abril 01, 2021

........................................... GENNY XAVIER – EQUILÍBRIO DELICADO



“Tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever é o duplo de viver”
MARIA GABRIELA LLANSOL
(1931 – 2008. Lisboa / Portugal)
 
Fotografias: ANALU PRESTES
(1952. Santos, São Paulo)
 
 
Pesquisando meus antigos “Diários” lembrei-me do Maurice Blanchot de “Pena de Morte” (1991). Ele abre o livro falando assim: “Apenas nove palavras seriam necessárias para eu dizer tudo o que eu preciso dizer, mas eu sei que vou escrever, vou escrever esse livro, vou escrever outro, vou escrever outro e não vou encontrar as nove palavras.”. Procurei essas nove palavras para dizer neste ensaio por que amo GENNY XAVIER (1962. Caculé, Bahia), mas não consegui encontrá-las, necessitando de mais palavras para recordar um convívio amoroso e tantas outras coisas sobre uma querida escritora baiana.
 
Sei que nem sempre é nítida a fronteira entre divagação poética e sonho. Na poesia cristalina de GENNY XAVIER a matéria onírica cintila, circulando pelo interior do mais lúcido e pelos meandros dos sonhos. Sem auto complacência, às vezes com indignação, a poeta enfrenta literariamente o seu mal-estar no mundo. Nunca foi uma autora popular – talvez prefira ser entre-vista por quem com ela conversa, ou é lida, isto é, vista e descoberta entre pensamentos, visões, paisagens que surtam na conversa ou na leitura. Sendo assim, esta narrativa mergulha na imagem reveladora de uma escritora no seu percurso pessoal, nas motivações da sua escrita, nos seus sentimentos mais íntimos.

O horizonte são as origens. Escolhemos muitas origens ao longo da vida, e assim será aqui certamente. A escritora fez da vida a palavra, fez da palavra a vida, sem que isso resulte em intensidade menor para uma ou outra, pelo contrário: o que se irradia da sua escrita é, sobretudo, fulgor.
Isso se deve ao impulso místico que sempre a animou, sua concepção da escrita como um ato sagrado, uma oração: a ideia de que é por meio da escrita que se pode atingir o âmago do ser. Assim, parece escrever apenas para si mesma. Isso lhe deu a liberdade de pausas que rompem padrões e criam um ritmo emocional de beleza incomparável.
genny xavier

Eu amo GENNY XAVIER, porque na minha vida... – vou falar de um jeito muito particular – tem um antes e um depois. Existem algumas coisas que são acontecimentos, porque antes era de um jeito e depois foi de outro. Ela, pra mim, é um desses acontecimentos. Na época em que a encontrei eu já escrevia e estava enjoado da solidão literária, completamente enjoado! Eu disse: “Então é isso! Então existe outro alucinado perto de mim que escreve”. A poeta foi um valor literário, uma direção literária. Eu a guardei no coração para sempre.
 
Podemos facilmente imaginar o desespero que uma escritora sentiria ao encontrar-se exilada e impublicável na meia-idade. A história literária fornece exemplos abundantes de gente que, em situação semelhante, desistiu da arte e da vida. Só uma mulher de força incomum poderia ter transformado em virtudes essas carências, alimentando coragem para escrever. Teve que desistir da literatura como carreira; teve que aceitar que uma vida de trabalho intelectual pode estar destinada ao lixo - e apesar disso seguir em frente.

Nascida no sertão, mas tão grapiúna como as exuberantes bromélias que brotam em roças de cacau, foi adotada pela Região Cacaueira com apenas um ano de idade. De origem polonesa, alemã e espanhola, filha de um fiscal que morreu aos 49 anos, de infarto fulminante, e irmã mais nova de Jairo, Guilherme e Júlia Adelaide. Publicou pela primeira vez aos onze anos, em um informativo do colégio Ação Fraternal de Itabuna. O texto chamava-se “Meu Colégio”. Ainda garota, seduzida pelo erotismo de “Gabriela, Cravo e Canela”, do mestre Jorge Amado, escreveu o conto sensual “Amor Tarde”.
 
Sonhadora, passava horas escrevendo e imaginando tribos de índios, naves extraterrestres, viagens à lua. Ao confessar à tia professora Renildes Kruschewsky Sá que seria escritora, ouviu: “Que coisa boa, filha. É uma bonita profissão”. Essa resposta cúmplice foi uma espécie de bênção. Estudando no Colégio Divina Providência, tornou-se amiga de Ruy do Carmo Póvoas, escritor e professor de português. Denominada por ele como “A poeta das almas em desencanto”, talvez pela melancolia de seus versos, aos 13 anos publicou na “Tribuna do Cacau” seu primeiro poema, “O Começo do Fim”:
 
“No auge da minha inspiração
eu descobri a vida
e quando não mais podia tê-la
vivi sem ela
Caminheiro de uma estrada triste!”
 
Autora de versos de lirismo intimista enquanto coisa viva: que nasce, se expande e retrai. Tudo parece ser, na alternância constante da alegoria do processo de fazer nascer a escrita viva, bela e imprevisível. Incansável, divulgou sua íntima textura em inúmeros jornais, cadernos literários e blogues, ganhou prêmios e reconhecimento local. Valdelice Pinheiro, autora de “Pacto” (1977) e sua professora no curso de Letras, afirmou sobre a aluna: “Você é poeta, graças a Deus”, escrevendo um prefácio para um livro, nunca publicado, da então jovem poeta. Na ocasião, GENNY XAVIER lia Hermann Hesse, Máximo Gorki, Albert Camus e Gabriel Garcia Márquez. Já a sua poesia de linguagem simbólica suspirava por Vladimir Maiakovski, Drummond, Ferreira Gullar, Thiago de Mello, Florbela Espanca e Pablo Neruda.
 
Em 1981, através do Projeto de Atividades Culturais do Cacau (PACCE) e do CDC (Câmara de Desenvolvimento Cultural), lançou “Poemas”, numa esquina da Praça Adami, em Itabuna. Anos depois publicaria em três antologias e o cordel “Caso de Um Poeta Grapiúna que até Hoje Ninguém Sabe o Nome”. Morando numa das ruas mais populares do eufórico bairro do Pontalzinho, tem um dos quartos, no subsolo, reservado aos livros, desde autores regionais a clássicos da literatura mundial, com estantes e altas pilhas de livros, além de caixas de manuscritos e papeladas. Essa é uma das primeiras casas em que morou. Depois de habitar diversas outras, voltou ao ponto de origem.

Formada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), professora de redação e literatura, tem título de cidadania itabunense. Funcionária da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania (FICC), trabalha na promoção cultural desde o primeiro dia da entidade, há mais de duas décadas. Coordenou o programa “Letras que Voam” e na Prefeitura Municipal, na década de 1980, nos projetos “A Escola é de Todos” e “Memória Cultural da Cidade de Itabuna”. Leonina, reservada, algo tensa. Bonita, inteligente, tímida, um tanto romântica, tem como traços marcantes cabelos alourados cacheados e olhos verdes que nos fitam de uma maneira doce e incômoda.
 
Há muito rejeitou uma vida social. Seu lazer sobrevive no próprio lar: horas no computador, outras lendo, jogando paciência, fumando cigarros ou recebendo amigos para sessões de cinema, cafezinho e bate-papo. Sabe que devemos conversar com pessoas para as quais temos algo a dizer – isso mantém as coisas fluindo com encanto. Afinal, um pré-requisito para a amizade é a capacidade de manter uma conversação sensata. Assim, noite adentro, GENNY XAVER e seus mosqueteiros divagam sobre literatura, filmes, política, confissões amorosas, desilusões e uma ou outra frivolidade.
 
A dificuldade que sente é superar a apagada vida cultural da sua cidade. Defendendo sua trajetória de altos e baixos, como a de todos, relembra o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen: “Viver é lutar contra os demônios do coração e do cérebro. Escrever é pronunciar sobre si o último julgamento.”. Desde menina soube que seria escritora, reservando muito do seu tempo para um mundo privado fincado na vertigem literária. Esse universo era planejado pelo irmão Guilherme, que a incentivava emprestando livros, orientando sua formação intelectual, aconselhando filmes e canções. Adolescente, ganhou o primeiro lugar em poesia no concurso literário da Academia Juvenil de Letras. Foi quando nos conhecemos.
 
A nossa grande amizade confirmou de que “somos mais feitos de acasos que de escolhas”, como um dia escreveu um filósofo alemão. No inverno de 1979, enquanto ela esboçava o texto teatral “A Terra Vista dos Olhos de Duas Mulheres Pálidas”, eu dava sugestões. Dessa maneira, concluímos uma fábula lúdica e dramática nunca encenada. Amigos íntimos, durante anos nem mesmo as circunstâncias inusitadas de nossas existências nos mantiveram afastados. Desde o início ela me encantou. É uma mulher expressiva, atordoante, possuindo a característica de estar no céu em um dia e na escuridão no dia seguinte. 

Durante três anos seguintes, estudando, a ficcionista morou na capital baiana. Filiada ao PCdoB participou do comício “Diretas Já!”, no Campo Grande, enfrentando bombas de gás lacrimogêneo. Em fuga, refugiou-se com um namorado na Escola de Belas Artes. Em pouco tempo, decepcionada, abandonou o partido, resultando em dois anos sem escrever, já que seus versos desse período tinham o engajamento social como característica. Vazia, descrente e traída pelo grupo político, voltou a Itabuna. Veio com muito temor e, também, com uma enorme sede de liberdade. Ninguém conseguirá ter uma pálida imagem da densidade do ar que se respirava no exíguo cubículo fechado da sua vida naquele momento. Por fim, rebelde, casou-se com o músico Nonato Teles. A cerimônia reuniu artistas e nenhuma fotografia para recordação. Juntos, fundaram o bar “Gaiola Aberta”, que sacudiu a cidade de 1984 a 1986.
 
O espaço alternativo apresentava exposições de artes plásticas, artesanato, recitais de poesia, performances, shows e lançamentos de discos e livros. Reunia políticos, empresários, artistas e malucos até altas horas. O casamento fracassou e em poucos anos a poeta e o cantor se separaram. Cuidando sozinha da filha Tainá, desiludida, GENNY XAVIER entregou-se a uma terrível depressão, prisioneira de um mundo sombrio e introspectivo, deixando de se importar com a aparência e sem energia para viver. Durante três anos usou o anti-depressivo Prozac. Vivia no limiar da morte permanecendo ao mesmo tempo plenamente viva, mas a morte em vida é um sortilégio. Em que noite tão escura, e a que custo pessoal, se perdeu? Resgatou a autoestima na Ordem Rosa Cruz, tornando-se mestra em 2000.

Juntamente com esse mundo espiritual atemporal, no início dos anos 1990 enveredou pela prosa, surgindo contos com a sensibilidade de uma Katharine Mansfield. Mais adiante escreveu dois romances ainda inéditos: “Alma de Papel” e “Lembranças dos Jasmins”. Além deles, produziu “Versos ao Coração do Tempo”, o infantil “Rio, Doce Rio” e um livro de contos sem título. Ela mantém há quase uma década o blog “Baú de Guardados”, no endereço badeguardados.blogspot.com, onde reúne anotações e observações, ao lado de poemas, contos, crônicas e ensaios. Apaixonada pela história da velha Tabocas, busca nas palavras expressar o sentimento de amor às raízes de sua terra.
 
Em 1994, ganhou o segundo lugar num concurso patrocinado pela prefeitura de Belo Horizonte (MG), com “Interlúdio Amoroso com Virgínia Wolf”. O conto fala de um arquiteto casado que se apaixona pelo fantasma da escritora inglesa. Com “Versos ao Coração do Tempo” conquistou o segundo lugar no IV Prêmio Sosígenes Costa, promovido pela Academia de Letras de Ilhéus, Editus, Editora da Uesc e Secretaria de Cultura de Ilhéus. Ela acredita que é preciso reviver o passado visando o futuro, “porque entendemos que seremos no amanhã o resultado da referência história. É isso que nos faz compreender aquilo que fomos, somos e seremos”.

A delicadeza da escritora a levou a um cenário de imagens opacas. Uma paisagem existencial complexa. Neste mundo onírico, o tempo perde seus grilhões, permitindo que pessoas que viveram separadas por séculos conversem como vizinhos, fundindo a vida e a morte. Mas nunca houve a menor dúvida de que uma emotividade exacerbada contribuiu para a multiplicação, justaposição e proliferação da experiência lírica. Inquietas, as palavras de GENNY XAVIER gritam e voam. São palavras vivas. 
 
DEZ POEMAS e UM CONTO de GENNY XAVIER
 

01
SILÊNCIO
 
Se tenho de escrever algo
nesta adiantada hora da noite
e nesta altura da vida,
escrevo sobre o silêncio
que cala o tempo,
petrifica a alma
e faz suar as paredes...
 
Mas posso adiantar também
que, de fenda em fenda,
esse silêncio
pulsa num intervalo
onde, estrondosamente,
uma pena sibila no ar
e desce, suavemente,
para pousar o chão...
 
Se há silêncio,
a pena desfaz...
Se há densidade
a leveza dissolve...
 
02
A LUA OUVE um BLUES
 
A luz da lua
incide sobre a superfície da noite
e atravessa a janela
de onde espio o tempo...
Lá fora
um vento suave
levanta as folhas
como quem conduz uma dança...
Uma canção de Joplin
confunde a rouquidão dos sons
que atravessam as frestas...
 
A noite é voragem
e frêmito...
 

03
PALAVRAS VIVAS no TEMPO
 
Hoje,
me pergunto
se ainda minha escrita
retrocede ao tempo da pena
cujo verso se ia pintando
ao desenho da letra rebelde
e cheia de avidez...
 
Hoje,
para esse tempo
de minha pele em metamorfose
eu regresso à pena
e ao desenho
que borda a letra
em composição de palavras...
 
Hoje,
mais que insurgentes,
mais que vorazes,
estas e aquelas palavras
de aqui e além de mim
inda se desatam da alma
que me liberta...
 
04
RUAS que CHORAM
 
Muros riscados de carvão
dão conta dos pecados
daqueles que emporcalham as noites...
A violência se veste de sombra
e, no fio da luz lunar,
se esgueira, se estica
e toma a forma dos que rastejam...
Há um luto manchado de rubro,
nascido nas esquinas nutridas
de fuligem e lodo.
Há ruas que choram
por crianças que dormem
o sono sem sonhos.
 

05
PELEJA
 
A folha em branco
atrai o grito
da palavra escrita.
A letra exposta
dispara, tiro a tiro,
a luta viva
do verso de sangue…
 
O poeta,
roto, sujo, ferido
de guerra e susto
sustenta o peso
do tempo incerto
de luas vermelhas
e sóis de gelo…
 
Quem vence
a batalha inglória?
A horda dos desatinos
ou a poesia dos resistentes?
 
06
REVÉS DO SONHO
 
A vida
se veste de sonhos
para fantasiar
o amor dos contos
e o medo dos monstros...
 
Mas, no revés das utopias
a realidade se despe
e acorda...nua.
 

07
De VOLTA as ESTRELAS
 
A ínfima centelha
do milagre da vida
errou o caminho
e partiu de volta...
pequenina luz
a deslizar no fio de prata...
 
08
DEUSA
 
Como deusa pagã,
a poesia em mim
revela seus caprichos...
Ora reverbera o grito,
o clamor das ruas
a indigesta violência...
Ora comanda o riso,
o amor imprevisto,
o frêmito do corpo...
Ora aprofunda a dor,
que mira o abismo
no topo do mundo...
E cria seus rebuliços,
sua magia,
sua subversão...
 

09
Os SONHOS ACORDAM
 
Sonhei cravos vermelhos
no solo verde do meu chão...
Almejei o voo do condor
alçando liberdades
no céu azul,
alargando sua visão
ao horizonte do amanhã...
 
Mas os sonhos acordam,
amanhecidos de realidade
e chuvosos dos dias cinzas
nesse meu tempo de auroras tristes...
 
10
DESPERTAR
 
Mais uma manhã de nuvens cinzas
e silêncio de pássaros...
Da janela aberta
 invade o cheiro de terra da rua molhada
denunciando a chuva da madrugada.
 
Eu também me sinto nuvem
e água de chuva
a escorrer suave
pelos meus caminhos silenciosos...


A JANELA ENCANTADA
 
Sentia-se entorpecido pela ausência de alguma coisa concreta. O corpo vazio de qualquer busca ou crença. O cotidiano se arrastava com o peso de mil toneladas, lento e miseravelmente patético. A evolução havia lhe preparado alguma alquimia tediosa insuportável. Arrependia-se agora, de ter buscado tantas explicações existenciais ou de ter se perdido nelas cada vez que mergulhava mais e percebia a complexidade do universo. Era o nada, inútil, da terceira visão.
 
Agora, só lhe restava um pedaço da vida simples que ansiava. Mesmo assim, distante, fazendo o papel de observador anônimo, bisbilhotando a felicidade alheia dos que tomam sorvete, namoram, usam gravata (achando isso o máximo), tomam cerveja ao meio-dia, andam pelas ruas apressados, terrivelmente medrosos ou maravilhosamente cheios de problemas para resolver. Era da janela que observava este universo simplista e fantástico do qual queria fazer parte.
 
Aos cinquenta e nove anos, vivendo da aposentadoria, divorciado de um casamento sem filhos, encontrava-se perdido, um homem sem recompensa, vendo a vida escorrer, de súbito, numa pesarosa falta de perspectiva. É claro, tinha a vaidade das pessoas acharem que sua vida era o máximo e do respeito, por vezes, exagerado que nutriam, reflexo de certo sucesso como jornalista. Mas, ultimamente, encarava tudo aquilo com fastio. E, fora dali, da janela no seu posto de observador do cotidiano superficial que descobrira o tempo perdido da profundidade, a solidão do mergulho. A verdadeira existência estava lá fora, pulsando febrilmente nas ruas, como a zombar daqueles que acharam ter fugido da mediocridade. 
 
Aquela babá de menino rico passava agora lá do outro lado da rua, empurrando um carrinho azul e rebolando, ao mesmo tempo. Aquela mulher gostosa, certamente era mais feliz que ele, pois sorria com tamanha naturalidade para aqueles que lhe diziam atrevimentos que, por vezes, lá do seu posto de bisbilhoteiro-mor, de voyeur urbano e compulsivo, ficava eufórico achando que a vida era realmente aquela gaiatice sensual. Ah! Se pudesse trazer aquela mulher para a sua cama! Certamente, nem precisava ficar acordado depois do amor, desperdiçando conversa sobre prazer sexual, orgasmo e outras bobagens que as mulheres intelectuais gostam de tagarelar, fumando um cigarro e tomando uísque. Depois do amor, o corpo pede mesmo é o sono dos justos, da dádiva divina de quem se saciou com o néctar do Olimpo. Vez por outra, quando ela passava em seus passeios matinais, olhava para a sua janela como se percebesse as fantasias daquele cinquentão respeitável que a olhava. Então, ela sorria, desdenhosa e atrevida, alimentando o seu ego. Não a chamava por achar ridículo fazer isso naquela altura de sua vida, mas, corroía-se de vontade de ridicularizar-se. Contudo, já era tarde para abdicar da terrível disciplina que construíra para si próprio. O seu universo era marcado pelas coisas que escolhera e que, na juventude, havia achado grandioso e revolucionário. Uma ova! Estava ali, da janela, se saciando da vida dos outros.


Com certeza, ficaria louco de ócio. Doía-lhe constantemente as costas, a cabeça, o estômago. Não eram dores reais, sabia disso, mas não podia controlar a sua neurose inquietante da solidão de apartamento. Estava mais gordo, de tanto beliscar merendas procurando o que fazer. Podia até tentar o suicídio, mas, se sentia velho demais para agir com tanta emoção. Talvez devesse escrever um livro, como faziam os seus colegas que não conseguiam superar o vício de permanecer sempre com a bunda colada numa cadeira, diante de um microcomputador. Ainda assim, ser escritor não lhe tocava o espírito. Só lhe restava mesmo a concentração do mundinho simples que ele presenciava pela janela. Era como se encantar da mesmice diária que ele agora desejava para si ou lamentava ter perdido.
 
Naquele instante, queria ir ao banheiro, mas não podia deixar de perder o encontro furtivo da mulher loira e muito chique com seu provável, amante musculoso de subúrbio. Ela sempre chegava de táxi, apreensiva e preocupada, em contrapartida à irresponsável despreocupação meio marginal do sujeitinho. Ela, sempre de óculos escuros. Ele, sempre de camiseta de mangas curtas. Conversavam durante alguns minutos, às vezes pareciam até brigar por algum motivo, mas terminavam prédio adentro, que era onde ele morava, bem ali em frente. Ela saia sozinha, umas duas horas depois, de cara feliz, como se tivesse orgulho da sua coragem de enganar um, provável, marido rico. Ah! Mas aquilo não passava de imaginação sua, nem sabia se ela era mesmo casada. Aquilo era apenas o que ele poderia supor, da sua janela.
 
Depois veio a gorda, na sua diária peregrinação doméstica nas compras do leite e pão. Arrastava lentamente os pés e trazia uma eterna cara infeliz, como as das balconistas de bares rodoviários, aquelas que sabem que a vida não lhes reserva mais nenhuma surpresa cotidiana e tudo não passa de repetição dos mesmos afazeres, do mesmo homem e dos mesmos fins-de-semana com filhos e netos.
 
Assim passava o dia, diante de sucessivas cenas peculiares. Mergulhado num prazer meio doido de ser testemunha daquele universo factual. Aquela era a sua fuga contra a invasão do tédio. Não sabia ao certo se aquilo iria salvá-lo da loucura ou se o levaria direto ao manicômio. Estava, ao menos, satisfeito por driblar a sonolência rasteira que lhe tomava o espírito. Aquilo sim era o mal. Não queria mais conviver com os livros, teorias, velhos fantasmas, filosofias e ideologias. Havia se apercebido da profunda inutilidade do universo superior que buscava para si.
 
Naquele instante, ao menos, estava em paz. Poderia ir ao banheiro, tomar banho, beber café solúvel, comer de marmita, sem ligar isso tudo à sua solidão.
Uma paz muita bem controlada, até a próxima batalha...