janeiro 26, 2020

.................................................................................................ASSOMBRAÇÕES





Fotografias: MORVAN FRANÇA
(Belo Horizonte, Minas Gerais. 1987 – 2016)


Dotado de uma “independência criativa muito acima do comum”, na análise de Assis Brasil. IVAN ÂNGELO (Barbacena, MG. 1936) começou a escrever em 1954 e logo foi premiado num concurso da Prefeitura de Belo Horizonte com o conto “Culpado sem Crime”. Em 1966, reuniu contos, e, numa parceria com Silviano Santiago, lançou “Duas Faces” e faturou o prêmio Cidade de Belo Horizonte. O livro reflete a questão da injustiça social, uma constante em toda sua obra.

“A Festa” (1975) e Amor?” (1995) receberam o Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Foi colunista dos jornais “Correio de Minas”, “Diário de Minas” e “O Tempo”, de Belo Horizonte. Duas vezes premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo livro de contos “A Face Horrível” (1986) e pelo romance juvenil “Pode me Beijar se Quiser” (1997). Teve livros publicados em inglês, francês, alemão e espanhol. Cronista da revista “Veja” de 1999 a 2018.

Dono de um texto exemplar, sua narrativa atrai o leitor, prende-no desde a primeira frase e só o liberta na última linha. Casos bem-humorados e outros nem tanto, retratos de tipos humanos, relações amorosas, cenas urbanas, crítica social e de costumes, alguma poesia. Um assunto puxa o outro, e o que emerge desse conjunto é um panorama muito pessoal da vida brasileira. Seu lançamento mais recente é um livro de crônicas: “Certos Homens” (2012).

A CRÔNICA: “ASSOMBRAÇÕES”

Existe amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando aparecem, como uma assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Vadinho de Jorge Amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem. Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de improviso, sem arrepiar ninguém. 

Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio, uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece: era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma leitura, ao escovarmos os dentes e até na hora do amor. A gente pode estar conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje em nossa perna tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa conversa. 

Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta, sensível, do mesmo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma chinelada da mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo quem se convida. 

Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da cabeça, até hoje é apaixonado por ela etc. Nada disso. É pura assombração, que irrompe de repente na hora própria ou imprópria, independentemente de vontade ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua visita-relâmpago, muda ou falante, e some. 

Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa trêmula, temerosa de desamor:
Não sou mais virgem - quando isso tinha importância. Outra, espantada com as descobertas: Eu não acho que ia gostar tanto disso. Outra, cobrando: Você não assume. Outra, no escuro: Quem é você? Amores de outro mundo não se sentem obrigados a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se mostram.
 
Alguns perdem a visagem e nos assaltam só com uma sensação, um nome, umas covinhas, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em sua fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada. 

De maneira nenhuma perturbam o amor em curso, nem é essa sua intenção, se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e resposta - e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer: são desejos, frustrações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar, alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão satisfeitas no seu canto.
 
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais! São borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.

A OBRA de IVAN ÂNGELO

HOMEM SOFRENDO no QUARTO (1959)
DUAS FACES (1966)
A FESTA (1975)
A CASA de VIDRO (1979)
A FACE HORRÍVEL (1986)
O LADRÃO de SONHOS e OUTRAS HISTÓRIAS (1994)
AMOR? (1995)
PODE me BEIJAR se QUISER (1997)
O VESTIDO LUMINOSO da PRINCESA (1998)
O COMPRADOR de AVENTURAS e OUTRAS CRÔNICAS (2000)
AS MELHORES CRÔNICAS de IVAN ÂNGELO (2007)
CERTOS HOMENS (2012)

O PENSAMENTO de IVAN ÂNGELO

“Essa é nossa maldição como escritores: exorcistas dos demônios de nosso grupo social... Por haver entendido, afinal, que a escritura me faz escrever...Os brasileiros escrevem para compreender seu país e nisso estão atrasados em relação aos americanos de língua espanhola, que já passaram dessa fase. Escrevem para explicar, para contar. Compreender o Brasil não é fácil, mas é menos difícil do que explicá-lo”

“Tem que pensar numa história, numa intriga, tem que inventar. Podem ser flashes, alguma coisa que pinta, um olhar que você tem com alguma pessoa. Todo mundo põe recordações nas histórias, não conheço um autor que não coloque. Digamos que, dependendo do que você escreve, 50% são emoções que você viveu. Pego um personagem central, num conflito que se desenvolve ao longo de todo o livro, e faço a história pronta e acabada. Você tem um fio condutor e o resto tem que inventar, criar (os personagens). Surgem talvez de pessoas que conheço, de comportamentos que quero denunciar, ir contra ou a favor. São idealizações dentro do aspecto geral da sociedade. Como faço uma literatura um pouco crítica da sociedade, procuro detectar esses comportamentos em pessoas, anoto, e a partir daí vou desenvolvendo. Cada personagem é um envolvimento total, mesmo que seja de ódio. Já cheguei a pensar: ‘o que seria bom para tornar tal personagem mais condenável, mais antipático?’. Para isso tenho que pensar como aquilo me ofenderia, é também uma forma espelhada de procurar os personagens. (...) Muitas vezes (a narrativa) dá nó. Às vezes paro no meio do processo, não engata, não vai. De repente você vai, vai e muda o processo. O principal são os personagens centrais, isso faz parte do conflito. Os outros vão surgindo e o que for necessário aparece. A cabeça do escritor dá muitas voltas. São armadilhas que o texto mesmo prepara pra gente e aí, tem que parar”.

“Posso enumerar dessa época um mestre da vida inteira, Carlos Drummond de Andrade, e mais Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, alguns românticos como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, alguns parnasianos como [Olavo] Bilac, Machado [de Assis], Raimundo Correia [um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras]. Lia ficção, também, mas a poesia é que me enchia as medidas. De prosa, não há como escapar de Machado de Assis, ele nos persegue. Escritora moderna que me maravilhou pelo estilo, porque das histórias nem me lembro direito, foi Clarice Lispector. Escrevi um conto imitando-a, “Menina”, está por aí em antologias. Devo ter sofrido alguma influência de poetas e ficcionistas de língua inglesa, modernos, que lia bastante, aí já na fase de aprimoramento da escrita, digamos. Mas foram tantas as leituras prazerosas e exemplares que fica impossível destacar alguém. Como diz Drummond, no poema “Resíduo”, “de tudo fica um pouco”.

“Eu acho que seríamos injustos com os críticos se fossemos apontar os defeitos no trabalho deles, considerando as condições que eles têm atualmente. O trabalho é mal pago, eu trabalho na imprensa e sei quanto os jornais e revistas estão pagando. Eles têm de fazer muitas coisas para conseguir dinheiro, e um livro dá trabalho para ler e analisar. As resenhas a gente não pode criticar dizendo que são ligeiras, porque essa ligeireza na imprensa tornou-se qualidade, e não defeito, não é verdade? Bom, então o que temos, na realidade, é um comentário conteudístico e, no último parágrafo, vem é bom, é ruim, é mais ou menos, na base do gosto pessoal. Nessa base eu estou muito bem, só tive uma crítica mal-intencionada do ponto de vista ideológico, só uma. Não vou dizer qual, mas os preconceitos e os dogmas entranhados no raciocínio do crítico estão muito visíveis, ele pedindo um herói em choque com a sociedade, pedindo um encadeamento de ações que conduza a consciência do leitor, coisas assim. Agora, análises mesmo, tive poucas. Creio que faltaram análises que abordassem meu trabalho com as palavras, que examinassem o uso crítico que eu faço de certas linguagens, as minhas soluções para um dos problemas que excitavam e, às vezes, até inquietavam os poetas e ficcionistas do modernismo brasileiro, que é o problema da simultaneidade.”


janeiro 12, 2020

..................... PELO VALE das SOMBRAS AFOGADAS do AMOR

morvan frança por antonio nahud



“Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

CLARICE LISPECTOR
(Chechelnyk, Ucrânia. 1920 – 1977)

Ilustrações: MARC CHAGALL
(Liozna, Bielorrússia. 1887 – 1985)


Após vinte e dois dias nas terras do sem-fim, volto ao reino. Ao abrir a porta, deparo-me com ele afogado em águas de uma tempestade do dia anterior. Algo raro em Natal, a terra do sol. Ruas se abriram como xoxotas em flor e outras se metamorfosearam em lagoas assombradas. Nunca passei por tal birra da natureza. Atravesso o escritório, a sala principal, sala de leitura, dois quartos, uma copa, cozinha, banheiro. Tudo tomado pelas águas do céu. Abro portas, janelas, ventanas, convidando o vento. Chet Baker na trilha-sonora, sento, numa espécie de torpor, e choro. Reajo aos poucos, passando a vista na tragédia. Intocáveis as telas, livros, rascunhos, fotografias, DVDs. Emocionante!

A água toma o chão de cerâmica. Como um banho purificador, preservando as pequenas preciosidades que quase todo mundo tem. Telefono a diarista, ela está fora da cidade, de férias. No verão, no Rio Grande do Norte, muitos mudam para as pequenas cidades do litoral potiguar. Pobres e ricos. Voltam na quarta-feira de cinzas. Uma vizinha simpática decide me ajudar. Por umas três horas enxugamos e organizamos o ninho. Chet tocando e na faxina interminável bebemos Veuve Clicquot. Não me desespero, a enchente parece-me absolutamente normal. Como um roteiro de um filme seguido à risca. Nesta cena, encontro a caixa de papelão azulada. Guarda pedaços de M. Bilhetes, rabiscos, poemas, citações, uma cueca, livros, cadernos-diários, e-mails, fotografias, batas hindus, pulseiras, colares etc. Separei para jogar fora. Nunca tive coragem. Está há meses na nossa cama, como um objeto maldito de decoração.

A água cola páginas. Fotografias borram. Letras mortas e misturadas. Sinto um primeiro impulso de salvar parte do tesouro, mas dou um passo para trás e desvio-me da tentação dançando. Avisto a cama de casal ensopada pelas águas do outro lado do mundo. Arrasto-a à garagem, onde habitam bons ventos. De um pequeno rasgo no forro do colchão, cai um delicado colar de cobre, de designer grego antigo. Nele, pendurado, um minúsculo papel amarelado, dobrado. Em chamas eu o abro: “De mãos dadas sempre. Sempre é para sempre, nêgo. Acredite. M.” 

Toma-me um cabulozo ardor poético! Ele surge em uma tempestade após mais de três anos do suicídio. Meu sorriso agradece, mas atiro a caixa valiosa, o bonito colar e a eternidade de um amor solitário no lixão na esquina da rua. Volto à ilha. Está tomada por centenas de formigas de asas, como em um conto do vermelho García Márquez. Não me rendo, não me importo. Sou romântico, mas a vida continua. Com amor ou dor.

ANTONIO NAHUD
Natal, Rio Grande do Norte
Janeiro de 2020