fevereiro 23, 2024

..................................................... APENAS um CORAÇÃO GRAPIÚNA


 

“Uma parte do nosso ser, a verdadeira, é invisível como o ar que agita os ramos.”
 
“O homem é um castelo feito no ar. O que ele tem de não existente, é que lhe dá existência. O engano em que ele vive, é que lhe dá vida. Toda a realidade do seu corpo se firma na mentira da sua alma.”
TEIXEIRA de PASCOAES
(1877 – 1952. Amarante / Portugal)
Aforismos (1998)
 
Ilustrações:
GIANNI De CONNO
(1957. Milão / Itália)

 
 
Enxergo, com impiedosa nitidez, o antro leviano em que convivi. Circulando nessa sociedade onde os valores estão invertidos, numa experiência profunda e assustadora, perdi em algum descaminho a esperança na humanidade. Sem arrependimento pelas tolices cometidas; sem amargura, queixas ou melancolia, assumo que houve um rompimento imperativo. Terminei convencido da importância enigmática de dias e noites de uma solidão intelectual e espiritual. Quando não estou no trabalho profissional externo, cozinho comidas espartanas, cuido do jardim onde plantas sussurram, observo o voo de colibris, passeio com o cachorro brincalhão, vou à praia deserta, o vento dança na pele, os doces devaneios, as longas e aconchegantes horas de leituras, melodias de clássicos e jazz, vibrantes filmes antigos, e por fim, deitado na rede diante do crepúsculo ou um pouco de loucura nas redes sociais.
 
Costumo conversar com o divino, mas evito igrejas. O cristianismo como imagino não é servo de comunistas, é infinitamente puro, semelhante a Jesus e moralmente mais elevado do que tudo que vem do Vaticano. Acredito que estou verdadeiramente vivo e alerta. Noutra época, quase numa outra existência, fui um devasso romântico ou um libertino escravo do amor. Como se viver fosse uma diversão! Já não compartilho tais sensações. E o retorno ao passado não é debilidade, talvez seja uma fortaleza. Uma técnica que utilizo na redenção do presente, realizando o que a vida exige de mim, mesmo indo contra os padrões vigentes. Homem de transformações e mudanças, nunca ambicionei poder e glória. Pouco hábil na dialética, amadureci fiel a um relacionamento inato com a escrita, a beleza e a arte, sem utilizá-las inicialmente a objetivos práticos. Pressentia que nelas havia a salvação.
 
Durante toda uma suprema existência, procurei ser autêntico, com bons propósitos, o que me tornou invejado e popular. Morei na volúpia de diversas cidades e países excitantes. De Salvador a São Paulo, de Barcelona a Londres, de Sintra a Paris. Memórias flutuantes. A alma inquieta seguindo as trilhas da nostalgia. Recordo que constantemente havia convidados ou hóspedes comigo. Nessa ilusão ou descompromisso, fazia questão de promover festinhas, jantares, reuniões sociais surrealistas, noitadas cinéfilas. Casei, descasei, casei outras vezes, experimentei ligações ardentes. Era meio inocente, de um coração virtuoso, transbordando paixão e amizade. Tropecei, mas segui avante, afinal tenho vocação para a felicidade. A vida, como eu a entendo, não é fácil de traduzi-la em palavras, mas posso expressar que o sofrimento e a lamentação não são os refúgios mais sensatos.
 
Uma amizade repousa em permanecer cada um consciente da sua maneira de ser, aproximando-se do outro em liberdade, e concedendo-lhe lealdade. Minhas amizades eram um jogo. Tendiam demasiadamente para o vazio, o estético, a luxúria, o profano. Personagens escorregadios, totalmente obnubilados. Eu não conseguia captá-los densamente. Compreendi o valor do viver através do encontro espiritual. Com essa descoberta, renovei-me, suavizando os dilemas do coração. Verifiquei que jamais fui diabólico. Sem falsa modéstia, ajudo ao próximo na medida do possível. Abriguei imigrantes patrícios sem um tostão, hospedei turistas amigos de amigos, arranjei empregos para fracassados, fui responsável por casamentos duradouros, divulguei artistas amadores em jornais e programas de tevê, escrevi prefácios e críticas literárias incentivadoras. Com boa vontade, faria tudo outra vez.
 
Entre pressentimentos e franqueza total, contemplar a nossa face oculta faz parte da metamorfose necessária. Sempre tive o impulso para o “novo mundo”, o pessoal mais secreto, mesmo sabendo que não há retorno. O que ficou para trás não se repete. Por anos, a mediocridade instalou-se à minha volta, rastejando e crescendo em segredo. Em 2016-2017, desiludido, em plena e cruel depressão, o meu universo se transformou subitamente. Atordoado e desamparado, rompi as relações desconfiadas e artificiais, ao mesmo tempo em que os militantes de esquerda me riscaram do mapa. Um dia acordei sozinho. Eu era Robinson Crusoé sem Sexta-Feira. Vivendo de acordo como o coração dentro do peito me exige, de acordo com a dignidade dos sentimentos próprios mais sensíveis, distante da vivência “para fora”, para o manicômio social, para o estado, para a igreja, para os outros.
 
Numa espécie de reconciliação e entrega, não me sinto de modo algum desafortunado, insatisfeito ou perdido. Estou agradecido com o fato de o indizível poder se manifestar e ser vivido com cortesia. Em todos esses sete anos de lições misteriosas, não recuei, satisfazendo as exigências morais. Deixei de frequentar ambientes psicodélicos, festas sofisticadas, eventos artísticos. Não mais estampei meu retrato deslumbrado em colunas sociais nem dei entrevistas para jornais ou tevês. Decidi não escrever livros por algum tempo. Evito receber visitas e fazer visitas. Passei a ter relações sexuais somente com meu próprio corpo. Aprendi a desconfiar e a analisar. Nos primeiros meses, fantasmas camaradas fizeram falta, mas com o tempo se tornaram desnecessários. Foram esquecidos e perdidos na memória. Tenho me mantido incondicionalmente fiel ao meu ideal de renascimento e sem torturante sacrifício, sem fraquezas e aflições.
 
Coloquei-me a serviço da verdade. Se bem que para muitos uma vida de pensamentos, arte e isolamento pode parecer desperdiçada, meio sinistra. Mas não há no coração a necessidade de estar com a razão. Cada qual tem sua própria trama. Acredito que as boas intenções têm uma resistência muito mais segura e prolongada do que a maldade e a superficialidade. Sozinho, compreendi o insustentável panorama social neurótico e doente, viciado na vaidade, na indiferença, no oportunismo, na ingratidão, no delírio do dinheiro. Movidos por desconhecimento da essência do sagrado, por despreparo ético e pela repulsa ao que lhe parece emoções ultrapassadas, as pessoas perderam o rumo e o prumo. Nas profundezas da inconsciência, bajulam a dissimulação, a crueldade, o medo, os vícios, as intrigas, a inveja. De personalidades fracas e crédulas, são oprimidas por uma existência malévola e sem sentido.
 
No estado de alienação dos dias atuais, um homem (ou uma mulher) de bem sem dúvida é uma joia rara. Também é incomum um perfil autêntico, realmente merecedor de discípulos. Mas não é impossível. Talvez esse distanciamento de uma sociedade medíocre, possa ser fortalecido através da ligação com a natureza, com a religiosidade ou com o intelecto sem vaidades. Não creio na nossa política, nem nos nossos líderes religiosos, nem na nossa imprensa, nem nos nossos artistas, nem na nossa maneira de viver. Não participo dos ideais de nosso tempo, sou de outro século. Caí por motivos obscuros nessa confusa alienação dos tempos modernos. No entanto, entre hábitos líricos, e sonhos grapiúnas, levo o mistério de viver com aprendizado e simpatia. De bom humor e etérea consciência, administro um minúsculo e encantado reino do conhecimento humilde e da responsabilidade espiritual.
 
Nesse enigma, tornei-me um veterano num cálido caminho, tão impávido como se tivesse companhia, sem deixar-me enganar facilmente por tendências e espantos. E assim, sob um firmamento de claras estrelas, submeto-me aos pensamentos elevados, ao respeito próprio e ao contentamento artístico. Para finalizar, a explicação de Sérgio Buarque de Holanda sobre nossa aversão à reflexão e à solidão: “No ʻbrasileiro cordialʼ, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: ʻVosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiroʼ.”
 


fevereiro 04, 2024

......................... Os NATIVOS DIGITAIS: CORAÇÕES ROUBADOS

 

“Nada há que seja verdadeiramente livre nem suficientemente democrático. Não tenhamos ilusões, a internet não veio para salvar o mundo.”
JOSÉ SARAMAGO
(1922 – 2010. Azinhaga / Portugal)
 
“O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”
UMBERTO ECO
(1932 – 2016. Alexandria / Itália)
 
Ilustrações:
CARMI GRAU
(Berlim, Alemanha)

 
 
Estamos caminhando para um precipício cultural. Perdendo a noção do convívio social, da realidade, da religiosidade. A vida numa bolha virtual passou a parecer natural. Fanáticos, onde vamos estamos sempre atentos à telinha. Em restaurantes, festas, praias, piscinas, eventos ou viagens fazemos inúmeras selfies, viciados em likes e comentários. Nenhum artefato tem moldado tanto nossa vida diária quanto o smartphone. Graças às mídias sociais, estamos constantemente conectados uns com os outros, mas fisicamente distantes de amigos e familiares. Por certo, então, a dinâmica central da cultura digital ameaça tornar-nos pensadores superficiais e indivíduos solitários.
 
Toda a nossa atenção - sensorial, emocional e mental - nos deixa conectados. Somos bem informados, mas altamente suscetíveis a um sentimento de ansiedade e falta de propósito. Nesse cotidiano digital, raramente há sentimentos vivos, o que importa é a lacração virtual nos conduzindo a uma indiferença generalizada ao humano e ao natural. Nas redes sociais, como produtos em um supermercado on-line, exibimos roupas novas, caras e bocas de silicone, músculos, namoradas, filhos, netos, cães, gatos, carros etc. Feios, obesos, cafonas, matutos, tatuados, pouco importa, a meta são os “15 minutos de fama”, resultando na adoração aos insaciáveis deuses da tecnologia da informação.
 
Por mais que tentemos (em encontros e à mesa), não engamos colegas, cônjuges ou amigos quando fingimos estar com eles… olhando para uma tela. Quando pegamos o telefone, alguma tarefa, ou alguma pessoa, é passada para trás. Na verdade, nos tornamos menos capazes de estar presentes genuinamente a aqueles dignos da nossa atenção. O vício digital ocorre em abrangência global, em todas as faixas etárias e culturas (o Brasil é terceiro país com mais uso de tela, com média acima de 10 horas por dia) e tem impactos negativos na saúde física e mental, com estudos que mostram correlação com obesidade, insônia, depressão e ansiedade, entre outros males. Nesta era digital, o que consumimos em telas (smartphones, TVs, tablets e videogames) afeta performances acadêmica e profissional, dificulta o foco, a sustentação de atenção e o relacionamento social. Olhando para uma tela, consumindo mídia e anúncios, desprezamos o exercício da imaginação e atividades intelectuais e físicas.

 
A verdade é que todos nós somos viciados em telas em maior ou menor escala. Boa parte dos adultos que conheço são viciados em Twitter, Facebook, Instagram ou alguma outra rede social com mecânica de feed, likes e comentários. Crianças e adolescentes estão mais viciadas em videogames e feeds de vídeos curtos como Youtube e TikTok. Dentro de todo vício humano existe um mecanismo comum: a liberação de dopamina. Ela estimula o centro de prazer do cérebro que faz com que busquemos mais recompensa pela nossa ação e reforça o loop para criação de hábitos. É o que acontece quando recebemos um like ou um comentário no post, quando rimos de um vídeo no Youtube.
 
Quando esse loop atinge um nível que é difícil controlar, ele se torna um vício. O vício em telas ou internet tem efeito semelhante ao das drogas. A diferença é que as drogas podem ser os jogos, as compras compulsivas online, a pornografia, as séries, as redes sociais etc.Os efeitos colaterais desse vício digital são percebidos em diversos sintomas visíveis. Tem muitos sofrendo de Phubbing, ato de ignorar ou deixar de conversar por estar focado no celular. O termo vem das palavras phone (celular) e snubbing (esnobar). Esse comportamento compromete os relacionamentos. A depressão também é um sintoma. O deprimido busca nas redes sociais uma forma de escape, intensificando a doença.
 
As plataformas (redes sociais, jogos, streaming, etc.) são criadas para produzir prazer e habituar a usá-las com frequência. Vários mecanismos incentivam o navegante a voltar e a usar o máximo de tempo possível. Quanto maior a frequência, maior será o lucro com anúncios e informações sobre o comportamento do usuário. A tecnologia digital tem a dualidade de ser boa ou má, dependendo do uso que se faz. Quando se tem o coração roubado por ela, perdemos o controle, trocando o mundo real pelo virtual. Só o uso consciente evita o vício, garantindo que as telas sejam ferramentas de empoderamento e não de mazelas.