julho 06, 2025

.................................................... A LÍNGUA APUNHALADA – crônicas





Sou eu o homem, eu sofri, estive lá.
WALT WHITMAN
(1819 – 1892. West Hills, Nova York / EUA)
 
Ilustrações:
PAULO von POSER
(1960. São Paulo / SP)

 
 
No ano de 2003, hospedado em um hotel potiguar à beira mar, colhia informações para iniciar a biografia do escritor Diogenes da Cunha Lima. Com tempo livre, aproveitei para organizar a antologia “A Língua Apunhalada”, com 31 crônicas divididas em “Crônicas Grapiúnas” (1993 - 1994) e “Crônicas dos Dias Errantes” (2000). Prefácio do potiguar Vicente Serejo e revisão do pernambucano Antônio Lopes, ambos cronistas notáveis. Todo o material literário havia circulado em suplementos de jornais, sites e blogs no Brasil, Espanha, Argentina e Portugal, muitas vezes causando polêmicas. Nele, escrevo sobre viagens, comportamento, sexo, política, religião, literatura e artes. Algumas das crônicas são imaturas, inclusive agressivas. Foram escritas em Ilhéus, em países europeus e no Marrocos. Textos sinceros com estocadas duras. Na época, no auge da juventude, era cúmplice da polêmica, do cuspir fogo, da erudição. Tinha como ídolos Paulo Francis, H. L. Mencken, Sérgio Augusto e Otto Lara Rezende. As palavras escritas sem freios cuspiam questionamentos, confiando nos raciocínios vulcânicos delas, afinal a verdade surpreende. Décadas passadas, releio esse livro que - por motivos misteriosos - nunca foi publicado. Divido com você o prefácio e três crônicas.

arte de lygia pape
O PUNHAL e a CRÔNICA
 
Prefácio de Vicente Serejo (*)
 
O cronista, sem precisar deixar de ser um repórter à procura das notícias da vida, tem sido também um repórter das notícias da alma. Vivendo no arame. Entre o real e o tangível, por mais que o inescrutável pareça ser matéria de nunca ouvido canto. Talvez por isso, quando comecei a leitura das crônicas de Antonio Nahud, reunidas neste conjunto que chamou de “A Língua Apunhalada”, senti que esse punhal era um resguardo de precaução. Culto, e dono de um texto impecável que se ombreia sem medo aos melhores textos da crítica e do jornalismo literário brasileiro, Antonio Nahud teme apunhalar a língua que domina numa bela arquitetura feita de ritmos e metáforas, como se a escrita, uma vez posta ao rez-de-chaussez, ficasse numa perigosa linha de tiro, no estande da crítica literária e seus exigentes exercícios.
 
Como todo grande escritor, tem seu modo singular de dizer, seu viés de contar, sua ilha de impressões com figuras que decalca no seu voo grande-angular sobre a banalidade do cotidiano. Uma banalidade que não é banal, porque também não é aquela com a qual quiseram ferir a grande poesia de Manuel Bandeira, como se fosse feita só da vulgaridade dos temas da vida besta. Quando é do cotidiano que se reflete por inteiro a própria vida. Na cor e na ausência da cor. No claro-escuro da alma. No baixo e no alto relevo. Em tudo. O olhar de Antonio Nahud é o registro, no mesmo nível de importância, da suspeita e da certeza. Do falso e do verdadeiro. Do pecado e da virtude. Do bem e do mal. Mas não tem, em nada, um maniqueísmo capaz de depenar o seu olhar e de fazê-lo pobre. Sua crônica não é apenas aquele sorriso da sociedade a que se referiu Afrânio Peixoto. É também a cara feia da ira, a gargalhada desabrida da ironia, a fisionomia triste da comoção.
 
Vivendo em Natal, ele nômade e fugidio, a cidade não soube ser o favo bom de sua doce e marcante presença. Ele, um homem em travessia, mas espetando com sua inteligência a mesmice dos dias e o mistério das noites. Seus ensaios nos jornais locais fazem dele um novo Michel de Montaigne – recluso e genial – a espreitar do alto das ameias de sua torre, diante do mar de Ponta Negra, os estranhos mistérios da vida e da arte. Mexe e remexe nas gavetas da alma humana, incomoda na sua sinceridade, e causa inveja quando enfia o olho na fresta e revela o que é proibido. E, no entanto, todos veem. A leitura deste “A Língua Apunhalada” é um exercício de visões e de descobertas. Aqui, nenhuma verdade é eterna. O bem e o mal se fundem, com cheiro de alfazema numa paisagem melancólica, quando ele mostra que o mundo, às vezes, é um mercado de farsantes. Antonio Nahud vai a toda parte, e, ao mesmo tempo, é real e mágico com sua escrita, que chamou de movediça e que lhe dá tino, força e sorte. Sua palavra é, ao mesmo tempo, apolínea e dionisíaca, próxima e distante. Capaz de fecundar palavras e emprenhar de novos sentidos a palavra gasta. Entre a dor e a delícia desse seu caetanear baiano, às vezes indolente, vagando pelas ruas e becos de sua Salvador, subindo e descendo as ladeiras, no sopro da vida cheirando a dendê.
 
Viajor dos rios existenciais que banham a alma humana entre o tédio e a dor de ser e de não ser, Antonio Nahud é um grande escritor. E, por isso, um grande cronista do seu tempo. Existencial e irônico, bem humorado e terno. Um lírico que procura as dúvidas nos dias errantes. Como quem desconfia, no seu ceticismo, que a dúvida é a grande presença de Deus. Porque ele sabe, e como sabe afirma: Vê-se que o esplendor da fé está ali, ali nos olhos de mar da gente comovida. Mas, desconfiado, pergunta: Consegue ver? Leiam o livro. E vejam.
 
(*) Cronista e ensaísta, autor de “Cena Urbana” e outros livros. Jornalista e professor universitário.
 
01
O JARDIM
 
A vida é um caminho cheio de espinhos e flores.
MACHADO de ASSIS
(1839 – 1908. Rio de Janeiro / RJ)

 
 
Na infância, fui duas ou três vezes de mãos dadas com mamãe visitar a bisavó Silvina. Íamos a pé, caminhando da casa de vovó Nininha, ela conversando com conhecidos ou parentes no caminho, em um ritual educado. Observava sua fala com gente que eu desconhecia, encantado com a criatura mais bela do mundo. Um ou outro passava a mão na minha cabeça de cachos negros, diziam coisas cordiais que eu ignorava, só vendo importância em estar de mãos dadas com aquela deusa. A bisavó morava em um casarão soturno, decorado com imagens de santos, molduras ovais e móveis antigos. Um mundo de sombras e fantasmas. Prostrada numa cama, ela parecia ter mil anos, o rosto enrugado, os cabelos cinzentos e o corpo magro, muito magro. Transmitia bons sentimentos no esforço para sorrir e deixar evidente sua felicidade com a presença da formosa e cordial neta. Vivia seus últimos momentos de vida, e parecia saber disso. Mamãe me deixava à vontade nessas visitas, protegido que eu estava numa casa sem perigos, ela apertando as mãos da idosa sem forças. Rezavam, conversavam sussurrando, tomavam chá mastigando biscoitinhos de nata.
 
Senhor absoluto do reino, ocupava o jardim ao lado da entrada principal. Era o jardim do paraíso, inesquecível. Lembro das gérberas amarelas, das margaridas graúdas, cravos vermelhos, lírios, ramos de ásteres, palmas de Santa Rita, narcisos e hortênsias. Sentava-me por instantes debaixo da mangueira contemplando o horto de belezas, de toda qualidade de perfumes. Havia também rosas musgosas, jacintos, campânulas, açafrões e mirra. O inocente coração, arrebatado pela paisagem inspiradora, guardava para si a condição existencialista. Perdia-me no visual florido, a mente hipnotizada por fragrâncias e formosuras. O coração em suspense. Controlando a comoção, acompanhava o voo de abelhas, borboletas e colibris; intrigado com formigas, gafanhotos, louva-a-deus e lagartas de fogo. Anos passados, certo trecho do romance “Sonhos d'Ouro” (1872), de José de Alencar, me faz recordar o jardim do transe infantil: “As flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia”. A leitura do escritor cearense deu origem a esta crônica sentimental e nostálgica, resgatando o jardim que guardo no coração.
 
Para suportar os males do destino obscuro, tenho como estratégia zombar dos fajutos princípios esquerdistas. Eu desrespeito a mídia frouxa e artistas que vomitam estrume parecendo que estão fazendo o bem. Uma falácia, ou melhor, vaidade, nada mais do que vaidade. Aprendi que existe uma enorme diferença entre escrever bem e escrever mal. Mas há uma diferença ainda maior entre escrever bem e escrever uma obra-prima. Sou um escritor abstrato e intimista, caro leitor. O que tenho escrito? Busco a palavra viva. O homem Antonio não é importante, mas a palavra levita sob fábulas. Isso seria possível? Basta de filosofia. Tempo de angústia, o nosso. Que eu me perpetue carne e palavra. Não vejo a paisagem no entardecer, apenas me identifico com cantos de passarinhos. Posso estar acordando ou adormecido, sonhando que estou acordado. Não sinto falta de medalhas, palanques, oferendas. Eu sonho, então sou carne trêmula. Eu sonho que escrevo uma crônica para alguém que espera. Espera o quê? Não sei a resposta, mas continuo escrevendo. Por fim, converso com o Anjo da Guarda. Livrai-me do fascismo esquerdista, dos guetos homossexuais, da dor, da inveja alheia, da xenofobia, da verdade absoluta. Ignoro a pretensão imortal e imoral dos mortais. Experimento o mel do melhor, recordando uma infância no quintal florido da bisavó Silvina.
 
As lembranças se perdem na memória, sufocadas por uma realidade de injustiças, brutalidades e mesquinharias. Do jardim, só o vestígio de uma flor ou outra, e geralmente sem perfume, crias de laboratório. Vivo as dificuldades de todos nós e trabalho para pagar contas de inutilidades. A classe política, de olho nas urnas, organiza conspirações para a manutenção do poder. Velhos dinossauros vendem virtudes e sagacidade, falando de democracia sem me convencer. Realmente a política é uma guerra, matando principalmente gente humilde. Sem um jardim para ser feliz, desconfio que não há mais flores verdadeiras. Estamos em uma época do sintético, do artifício, do estético fake que ostenta. Veja, caro leitor, o caso da conexão Brasil-Itália de tráfico de crianças. Alucinante! Casais italianos adotando meninos nordestinos miseráveis por cinco mil dólares. Triplicam esse valor com a venda de seus órgãos no exterior, enquanto juízes e advogados brasileiros enchem o bolso sem remorsos. São tempos insensíveis. Ainda assim, pretendo viver muitas décadas driblando a maldade e a amargura, agarrando-me à lucidez e à ternura. Mas o que fazer com a falta que me faz o jardim mágico da distante infância? Bisavó Silvina, socorra-me!
 

02
A HORA do MALIGNO

Uma viagem intelectual incômoda. Incansável, não me satisfaço. Meus músculos tremem com a leitura de livros esgotados encontrados em sebos. Em Salvador, na rua Chile, comprei um grosso volume, baratíssimo, de discursos de ditadores. Iniciando a leitura, rabisquei impressões perversas em suas páginas, sentindo o sopro de um vento gélido no coração. Sou um witty, como os norte-americanos definem alguém com a rara capacidade de ser, enfim, maravilhosamente malvado com as palavras. O grande alvo do livro é o canalha Fidel Castro, que tem mais de 40 anos de poder ditatorial na ilha de Cuba. Lembrei de uma visita sua à Bahia, recebido por Antônio Carlos Magalhães, dos seus elogios à nossa culinária, “a melhor do mundo”. Com o uniforme verde-oliva, parecia sair de um combate na Baía dos Porcos, simbolizando o malévolo revolucionário. É um mito cultivado pelo marxismo-leninismo, intelectuais mal-intencionados e uma infinidade de idiotas.
 
Passei um mês em Cuba, em 1999, fazendo uma longa matéria para uma revista portuguesa de turismo. Desfilando de táxi no passeio marítimo de Havana, o Malecón, me assustei com os velhos e imponentes casarões coloniais em ruínas. A bela cidade celebrada em filmes e comerciais publicitários parecia que acabara de sair de uma guerra implacável. Era visível a miséria gritante de um povo alegre e de sensibilidade artística. Diversas famílias dividiam a mesma moradia decadente, desemprego e insatisfação generalizada. Um bonito jovem cubano, Vladimir, de olhos verdes em pele morena, formado em medicina e trabalhando como carregador de malas no hotel cinco estrelas que eu estava hospedado, implorou para que o levasse a qualquer parte do mundo. “Faço o que você quiser, serei seu escravo”, disse-me. Em Cuba, a política educacional e de saúde é boa, funciona perfeitamente, mas a falta de liberdade de expressão é nefasta. Em Varadero, trancado em um luxuoso hotel canadense, enquanto o furacão Irene nos ameaçava, assistia tevê, entediado e bebendo mojitos, analisando o longo discurso demagogo do ditador Fidel na telinha. Cuba não é a melhor das vidas.
 
Muitas vezes o poder sobrevive graças a uma espécie de ritual horrendo. A imortalidade parece ser a pretensão daqueles que se julgam possuidores de força superior, de Napoleão a Adolf Hitler, passando pelos coronéis nordestinos. São portadores de cóleras que o tempo faz irrisórias. Suas ações ocupam o centro de nossas preocupações, sem que eles se importem com a reprovação de julgamentos morais. É difícil conviver com essa escória. Não respeitam ninguém. O encanto de Fidel Castro é fruto de um carisma usado para fins de manipulação, algo parecido com o que fazem certos líderes religiosos: manipulam, roubam, prometem o Reino dos Céus. São insaciáveis. No entanto, as máscaras terminam por cair, como aconteceu com Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón, Idi Amin Dada e Ferdinando Marcos. O tempo não perdoa. Em meio ao terror, corrupção e escândalos, há sempre a redescoberta do sentido das palavras solidariedade, liberdade e igualdade.
 
O retrógrado camarada Fidel talvez não seja o único diabo mor vivo. Supostos democratas, como George W. Bush, nos EUA; José Maria Aznar, Espanha; ou Silvio Berlusconi, Itália; entre outros, são também vermes ocidentais. Eles invadem países fragilizados, exploram e oprimem em nome da democracia. No Brasil, as manifestações pelo impeachment do ex-presidente Collor de Mello, em 1992, trouxeram o sonho de igualdade social, e o natural seria não votar nunca mais em partidos repulsivos como o PT, não acreditar em telejornais manipulados ou na publicidade política cujo sentido é melhor ignorar. São absurdos o cinismo, as más intenções e a mediocridade de muitos políticos. Acredito no ideal de um país melhor, consciente do nosso papel como cidadãos e sabendo que podemos fazer história. Precisamos de uma Perestroika que ponha a nu o fisiologismo da máquina estatal, os carcomidos privilégios do funcionalismo público ineficiente, a articulação política resultando em corrupção, contravenção, criminalidade, tráfico de drogas e miséria num cotidiano de erros. Assim, veríamos a face real da República das Bananas: milhões de mortos e subnutridos por arrocho salarial, ignorância e desemprego. Milhões de esperanças e desejos sem-teto. Assim, tu; assim, todos nós.
 
03
A ILUSÃO VIAJA de TREM

Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal,Tami,
para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria:
também para lugar nenhum, meu filho, tu podes ir
e ainda que se mova o trem não te moves de ti.
HILDA HILST
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)

“Qadós” (1973)
 
 
Tomei o trem em direção a Fez, pretendendo visitar Rachid Bendai, um escritor proprietário de uma loja de alumínios. Conheci o simpático beri-béri anos antes, ao perder-me no bairro judeu em busca da fonte Najjarine, e nunca mais deixamos de trocar cartas fraternas, quase surrealistas na sua mistura de espanhol, francês e português. Fez, uma das cidades mais lúdicas que conheci nos muitos anos de viajante, não tem nada do glamour afetado da telenovela “O Clone”. É espiritual, simplória, perdida no tempo. No comboio, instalei-me em uma cabine espaçosa, decadente, resquício da luxúria abusada dos colonizadores franceses. Do corredor, surgiram cabeças, olhos, animais, policiais sebosos, traficantes de haxixe, uma balbúrdia. Como a viagem seria longa, decidi rabiscar considerações poéticas encomendadas por um suplemento literário argentino. Sendo eu mesmo poeta, percebi que não podia escrever tal artigo didático, afinal há inúmeras formas de trabalhar versos, e cada qual usa aquela que se harmoniza com a sua sensibilidade, escrevendo da maneira que julgar mais densa. Pensava numa saída, quando um homenzinho asqueroso se sentou na poltrona em frente.
 
O sujeito apresentou-se, em espanhol, e, depois de um olhar ambíguo, contou sua história. Se revelou um marroquino que vivia na Andaluzia. Estava de visita para o casamento de um primo carnal, supostamente seu melhor amigo. Três dias de festa, os homens numa casa e as mulheres noutra. Três dias de comilança, dança, canto, haxixe. Você é meu convidado, afirmou. Não respondi, percebendo os sinais do mau-olhado. Fechando os olhos, fingi um sono improvável, concentrando-me no barulho das rodas nos velhos trilhos. Na primeira vez que tomei um trem, dos cafundós da Galícia a Lisboa, senti um prazer vivíssimo, uma energia ardente subindo por todo o corpo. Os vagões lotados de barulhentos pracinhas cantando e falando alto, como em um antigo musical de Hollywood. Não era um trem levando milhares de judeus para os fornos crematórios na infame Segunda Guerra Mundial, tampouco o que esmagou a beleza insatisfeita da heroína Anna Karenina. Seria mais fácil encontrar a cantora Sugar Kane de Marilyn Monroe atravessando os corredores e provocando assobios com o seu rebolado adorável.
 
Sempre gostei de filmes passados em trens, como os de Buñuel, Lumet, Chéreau, Hitchcock com o pacto dúbio entre os protagonistas. Abri os olhos e Hadj Mohamed – sim, esse era o nome do infeliz – tinha o meu livro de Tahar Ben Jelloun nas mãos. Pedi o livro de volta, revelando de supetão o idioma português. Devolveu o livro, jurando amor eterno pelo futebol brasileiro. Não gosto de futebol, escapa-me algum tédio, é uma paixão que não compreendo. Não me animo nem com as Copas e suas bandeiras penduradas em janelas de prédios e agitadas por meninos que nem sabem ler ou escrever. Costumo resmungar entediado contra esse patriotismo fajuto. Sei que é tempo de bandeiras, de solidariedade. Tenho às vezes curiosidade de saber onde vão parar as bandeiras e as camisetas verde-amarelas. São usadas nas praias, shopping-centers e condenadas a pano de chão? Não me interesso por futebol, deixei claro para o estranho. O malandro Mohamed continuou falando sem parar, exaltando a beleza da sua terra e contando sobre artistas europeus que passam longas temporada nela.
 
Uma fala incansável, lenta, talvez hipnótica, sempre repetindo “Você vai gostar da festa do meu primo”. Tenho conhecidos à minha espera em Fez, rebatia, nunca falando seu nome. Nomeá-lo seria respeitá-lo. A tal celebração matrimonial aconteceria numa cidadezinha, Asilah, no início do trajeto pretendido até Fez. Ele desenhava verbalmente a magia do lugar, as praias exuberantes, o oásis de palmeiras e laranjeiras. Havia lido alguma coisa sobre a branca Asilah, mas repetia assediado por uma leve lassidão: “Muito grato, irei a Fez”. O sol torrava inclemente o deserto visto através da janela. Surgiam ilhas verdes com soberanas palmeiras. Representantes da lei examinaram meu passaporte, perguntando o que fazia no Marrocos. Sou jornalista, vim visitar amigos em Fez e depois entrevistar o escritor espanhol Juan Goytysolo em Marrakech. Eles me deixaram em paz, mas os olhos da bizarra criatura brilharam. Não pense que tenho dinheiro, não sou um jornalista famoso. Sou um duro, o meu país é tão pobre como o seu. Por isso viajo neste trem decadente, exagerei. Mohamed calou-se por minutos, estudando a situação e planejando o reforço da vigarice.
 
Aproveitei seu silêncio repentino para recordar uma viagem de trem pelos Alpes Suíços, no Bernina Express, percorrendo 145 km. Uma das viagens de trem mais impressionantes do meu histórico aventureiro. Em seu trajeto, passei por 102 pontes, túneis, precipícios, belos vales, névoas, densas florestas, lagos e no ponto mais alto da estrada de ferro, o imponente mundo das montanhas, com seus picos cobertos de neves. Partimos de Chur, uma das mais antigas cidades da Suíça, com cerca de cinco mil anos. Como fui feliz! Imitando Hercule Poirot em “Assassinato no Expresso do Oriente”, examinei minuciosamente cada passageiro. Um sonho realizado, pois nunca compreendi o extermínio dos trens no Brasil, um país com distâncias tão longínquas. Quando criança, atravessando os trilhos abandonados da cidade natal, perguntava a babá onde o trem se escondia, e ela respondia: “Partiu para o infinito de Deus e não conseguiu encontrar o caminho de volta”. Eu acreditava piamente. Na região de Graubunden, conhecida pelos vinhos de excelente qualidade, o Bernina Express parou por 15 minutos. Ao seu lado, o Glacier Express, vindo de Zermatt em direção a St. Moritz. Tirei uma fotografia do jovem cobrador e, sorridente, ele me convidou para tomar chocolate. Segui o louro de olhos azuis até um dos escritórios da estação, observando as paredes decoradas por cartazes turísticos dos Alpes Suíços. Ele serviu o chocolate, sentou-se numa cadeira rústica do outro lado da sala, abriu as pernas e a braguilha, e masturbou-se, sem dizer uma palavra. Tomei o chocolate quente, assistindo ao espetáculo inusitado. O sinal de partida foi anunciado, agradeci a oferta e voltei ao Bernina. Horas depois, ao encontrá-lo, ele fez de conta que nunca tinha me visto. Achei hilário, outra história para o meu diário.
 
Mohamed me despertou das lúbricas recordações, puxando-me pelo braço, avisando que havíamos chegado, enquanto retirava a minha mochila do bagageiro. Tomei-a de volta e, sonolento, segui para uma das saídas, ao lado da cabine. As descer, avistei uma estação semi abandonada, um dromedário coberto de moscas, arriado no chão, e um táxi negro dos anos 50. O trem partiu me deixando na solidão do deserto. O vigarista atrás de mim. Onde estou? Asilah, respondeu com um sorriso cínico. Não estamos em Asilah. Não sou tolo. E o mar? Logo ali, vamos tomar um táxi – disse, apontando as areias escaldantes, sem nenhum sinal de edificações ou do mar. Vou para Fez, afirmei decidido, entrando no prédio. O próximo trem passaria às 5 da manhã. Em pânico, vivi uma noite assustadora. Muitas horas sem perder a mochila de vista, recusando ofertas de hospedagem, repetindo que não tinha dinheiro. A pequena cidade era pobre e suja, com apenas uma minúscula Medina. Não encontrei turistas, consulados ou hotéis. Depois de horas tendo Hadj Mohamed como sombra, consegui escapar assim que ele entrou em um banho público para falar com um parente.
 
Corri como um doido pelas ruas labirínticas, escondendo-me no Jardim das Bruxas, à saída da cidade. Não preguei os olhos, atento aos ruídos noturnos. A memória reavivava casos de desaparecidos de uma hora para outra no Marrocos e nunca mais encontrados. Faltando pouco para o amanhecer caminhei até a estação, pegando carona no caminho com um carroceiro muito idoso. Ainda filosofei sobre a velhice, tratando-a como um mal-entendido entre o corpo e o espírito, mas o coração pulsava forte, temendo a volta do diabólico grilo falante. Quando o trem surgiu, teve o efeito de um milagre. Chorando, ajoelhei-me na areia áspera e agradeci a Maomé, teria mais tempo para viver entre pessoas cheias de importância, bem instaladas na sua mediocridade. Voltaria ao Brasil. Antes, eu e a ilusão continuaríamos de trem para Fez, e a seguir, Marrakech.
 


junho 19, 2025

********************** COM a PALAVRA, CYRO de MATTOS

 


Cyro de Mattos possui uma personalidade
vigorosa e original, a condição humana dos personagens
que surgem do seu conhecimento e da sua emoção
nada tem de artificialismo... O autor de Os Brabos
pisa chão verdadeiro, toca a carne e o sangue dos homens,
entre sombras e abismos.
JORGE AMADO
(1912 – 2001. Itabuna / Bahia)
 
Em Cyro de Mattos sente-se sem esforço
a vontade de escrever e a paixão de escrever.
Por isso, seus contos trazem a marca
das coisas sofridas, pensadas,
remoídas, cristalizadas.
HÉLIO PÓLVORA
(1928 – 2015. Itabuna / Bahia)
 
Ilustrações:
PITÁGORAS LOPES
(1964. Goiânia / Goiás)

 
 
Esta entrevista é a continuação de um projeto pessoal de resgate da história e literatura do Sul da Bahia, minha região natal. Eu escrevi a CYRO de MATTOS (1939. Itabuna / Bahia) pedindo permissão para entrevistá-lo e ele respondeu imediatamente com atenção e cortesia. Tentando evitar perguntas irrelevantes, recebi confissões contundentes sobre vida literária, prêmios e traduções, permitindo voos transparentes quanto decididos em opinião acerca de sua trajetória, seus livros e seus contemporâneos. Conheço pessoalmente o escritor desde os anos 80. É um homem alto, calvo, de fala um tanto nervosa. Amigo de juventude do meu pai, Antônio, e do meu tio-padrinho, Gervásio, advogados como ele. Nascemos na mesma cidade. Li boa parte da sua literatura na época em que morava na Bahia. Apreciei contos de “Os Brabos” e, mais adiante, “Canto a Nossa Senhora das Matas”, e ensaios de “As Criações de Adonias Filho”. Para esta conversa, li um dos seus trabalhos mais recentes, “Infância com Bicho e Pesadelo & Outras Histórias”, de 2023, prêmio literário Casa das Américas.
 
Contista, poeta, romancista, ensaísta, cronista, o escritor despontou para a literatura brasileira na década de 60. Atraído pela força e pelo encanto da palavra escrita, publicou mais de setenta livros no Brasil, além de outros em Portugal, Espanha, França, Alemanha, Estados Unidos, Rússia e Dinamarca. Advogado aposentado, jornalista com passagem na imprensa do Rio de Janeiro, é casado com a professora Mariza, pai de três filhos, avô de seis netos. Membro das Academias de Letras da Bahia, Ilhéus e Itabuna. Com amabilidade e uma verve cuidadosa, que dá às suas declarações nuances de sentido nostálgico e histórico, iluminando a literatura e o jornalismo grapiúnas, o escritor de “Duas Narrativas Rústicas” sinalizou coisas importantes, disposto a dizer aquilo que pensa sobre criação literária e acontecimentos. Confira nossa conversação.
 

01
Quem é o escritor Cyro de Mattos?
 
Uma pessoa simples, vive para a família, sua esposa Mariza, suas bases importantes, seus filhos e netos. Tem grande paixão pelos livros. Nasceu em Itabuna, cidade no Sul da Bahia, em 31 de janeiro de 1939. Seus pais, Augusto Mattos e Josefina Pereira de Mattos, são de origens humildes.
 
02
Como surgiu a vocação literária? Seria possível um resumo da sua trajetória?
 
Minhas primeiras leituras foram as revistas em quadrinhos, eram chamadas pelos meninos daquela época de gibi e guri.  Foi aí que conheci meus heróis inesquecíveis: Batman, Capitão Marvel, Super-Homem, Homem Aranha, O Fantasma, Mandrake, Homem Submarino e Tocha Humana. No Cine Itabuna, uma tela mágica seduziu-me com heróis incríveis, Tarzan, Flash Gordon, Dick Tracy, Buck Jones, Durango Kid, Os Três Mosqueteiros, mais o encanto dos desenhos de Walt Disney, o riso com Oscarito e Grande Otelo, O Gordo e O Magro. Quando li “O Escaravelho de Ouro” e “O Fantasma da Rua Morgue”, histórias de Edgar Allan Poe, “David Coperfield”, de Charles Dickens, “Reinações de Narizinho” e “As Aventuras de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, perguntei como é que podia sair tanta coisa da cabeça de uma pessoa.  Penso que desse imaginário cativante, que começou na infância, está o embrião do futuro escritor.  Nas bibliotecas dos colégios em Salvador aprofundei minhas leituras com Cervantes, Shakespeare, Camões, Dante Alighieri, Homero, Ovídio, Voltaire, Artur Schopenhauer, Rousseau, Balzac, Gustave Flaubert, Tolstói, Dostoievski, Eça de Queiroz, Augusto dos Anjos e Machado de Assis, entre outros autores magistrais. Depois, em minhas visitas frequentes à Livraria Civilização Brasileira, passei a ler os brasileiros Adonias Filho, Jorge Amado, Lúcio Cardoso, Autran Dourado, Cornélio Penna, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Drummond, Cecilia Meireles, Manuel Bandeira e os estrangeiros Sartre, Camus, Kafka, William Faulkner, Ray Bradbury, James Joyce, Scott Fitzgerald, Henry James, Herman Hesse, Fernando Pessoa e outros autores excepcionais. Lia tudo que caía em minhas mãos durante os dez anos que vivi em Salvador. Em 1960 escrevi meu primeiro conto “A Corrida”, foi aprovado pelo editor do “Jornal da Bahia”, que era João Ubaldo Ribeiro, e publicado no suplemento desse jornal. Daí para cá nunca parei de escrever, minha corrida tem sido numa estrada a essa altura comprida. São mais de 65 anos de literatura. Minha obra é constituída de 71 livros, de diversos gêneros. Reconhecida com prêmios no Brasil, México, Portugal, Itália e Cuba. Distinguida com a Medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara de Vereadores de Salvador, e a Comenda Dois de Julho da Assembleia Estadual da Bahia. Recebi também o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade Estadual de Santa Cruz, Sul da Bahia. 
 
03
A literatura foi opção, destino ou necessidade?
 
As três coisas. Primeiro foi o leitor, depois o escritor. O que era hábito no início para auscultar a vida tornou-se uma necessidade essencial e, em certa altura de minha vida, de crise existencial aguda, socorreu-me para que eu não sucumbisse. A literatura não muda o mundo, transforma as pessoas. Não resolve os problemas políticos, sociais e econômicos, mas é fundamental como o amanhecer. Sem ela é impossível viver. Essa é minha vida no ar, a de sonhar e a de beijar. No azul meu canto, no azul meu encanto, sem o azul no caos desencanto. Posso ser um grão no deserto onde tudo arrisco, mas sem a literatura a vida não tem graça, não há o riso, a lágrima, o beijo, a planta parindo a flor, o braço ao abraço, o epitáfio, o sentido ante o enigma do mundo.   
 
04
Se nasce escritor ou se torna escritor?
 
A leitura que ia fazendo de bons autores foram me dando medidas para conhecer o ofício. Não se faz literatura só com inspiração, a transpiração é essencial, como um processo de experimentação em que entra o aprendizado de forma e fundo com a sua carga criativa. O resultado devolve ao ser humano o que é dele próprio, a razão e a emoção. Enuncia com múltiplas vozes o testemunho crítico de seu tempo, expressa no texto o que se quer dizer da vida com as suas questões, descobertas e sustos esplêndidos. Algo vai mexendo na alma, dentro com as nossas dores, fora com as do mundo. Faz sofrer, também dá prazer, diverte. Quer saber escrever? Leia os grandes autores. O prazer da leitura provoca a vocação, oxigena a compulsão com os sentimentos de mundo. Acrescento que nessa transpiração, para ter conhecimento do que faço com afinco e de como os outros autores escrevem enredos, criam personagens, versos que marcam, sempre gostei de ler os teóricos e críticos de literatura.  Com eles obtive o instrumental teórico necessário para ler bem uma obra literária e escrever com segurança, sem palpites ou impressões do achismo, uma resenha ou crítica.
 
05
O cronista Rubem Braga manteve durante muitos anos, na revista “Manchete”, uma seção intitulada “A Poesia é Necessária”. Depois, numa crônica, ele conta que houve mudança na direção da revista e foi informado de que a poesia não era mais necessária. E hoje, no século XXI, a poesia é necessária?
 
Sim, angústia e sonho são inerentes ao ser humano, crença e incerteza. A poesia afasta nossos medos, equilibra-nos entre vazios e em tudo aquilo que faz parte de nossas circunstâncias críticas como experiência da existência. A poesia está em tudo, à espera de ser descoberta. Possui uma linguagem tão dela para dizer o indizível, uma atitude própria e profunda para negar todo o peso terrestre que carregamos diante do inexorável.  É a única linguagem que usa a palavra mítica, simuladora da vida, tomada emprestada ao sonho. E o faz com tamanha argúcia e largueza, que nos dá a sensação de ser a mais abrangente de todas para auscultar a existência em sua totalidade. Dizer do mundo em seus caminhos e descaminhos, inaugurar sentidos, penetrar com sabedoria na problemática existencial do indivíduo.   
 
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Como é o seu método com a prosa? Escreve diariamente ou quando dá vontade? Escreve e reescreve?
 
Antes dos tempos eletrônicos, escrevia, apagava deslizes e revisava. De uns tempos para cá com o avanço da tecnologia, digito e aproveito quase tudo, faço pequenas correções. Agora mesmo acabo de escrever o romance “Senhora Eleonora” em quatro meses, se fosse antes seria em mais de um ano. É um romance mediano, de quase duzentas páginas, em que procuro desconstruir o modelo matrimonial imposto pelo machismo e preconceitos numa cidade imaginária, que serve de espaço para os conflitos e atritos das cotidianas relações familiares.    
 
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Nasceu em Itabuna, nossa cidade. O que guarda no coração da sua vivência nela?
 
Minha infância como expressão do sonho e liberdade. Aprendi a nadar no rio Cachoeira, mergulhar e pescar com os amigos, cada um querendo ser herói naqueles ventos afoitos, do prazer e ilusão. Mal a manhã despertava, a aurora acenava para novas aventuras pelos campinhos de futebol improvisados nos terrenos baldios e na beira do rio. Itabuna está dentro de mim com a primeira gravata, a primeira namorada, a primeira hóstia consagrada, o primeiro São João, o primeiro Natal, as festas elegantes do Grapiúna Tênis Clube, a procissão da Sexta-Feira da Paixão. Como nos disse Adonias Filho, é preciso ter vivido muito para saber que para onde você for levará consigo a sua cidade com as suas lembranças. Os filmes de bangue-bangue exibidos no único cinema, frequentado pela garotada, o apito do trem como uma coisa viva, os burros transportando cacau seco pela avenida do comércio, passistas em andadura sob uma música de metal, os sonhos no Ginásio Divina Providência, as partidas da seleção amadora de futebol no Campo da Desportiva, enfim, os pais, os parentes, os amigos, os bichos de estimação e tudo o mais que desaparece um dia para sempre, infelizmente.
 
08
Alguém escrevia na sua família? Havia incentivo literário em casa?
 
Minha mãe contava história para o menino voar, dormir e sonhar. Quanto mais contava, mais ele gostava, e não se cansava. Meu pai queria que eu fosse advogado, escritor não põe comida no prato, ele dizia. Ficou decepcionado quando o filho vendeu o escritório de advocacia e foi para o Rio de Janeiro fazer jornalismo e, ao mesmo tempo, exercer uma carreira literária. Ressalte-se que o pai queria o melhor para o filho, como iletrado, que aprendeu a competir com as duras lições da vida, não podia pensar diferente. O melhor para ele era ser advogado ou médico, só assim o filho seria gente, teria prestígio e ganharia a vida com mais facilidade.
 
09
Na sua juventude, fez parte de algum círculo literário na região grapiúna? Realizaram algum projeto cultural?
 
Em Salvador fiz parte da Geração Revista da Bahia, ao lado de Carlos Falck, Ildásio Tavares, Alberto Silva, Adelmo Oliveira, Olney São Paulo, Oleone Coelho Fontes, Sonia Coutinho, Maria da Conceição Paranhos, Ricardo Cruz e Fernando Batinga. Em Itabuna dirigi a Primeira Jogralesca da Cidade, encenada no Teatrinho ABC, apresentando poemas de Mário de Andrade, Joaquim Cardoso, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, Raul Bopp e Florisvaldo Mattos, interpretados por Roberto Junquilho, Chiquinho Briglia, Gonzales e Kfoury. Como diretor do Centro de Cultura Adonias Filho e Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, apesar de verbas insuficientes, produzimos eventos relevantes. No CCAF lembro a Semana da Consciência Negra, Retrospectiva do Artista Walter Moreira, exposição de pintura por mulheres de Itabuna e apoio a grupos e teatro. Na FICC destaque para o Dia do Índio, com apresentação do toré pelos pataxós na praça Camacã, Natal para Todos, apresentação da Orquestra Sinfônica da Bahia, ampliação do Festival Firmino Rocha, criação de oficinas,  Monumento da Saga Grapiúna, renovação do acervo da Biblioteca Plínio de Almeida, com aquisição na Fundação da Biblioteca Nacional  de dois mil volumes de obras importantes, além de mobiliário novo, lançamento da obra de Plínio de Almeida, Florisvaldo Mattos e autores emergentes, exibição do  Circo Vox Populi, um braço do Circo Soleil, DVDs “Saudosa Desportiva, Gloriosa Seleção”, “Ferradas, Um Berço Amado”, “Itabuna, a História Contada”.   
 
cyro de mattos e adonias filho
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Como conciliava sua vida de advogado com a literatura?
 
Foi difícil. A advocacia foi um bom aprendizado de vida, as bases da sobrevivência, com ela criei meus filhos, correspondi às necessidades materiais da família. Literatura sempre foi minha paixão. Em 1966 fui para o Rio, estava me dando muito bem na metrópole, como jornalista e escritor, mas tive que retornar à terra natal para resolver problemas em família. Já estava casado e com dois filhos pequenos. Como fui ficando a contragosto na terra natal, sem solução para problemas agudos em família, o tempo passava e não retornava para o Rio, sentia-me ameaçado de perder o sonho de ser escritor. Endividado, sem emprego, perdi o que tinha no Rio como redator dos “Diários Associados”, voltei a advogar em Itabuna para sobreviver. A advocacia não conciliava com a literatura, são atividades diferentes, a primeira absorvia a segunda, tinha medo que estivesse dando adeus às leituras e escritos literários. Fui morar em uma fazendinha na região de Ferradas, sem energia elétrica e água encanada. Foram tempos duros, mas sobrevivi aos momentos críticos na difícil lei da vida.  Advoguei mais de cinquenta anos em Itabuna e cidades vizinhas. Consegui não sei como, nesse momento crítico de minha vida, ser advogado e escrever livros em prosa e verso. Foi assim que com muito esforço fui advogado e aos trancos me tornei escritor, bem ou mal, debatendo-me entre incertezas e angústias. Nunca deixei de me refugiar na cidadela do meu sonho literário do qual nunca me separei.   
 
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Meu pai Antônio e meu tio paterno e padrinho, Gervásio Santos, que incentivou bastante minha trajetória como escritor, eram seus amigos. Como surgiu a amizade de vocês?
 
Morávamos na mesma rua, meu pai era amigo de Seu Bispo, o seu avô. Eram homens de origens humilde, iletrados, lutaram muito para sustentar os filhos nos estudos. Tonho, seu pai, foi meu contemporâneo no Ginásio Divina Providência, Era um jovem muito bom de papo, sorridente, dando a entender que estava de bem com a vida. Foi meu goleiro na seleção de futebol do ginásio. Gervásio viajava comigo em meu fusca para acompanharmos a seleção de Itabuna nas partidas do Campeonato Intermunicipal quando o jogo era na casa do adversário. Ele gostava de apostar em nossa seleção, ganhava sempre. Fui parceiro dele na boêmia, nem sempre, não tinha fôlego para acompanhá-lo, o homem era fogo, mandava nas noites da cidade.  
 
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Como foi o primeiro livro? Como aconteceu o processo criativo? Tardou muitos anos para finalizá-lo?
 
Risquei de minha bibliografia meus dois primeiros livros, envelheceram cedo. Considero minha estreia “Os Brabos”, quatro narrativas de ficção escritas quando morava com Mariza e os dois filhos André e Josefina numa fazendinha da região de Ferradas, em condições precárias. Escrevi as quatro narrativas de “Os Brabos” à luz de lampião.  Foi muito sofrido, mas valeu, o livro deu-me por unanimidade o Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras. Publicado pela Editora Civilização Brasileira, uma das maiores na época, lançou-me no circuito nacional das letras.  Alceu Amoroso Lima, relator do certame, observou em seu parecer: “Extraordinária capacidade de dar aos aspectos mais típicos da realidade nacional, em estilo impregnado da nossa fala brasileira, a revelação de um escritor visceralmente nosso...admirável ficcionista.”   
 
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Poderia falar um pouco da sua vida em família?
 
Houve divergências em fase difícil, mas ficamos reunidos com base no amor e crença nos valores cristãos. Minha união com Mariza já dura 60 anos. Ela é minha sustentação, batia na máquina de datilografia meus livros, apontava alguns deslizes, sempre ajudou como a minha primeira leitora. Quando escrevo, na madrugada de um homem só, em silêncio conversando com outras vozes, ela diz: “Cyro, ainda está no computador a essa hora? Venha dormir, meu amor.” Deu-me três filhos e seis netos, todos eles maravilhosos. Inspirado em nossa união física e espiritual publiquei o pequeno livro “Vinte e Um Poemas de Amor”, com ilustrações belíssimas da desenhista baiana Edsoleda Santos. Esse livro foi também publicado em Portugal pela editora Palimage. Teve lançamento na Casa da Escrita da Universidade de Coimbra. 
 
mariza e cyro de mattos e telmo padilha
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Como traduz a literatura do sul da Bahia?
 
Portentosa, nomes como os de Jorge Amado, Adonias Filho, Hélio Pólvora, Jorge Medauar, Sosígenes Costa, Florisvaldo Matos, Sonia Coutinho, Jorge Araújo, Elvira Foeppel, Telmo Padilha, Ildásio Tavares, Marcos Santarrita, Euclides Neto, Ricardo Cruz e Valdelice Pinheiro engrandecem qualquer boa literatura.  Outros autores estão chegando para dar andamento ao legado desse conjunto de escritores. Apesar de cometer o pecado da omissão, cito Heloísa Prazeres, Pilligra, Margarida Fahel, Antonio Nahud, Marco Luedy, Gustavo Felicíssimo, Ruy Póvoas, Heitor Brasileiro e Pawlo Cidade. 
 
15
Teve uma temporada morando fora de Itabuna. Como foi?
 
Vivi um período de cinco anos no Rio de Janeiro, a partir de 1966.  Lá, atuei como redator de “O Jornal” e “Jornal do Comércio”, dos “Diários Associados”. Fui colaborador do “Jornal do Escritor”, de José Louzeiro, redator da “Revista do Turismo” e de “Posto de Serviço”, editadas por Fernando Leite Mendes e Sebastião Nery. Publiquei no “Suplemento do Livro” do “Jornal do Brasil”, editado por Assis Brasil, revistas “Cadernos Brasileiros”, de José Valadares, “Leitura”, de Barbosa Melo, e “A Cigarra”, editada por Herberto Sales e José Cândido de Carvalho. Nesse tempo conheci os escritores Adonias Filho, Herberto Sales, José Cândido de Carvalho, Nélida Piñon, Assis Brasil. Estreitei a amizade com Hélio Pólvora e Sonia Coutinho. Foi um período muito rico em minha vida de jornalista e escritor iniciante, tempo de saudosas lembranças.
 
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Durante algum tempo atuou no jornalismo grapiúna. Trabalhou em algum jornal? Teve colunas fixas?
 
Atuei no jornalismo local durante grande parte de minha vida, como colaborador com textos, crônicas, contos e poemas.  Assinei a coluna “O Aprendiz de Cultura” no jornal “SB Informações e Negócios”, de Hélio Nunes e Nelito Carvalho.  Fiz no ambiente de jornal amizade com Célio Nunes e Roberto Junquilho, bons redatores, e o cronista Manoel Lins.  Assinei durante anos uma crônica semanal para o “Diário Bahia”. Colaborei também no jornal “Agora”, de José Adervan, e “Cacau/Letras”, editado por Hélio Pólvora.  Hoje colaboro, quinzenalmente, com textos de assunto diverso no jornal “A Região”.
 
17

E a experiência como diretor da F.I.C.C.? Foi satisfatória?
 
Não em muitos aspectos. Não tive autonomia para formar uma equipe como desejava. A verba destinada à FICC pelo Executivo Municipal mal dava para pagar os funcionários. Não tive apoio em certas demandas cujos direitos reivindiquei porque pertenciam à instituição. Fiquei por lá quase três anos, engolindo cobras e lagartos, principalmente por parte de jornalistas tendenciosos, que se julgavam donos da cultura local.  Apesar de tudo, com funcionários leais, dedicados e competentes, realizamos eventos culturais. 
 
18
Como é sua vivência nas Academias de Letras?
 
Saudável com a Academia de Letras da Bahia e de Ilhéus. Com a Academia de Letras de Itabuna, da qual sou membro fundador e atual Presidente de Honra, tenho momentos de encanto e desencanto. Por estar mais perto dessa instituição, que ajudei a fundar e crescer, talvez, a convivência às vezes não seja fácil.  Procuro dar às três entidades o que posso de mim, buscando sempre contribuir para a afirmação e valorização de cada uma, apoiado na ética, cumprindo suas finalidades estatutárias.   

19
Qual é a importância do estilo literário?
 
O romancista e crítico Assis Brasil me disse certa vez que o estilo salva o escritor. Quando se fala em Guimarães Rosa logo vem à mente a sua marca na escrita com o canto e plumagem das palavras, em José J. Veiga a impressão digital está na simplicidade para fazer do fantástico uma experiência real, em Jorge Amado vem à tona a sensualidade de sua linguagem, espontânea, fraterna com os excluídos, em nível da fala coloquial. Já em Adonias Filho temos um narrador de estilo elíptico, poético, sempre denso e dramático. Assim cada escritor se expõe com a sua expressão digital para dizer do mundo e dá permanência à sua criação.
 
20
O que pensa do vácuo entre um livro e outro? Qual o sentimento neste espaço de tempo?
 
Porque estou aposentado, de uns anos para cá tenho escrito mais, não sinto esse vácuo. Em certa fase de minha vida, quando fui advogado, e o tempo para escrever literatura ficava absorvido pela profissão que exercia, senti esse vácuo feito de angústias e sonhos. Hoje, embora com o tempo curto, o corpo reclamando com a idade avançada, aproveito o máximo para prosseguir na jornada. Sinto que está chegando a hora de parar.  Se escrevo morro, se não escrevo, morro também, disse Gabriel García Márquez. Adianto que ainda temos quinze livros inéditos. Isso me preocupa, publicar um livro de literatura no Brasil sempre foi difícil, hoje pior ainda, temos mais autores do que leitores, as livrarias desapareceram, as revistas e os suplementos literários, vivemos os tempos da linguagem visual, instantânea e consumista. Quando partir para os domínios de João Terrão como vai ser para que nossos livros inéditos sejam publicados? Meus filhos têm outra visão de mundo, embora Josefina, defensora pública na Comarca de Conquista, goste muito de ler.     
 
21
Os seus livros tiveram a repercussão merecida? Qual o seu preferido?
 
Receberam prêmios relevantes no Brasil e exterior, são adotados na escola e universidade, alguns sofrem reedições, outros estão esgotados. São adquiridos pelos programas de governo para distribuição nos colégios e espaços de cultura. O pequeno livro “Vinte Poemas do Rio” foi indicado para o vestibular da UESC durante três anos, vendeu cerca de vinte mil exemplares.  Entre meus livros preferidos cito “Os Brabos”, “O Menino Camelô”, infantil, “Cancioneiro do Cacau”, “Os Ventos Gemedores”, “Infância com Bicho e Pesadelo e Outras Histórias”, “Vinte e Um Poemas de Amor”, sem esquecer os três pequenos volumes inspirados no rio Cachoeira. É difícil escolher um. Fico contente por ser traduzido por excelentes tradutores. Alegre como autor Ilustrado por Juarez Paraíso, Santi Scaldaferri e Calazans Neto. Que mais posso querer? O tempo julgue.
 
22
Gostaria de falar de algumas situações que o deixam desolado e, por outro lado, de situações que, eventualmente, o deixam animado?
 
Ao nosso ver, o problema não é de esquerda nem de direita. É do próprio homem, que ainda não se desgarrou do tempo da caverna, tornou-se estranho à natureza. Vem escrevendo sua história às avessas, mais para urubu do que para sabiá. Há milênios não aprendeu a amar os outros. Vamos escutar os passarinhos, não há remédio melhor. Sustentar esse planeta, a morada de todos nós, com a leveza de ser na sua canção azul. Bom mesmo é o homem ter criado as artes, as ciências e os esportes.
 
23
Como é que encara a morte?
 
Digo como meu personagem do conto “Sina”, do livro “Os Recuados”, “só sei quem nos botou aqui em cima, deve saber tirar ainda melhor.”
 
24
Qual o seu livro mais recente. O que diz dele?
 
“A Mulher que Virou Beija-flor e Outras Crônicas” é o meu sexto livro no gênero. A capa é do genial Juarez Paraíso, muito bonita, e o prefácio é do jornalista e cronista Henrique Fendrich, editor da revista “Rubem”, na qual só publica cronistas, eu sou um deles, quinzenalmente.  Como nos anteriores, nesse livro recente entra minha infância como expressão do sonho e liberdade, se faz presente com as pegadas da ternura. Nos textos de diversos assuntos, entre o jornalismo e a literatura, há sempre um certo lirismo que vem do que vejo e sinto, mexe comigo através de seres e coisas, como resultado de uma experiência de vida. Os críticos acham que sou um cronista da memória, vinculado à minha cidade, mas não se pode deixar de considerar que também faço incursões na cidade moderna, onde falo de amigos que já se foram para o outro lado, de momentos flagrados nas   pessoas velhas com a sua poesia e fala cheia de afetividade. Nesse tom com afeto é como meu novo livro de crônicas apresenta-se, procuro trazer com ternura as marcas dos outros que escrevi no gênero.
 
25
O que anda escrevendo?
 
Acabei de escrever um romance que acontece numa cidade imaginária, onde mulheres sucumbem pelas vilezas machistas de uma união matrimonial montada para preservar a identidade familiar e a expansão do patrimônio. Pobres mulheres, utilizadas como objeto, ao prazer do chefe, como servas da cama e mesa. De destinos tramados para a humilhação, uso e abuso, no palco da passividade acobertadas de tristeza e melancolia. Escrevi durante quatro meses, em transe, quase não dormir no diálogo dolorido com essas mulheres, de triste sina, triste final. Estão no mundo como sofredoras resignadas do ver, entrelaçadas por conduta impiedosa. Juntas se tornam pelo destino como protagonistas do romance negativo da vida.  
 
26
Concluindo, lembrarei alguns escritores e poetas grapiúnas. Se possível, resuma em poucas linhas algo sobre cada um. O que desejar. Importância literária, momentos de amizade etc.
 
FLORISVALDO MATTOS
(1932. Uruçuca / Bahia)
Meu amigo e patrício. Poeta de minha admiração. De lastro clássico, versos extensos.  De estro enorme, no épico, histórico, solidariedade social, evocativo do campo com fatura lapidar.  Desde o início, o bardo de Água Preta une o eu lírico ao artesão da palavra com os instrumentos do sonho, sonoridades e metáforas incandescentes de esperança resultando no discurso vigoroso, encanta a quem lê.
 
HÉLIO PÓLVORA
(1928 – 2015. Itabuna / Bahia)
Meu conterrâneo, deu-me o prazer de ser o primeiro crítico que se debruçou sobre um livro de nossa autoria, foi muito generoso, não precisava tanto. É visível que a vocação desse contista tende para as intenções de recolher e transformar na arte genuína as impressões que a vida propõe nos momentos habitados por vozes vertiginosas. Seu conto “Os Galos da Aurora” é um primor da prosa de ficção curta. Bastava que escrevesse as quatros narrativas antológicas de “Mar de Azov” para ter seu lugar assegurado na literatura moderna brasileira.
 
JORGE AMADO
(1912 – 2001. Itabuna / Bahia)
Homem de coração bom. Mantivemos uma boa relação de amizade. Também nascido em terras de Itabuna. Escritor grandão, de linguagem sensual, despretensiosa, em sua maneira fraternal de conceber o mundo. Para ele é mais importante o conteúdo, muitas vezes interligado na trama, do que a palavra com a qual a vida é recriada. Construtor de personagens que ficam para sempre. Faz pensar e ao mesmo tempo rir sua mensagem de esperança, muitas vezes de fraternidade, vozes cheias de liberdade na escrita irreverente.
 
JORGE MEDAUAR
(1918 – 2003. Uruçuca / Bahia)
Também foi poeta, esse contista de Água Preta, de estilo simples, cheio de humanidade ingênua em suas histórias que prendem, desenhadas como flagrantes da vida diária na cidade pequena. Criou seu feudo literário recheado dos costumes de seu tempo, como antes fez Sherwood Anderson com os contos que acontecem na imaginária Winesburg, Ohio, cidadezinha industrial no Meio-Oeste dos Estados Unidos, em 1919. Esse escritor de sangue árabe reveste-se de uma prosa gostosa de escutar, ler no bilhete, carta, notícia do jornal. Aparentemente fácil, nos seus contos há muita observação da vida documentada com sensibilidade.
 
SONIA COUTINHO
(1939 – 2013. Itabuna / Bahia)
Nascida em Itabuna, cedo mudou-se com a família para Salvador. Viveu no Rio de Janeiro onde exerceu o jornalismo e a tradução para sobreviver. Na traiçoeira invenção da vida, os fados não lhe permitiram que desfrutasse do lado azul da canção. Ficcionista de solidão em família, de atritos e conflitos, pungentes, doloridos. Um momento singular da ficção brasileira, ao nível de Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles.
 
SOSÍGENES COSTA
(1901 – 1968. Belmonte / Bahia)
Poeta nascido em Belmonte, que lhe inspirou “Iararana”, seu mito nativista.  Quando viveu em Ilhéus, viu a cidade como um búfalo fosfóreo, inventou uma sereia que se despiu do mito, depois de ter lido Marx e Freud, e deu uma festa no mar. Poeta de signos irregulares, mesclado nas vertentes barroca, parnasiana, simbolista, modernista e popular. De tardia repercussão nas letras brasileiras. Desenhou a flor do cacau toda orvalhada e moça. Mostrou que na lira não habitam somente versos malditos, também existem as flores, os pavões de audição colorida, fazendo a vida rútila e festiva.
 
TELMO PADILHA
(1930 – 1997. Itabuna / Bahia)
Nascido em Ferradas, distrito de Itabuna, onde também nasceu Jorge Amado.  Em seu “Voo Absoluto” há uma difícil travessia, exposta aos olhos como impossível de aceitar. Seu discurso aprofunda-se nos temas impregnados de perda, fuga, medo, solidão e morte. Em “Provação”, livro póstumo, o clima lírico do eu sereno está impossibilitado de acolher a adversidade da vida armada pelo fato estúpido, inexplicável, da derradeira verdade.  A tragédia que ceifou o filho amado vem ao debate através do eu reflexivo, lamento em grito, em que a palavra aflora intensa na dor, emerge das silabas feridas na alma em delírio, do coração que sangra, e não tem cura. Um livro que merece uma edição digna de um poeta verdadeiro.
 
VALDELICE PINHEIRO
(1929 – 1993. Itabuna / Bahia)
Outra poeta nascida em Itabuna. Seus poemas bem construídos integram-se no repertório valoroso da poesia produzida na Bahia. Atestam que, se a melhor poesia produzida no Brasil hoje está no Nordeste, como foi lembrado pelo tradutor e poeta Ivan Junqueira, acontece principalmente na Bahia. E, entre os baianos, Valdelice Soares Pinheiro tem sua voz, sua impressão digital, seu talento, sua ideia imaginada com precisão e saber, que se inscreve em patamar de afirmativo nível literário.

A OBRA de CYRO de MATTOS
 
FICÇÃO
Os BRABOS (1979)
 
DUAS NARRATIVAS RÚSTICAS
(1985)
 
Os RECUADOS
(1988)
 
NATAL das CRIANÇAS NEGRAS
(2011)
 
BERRO de FOGO e OUTRAS HISTÓRIAS
(2013)
 
Os VENTOS GEMEDORES
(2015)
 
O VELHO e o VELHO RIO
(2016)
 

TODO o PESO TERRESTRE
(2015)
 
FISSURAS e RUPTURAS: VERDADES
(2017)
 
HISTÓRIAS de ENCANTO e ESPANTO
(2019)
 
PEQUENOS CORAÇÕES
(2020)
 
NADA ERA MELHOR
(2020)
 
INFÂNCIA com BICHO e PESADELO 
e OUTRAS HISTÓRIAS (2021)
 
REPÚBLICA PINAPÁ do PIRIPICADO
(2022)
 
HISTÓRIAS BRASILEIRAS
(2023)
 
Do MENINO se FEZ o HOMEM (2024)
 

CRÔNICA

O MAR na RUA CHILE (1999)

ALMA MAIS QUETUDO (2006)

O VELHO CAMPO da DESPORTIVA (2010)

Um GRAPIÚNA em FRANKFURT (2013) 

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ  e OUTRAS CRÔNICAS (2021) 
A MULHER QUE VIROU BEIJA-FLOR 
e OUTRAS CRÔNICAS (2025) 
 
POESIA
CANTIGA GRAPIÚNA (1981)
 
No LADO AZUL da CANÇÃO (1984)
 
LAVRADOR INVENTIVO
(1984)
 
VIAGRÁRIA
(1988)
 
CANCIONEIRO do CACAU
(2002)
 
Os ENGANOS CATIVANTES
(2002)
 
VINTE POEMAS do RIO
(2003)
 
CANTO a NOSSA SENHORA das MATAS /
GESANG auf UNSELE LIEBE FRAU 
von DEN WÄLDERN (2004)
 
De CACAU e ÁGUA / Of CACAO and WATER
(2006)
 
POEMAS ESCOLHIDOS / POESIE SCELTE
(2007)
 

VINTE e um POEMAS de AMOR
(2011)
 
ECOLÓGICO
(2013)
 
ONDE ESTOU e SOU / DONDE ESTOY Y SOY
(2013)
 
A CASA VERDE e OUTROS POEMAS
(2014)
 
POEMAS de TERREIRO e ORIXÁS
(2019)
 
POEMAS IBERO-AMERICANOS
(2020)
 
O DISCURSO do RIO
(2020)
 
DEVOTO do CAMPO
(2020)
 
GUITARRA de SALAMANCA
(2022)
 
ÁGUAS de MEU RIO
(2022)
 
CAPANGA de SONETOS
(2023)
 
ZURUBUBURANA
(202
 
joão ubaldo ribeiro, cyro de mattos e amiga
ENSAIO
A ANOTAÇÃO e a ESCRITA
(2016)
 
As CRIAÇÕES de ADONIAS FILHO
(2017)
 
PROSA e POESIA no SUL da BAHIA
(2020)
 
KAFKA, FAULKNER, BORGES e 
OUTRAS SOLIDÕES IMAGINADAS
(2021)
 
Os SABERES nas NARRATIVAS de JORGE AMADO
(2022)
 
OLHARES do LEITOR
(2024)
 
TEXTOS DISPERSOS
AQUELA FACULDADE, PROSA e VERSO
(2007)
 
A ESTRADA das LETRAS
(2017)
 
LITERATURA INFANTOJUVENIL
O MENINO CAMELÔ
(1991)
 
PALHAÇO BOM de BRIGA
(1993)
 
O CIRCO do CACARECO
(1998)
 
HISTÓRIAS do MUNDO QUE se FOI
(1997)
 
O GOLEIRO LELETA e OUTRAS FASCINANTES 
HISTÓRIAS de FUTEBOL
(2005)
 
O MENINO e o BOI do MENINO
(2007)
 

O MENINO e o TRIO ELÉTRICO
(2007)
 
RODA da INFÂNCIA
(2009)
 
LOROTAS, CARETAS e PIRUETAS
(2011)
 
O QUE EU VI POR AÍ
(2014)
 

ORATÓRIO de NATAL
(2014)
 
O CIRCO no QUINTAL
(2014)
 
MINHA TURMA AGORA DORME
(2015)
 
MINHA FEIRA TUDO TEM COMO ONDA VAI VEM
(2015)
 
A POESIA é um MAR, VENHA COMIGO NAVEGAR
(2022)
 
EXISTE BICHO BOBO?
(2022)
 
RESPONDA CERTO se FOR ESPERTO
(2022)
 
TIQUINHO de TERNURA
(2022)
 
A POESIA de CALÇA CURTA
(2022)
 
O MUNDO é uma CRIANÇA 
com PALHAÇO e LAMBANÇA (2025)
 

 Os RECUADOS
 
 conto de Cyro de Mattos
 
- Seu nome?
- Diacuí.
- Casada?
- Sem homem.
- Idade?
- Sei não.
- Vive de quê?
- Vender pente, espelhinho e outras coisas miúdas.
- Quantos filhos?
- Oito com Dianuri.
- Os outros vivem com você?
- Estão por aí espalhados pelo mundo.
- Quando foi que comprou o querosene?
- Pela tarde. Tinha ido comprar um pouco de sal e café na barraca de Pedro Mineiro.
Foi aí que eu vi a lata de querosene lá no canto e me lembrei de Dianuri.
- Você não sabia que o fogo podia pegar rápido nos barracos vizinhos? - o delegado pergunta, observando que a feira ia virar cinza em pouco tempo, se o povo todo não chega depressa com as latas cheias d’água.
- Só queria botar fogo nele.
Sensação de mal-estar percorre os cantos da sala pequena.
Murmúrios saem das pessoas que se apertam na porta, janela e do lado de fora.
O delegado recua um pouco na cadeira.
Passa o lenço na testa.
- Quem dava dinheiro pra ele beber?
- O povo daqui mesmo da feira.
- Você não sabia que ele era seu filho?
Uma careta desenha-se no rosto da mulherzinha, puxa os olhos e se forma de maneira sofrida.
- Eu não agüentava mais. Ele só chegava em casa bêbado. Parecia um bicho. Não tinha dia que não fosse achar ele dormindo na sarjeta.
Pára novamente, faz um esforço e continua.
- Tinha vez que ele batia com a cabeça na porta, falava pra ele mesmo: bicho feio, bicho imundo, bicho besta, camacã que não presta pra viver na cidade.
“Lugar de índio é no meio da sua gente, lá no mato”, repetia, soluçando.
A mulherzinha pára mais uma vez, aperta as mãos pequenas, respira fundo. Toma fôlego.
- Ele era meu filho... mas na hora, seu delegado, só fiquei pedindo que o fogo queimasse logo ele de uma vez.
O delegado manda que leve a mulherzinha para cubículo nos fundos da delegacia, que serve como cela.
Opiniões desencontradas saem agora da pequena multidão no lado de fora. Vozes confusas comentam sobre a confissão que Diacuí havia acabado de fazer ao delegado. No meio da multidão, um homem velho nada diz sobre a confissão da mulherzinha.
Permaneceu calado durante todo o interrogatório em que Diacuí havia sido submetida. Sua expressão de rancor é a de quem acabou de provar o lado amargo da vida ligado ao amor em toda a sua extensão. Ele mora num barraco vizinho ao de Diacuí.
Conhece a dor que a mulherzinha carregava no peito, drama que vinha sendo sustentado por ela em ombros tão pequenos. Ela via o filho bêbado todos os dias e nada podia fazer para afastá-lo da vida infeliz que levava. Pobre diabo que andava pelas ruas da cidade sem rumo, falando bobagens pela boca que nunca parava.
O mormaço do dia envolve a sala vazia nesse instante.
Luz do céu vidra a manhã lá fora, reverbera sobre as coisas na feira.
A mulherzinha transpira tremores misturados com cinzas. Há suspiros fundos, profundos, no cubículo quase sem luz. Minutos passam num ritmo que fere quando ela começa a lembrar o que tinha de ser. Até que chega essa brisa para envolvê-la, trazendo certo alívio no peito que não pára de gemer. A brisa permanece no rosto sob a pele enrugada, em carícia de lenço. Nos olhinhos de sagüi, que piscam nervosos. Vermelhos e úmidos.
 

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