arqueológico de Pella, situado numa região sagrada e onde se coroavam e enterravam reis, está contaminado por abomináveis turistas, desses que levam os filhotes em carrinhos, comem sanduíches sintéticos e visitam monumentos sem nem mesmo saber quem foi Bucéfalo. Além disso, as ruínas não são nada extraordinárias, e do que um dia foi uma grande cidade, restam somente umas poucas colunas em pé.

Estar na furgoneta Vênus admirando estrelas cadentes na penumbra, ao lado de um belíssimo ruivo desnudo, comendo tortilla de batatas e pensando no jovem que se lançou a conquista do mundo e a uma vida apaixonada em apenas 32 anos de existência, é admirável e revigorante. O próprio ar vibra com o poder da imaginação. Vivo o sonho de uma noite de verão. No céu, as velozes Persêidas são flechas de fogo desenhando uma luminosa trajetória de poucos segundos. Entre 20 de julho e 20 de agosto, quando a Terra cruza a órbita do cometa Swift-Tuttle e suas partículas entram na atmosfera terrestre, essas populares estrelas cadentes da constelação de Perseu podem aparecer em toda parte. O melhor lugar para observá-las é qualquer lugar, quando mais escuro melhor. É um assombroso espetáculo de luz e cor! Portanto, caro leitor, não seria melhor desligar o computador e ir para o campo, as montanhas, uma praia deserta ou a Chapada Diamantina e enxergar a beleza da tempestade de estrelas cadentes?
  
Do livro SE um VIAJANTE numa ESPANHA de LORCA (2005)
Autor: ANTONIO NAHUD
Coimbra, Portugal.