março 16, 2015

..................... “O ESCRITOR BRASILEIRO está JOGADO no LIXO”





Entrevistando JORGE MEDAUAR
São Paulo, novembro de 1989
 
Imagens:
HIROSUKE KITAMURA
(1967. Osaka / Japão) 

 
Sobre a literatura de JORGE MEDAUAR, escreveu Guimarães Rosa: “Há rigorosa autenticidade de campo, meio, cenário, há muita observação direta, documentando certo, sem atravancar. Tudo humano. Tudo arte, também. Medauar é mestre no unir os aspectos, as coisas. E, a língua, uma linha bem achada, padrão do melhor. Acredite: o que digo, é o que acho”. Dele, afirmou Carlos Drummond de Andrade: “tem olhos perscrutadores, dotados de simpatia e compreensão”. Suas histórias trazem a força dos ancestrais que o trouxeram ao mundo como brasileiro de origem árabe, da milenar civilização síria, como afirma neste poema:  
 
Sabei, sabei que fiz de antigos cedros
Barcos que a infância pôs à flor das ondas:
Meu pai, que é Medauar, teceu-me as velas
E a filha dos Zaidans, que é minha mãe,
Pôs amoras de mel no tombadilho.
Nesse barcos navego, marinheiro
Fenício do Zodíaco e dos trópicos
Vermelhos de lamento e de canção

Escritor dos humildes e oprimidos, da memória e solidão, o grapiúna JORGE MEDAUAR recebeu seu primeiro grande reconhecimento com o Prêmio Jabuti de 1959, com “Água Preta”, na categoria Contos, concedido no mesmo ano a seu conterrâneo, Jorge Amado, na categoria romance. Figura singular na literatura brasileira, criou uma estética literária ligada ao mundo sul-baiano como também à sua própria natureza. Com mais de 40 anos de literatura, o escritor nascido em Água Preta do Mocambo (hoje Uruçuca) e traduzido em vários países, publicou 15 livros, além da participação em antologias. O seu prestígio abriu caminho para uma frutífera geração de escritores e poetas das Terras do Sem Fim, destacando-se Hélio Pólvora, Telmo Padilha, Florisvaldo Mattos, Sonia Coutinho e Cyro de Mattos. 
 
Publicou o primeiro livro em 1945, “Chuva sobre tua Semente” (poemas), e o mais recente no ano passado, “Contos Encantados” (infantil). Aos 71 anos, casado com a ilheense Odete, tem dois filhos e mora em São Paulo há várias décadas. Leitor assíduo, confessa a influência do russo Anton Tcheckov na sua escrita e acredita que existem duas linhas mestras na literatura: a do escritor bem construído, sério com a linguagem, que não faz concessões, e a do que é justamente a outra face da moeda. Para entrevistá-lo, esperei calmamente duas horas na sua biblioteca particular. Li algumas páginas de O Coração das Trevas de Joseph Conrad, deslizei os dedos pelos teclados da velha Remington esverdeada e bisbilhotei a adega com vinhos importados (logo seria convidado para uma taça de vinho do Porto). Ainda matando o tempo, abri um JORGE MEDAUAR de 1949, “Morada de Paz, lendo: “Estes dias não me pertencem: passam / Sob a indiferença de meus olhos / Meus cabelos e minha boca, passam / Irremediavelmente passam”.  Logo estaria diante de um dos mais férteis prosadores da literatura brasileira.

Muitos escritores se queixam da falta de leitores. Acusam a televisão de asfixiar a literatura. Concorda?

Não. Diziam algo parecido na época de ouro de Hollywood e o número de livros publicados só fez aumentar. A literatura continua viva, o que se tem reduzido é a boa literatura. Hoje é difícil encontrar um Machado de Assis. O escritor atual não se preocupa em cuidar da língua e de outros ingredientes proveitosos.

Esses ingredientes proveitosos determinam a qualidade do escritor?

Exatamente. Só assim ele será bom, dominando o seu ofício. O mesmo pode ser dito de um carpinteiro.

Poderia citar alguns escritores que dominam o seu ofício?

Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Jorge de Lima e Monteiro Lobato são grandes nomes da literatura.


O senhor segue algum método particular ao escrever?

Sou um escritor impetuoso, não trabalho diariamente, só quando um tema me agarra, levando-me a escrever. Cito umas palavras que ouvi certa vez de Graciliano: “tem dias, quando termino um capítulo, em que sinto um verdadeiro orgasmo”. É o meu caso. O que faço é tentar compreender meus personagens. Coloco-me no lugar deles, quer seja um homem ou uma mulher. O que me interessa é viver por procuração o que esse personagem vive. Esqueço-me do que eu faria naquele lugar. Outra coisa, detesto revisar, corrigir.

Sua literatura prima pela autenticidade, palco de imagens e personagens realistas. Consegue este resultado através de pesquisas ou a memória comanda o espetáculo?

Sou um memorialista, mas sempre volto às minhas bases para não perder o passado, afinal a memória caminha de mãos dadas com a fantasia. Percebo, inclusive, que há pessoas que se reconhecem nos meus livros, outros que não se reconhecem de todo. Dou uma visão do que lembro no meio de milhares de outras. É difícil falar do passado como se fosse imutável. Quando se pega num casal que tenha vivido uma história, e se ouve um e outro, tem-se duas versões divergentes. É o princípio da literatura, não há a verdade absoluta.

Nunca se interessou em escrever peças teatrais ou roteiros para cinema e televisão?

Fiz o texto teatral “A Bomba da Paz”. Está engavetado. Não tenho talento para esses veículos.


O senhor se divide entre a literatura, o jornalismo e a publicidade...

Trabalhei muitos anos como jornalista e publicitário. Agora estou aposentado. De vez em quando escrevo para o Estadão, a Folha de S. Paulo ou A Tarde, mas sem qualquer compromisso. O publicitário, vez ou outra, também faz um free-lancer. Mas a literatura sempre foi e continua sendo o meu interesse maior.

Mesmo admirado e com uma longa trajetória, não é best-seller. Se sente injustiçado por isso?

Nunca optei por esse caminho. O que determina um best-seller são certas concessões. Recentemente saiu um livro chamado “O Açougueiro” que pretende ser literatura e não é. Não passa de erotismo barato. É uma obra pronta para fazer parte da lista dos mais vendidos. O sucesso também é uma faca de dois gumes. Quando alguém tem sucesso, há uma dupla reação: por um lado, as pessoas querem abraçá-lo; por outro, querem sufocá-lo, destruí-lo. Os que escrevem não conseguem entender por que é que não são eles que se tornaram conhecidos, que tiveram sucesso. Pensam sempre que é por causa do outro, que lhes barrou o caminho.

O erótico seria a chave do sucesso comercial? É o que o leitor espera?

Entre outras coisas. O leitor espera prazer, satisfação e sair da leitura acrescentado de alguma coisa. Isso só acontece quando há um encontro íntimo entre autor e leitor.


Depois de muitos anos escrevendo estórias curtas, crê que o conto tem uma legião de fiéis?

Constato que o conto vende muito mais hoje em dia. Nós vivemos numa época de velocidade, de falta de tempo, e o conto, por ser um romance curto, pode ser lido em poucos minutos. Ele está mais vivo do que nunca. Existem jovens escritores de talento que continuam acreditando nele. Você, por exemplo. Li atentamente e com prazer os seus contos “As Queridinhas” e “Diário de Loucura e Razão, publicados no Cacau/Letras.

Fico honrado. O mundo editorial atual merece aplausos?

Está brincando. Estou desencantado com o marketing e a mídia desse país. Dois ou três escritores são apoiados e acabou-se. Falta entusiasmo pelo livro. O escritor brasileiro está jogado no lixo. O mercado editorial só se preocupa com literatura estrangeira. Isso sufoca o autor nacional, dá raiva, impõe certo complexo.

Os suplementos literários apoiam o autor brasileiro?

Nem sempre. Mesmo assim são necessários até quando são ruins. Suplementos têm sua validez. Até o da Folha de S. Paulo, por exemplo. Mas quem sabe um dia tomem outro rumo e descubram a literatura local.
Vive há muitos anos em São Paulo. Se sente parte da cidade?

Não sou paulistano, apesar de adaptado a esta grande cidade. Continuo sendo de Água Preta e assim sempre será. São Paulo é uma loucura, uma cidade desgastante, que mata e envenena. Existem compensações, principalmente na área artística, mas somos obrigados a conviver com o crime, a poluição e a dor.

Um dia voltará a viver na Bahia?

Gostaria de voltar a viver na cidade em que nasci. Mas quando penso nessa ideia, lembro-me de Adonias Filho dizendo que também não há sossego num lugar pequeno, afinal sempre somos reconhecidos e apontados por muita gente. Nos lugares pequenos o visível e o invisível, o permitido e o proibido são mais evidentes. Valorizam demais as aparências, ao que as pessoas vão dizer.

Esteve recentemente no Sul da Bahia. Qual a sua impressão?

Mudou muito e toda mudança é sempre para melhor, embora tenha notado algumas coisas ruins, como os assaltos às fazendas de cacau. É, porém, sintoma da miséria generalizada. Esses assaltantes não têm emprego ou são mal pagos. São resultado da deformação das elites, que estão aidéticas, doentes.


Diante deste quadro, qual seria a solução?

A única solução seria abandonar o capitalismo. Os modelos de governo que tivemos até agora são falidos, não deu em nada. Saímos do feudalismo para a república e agora estamos indo pra onde? As coisas estão cada vez mais piores. Fala-se muito, mas a realidade está carregada de miséria, terrorismo, xenofobia e racismo. Infelizmente eu não vou saber o que acontecerá no futuro, mas deixo como espião da vida, como dizia o Mário de Andrade, o meu neto, você, os leitores. Vocês são responsáveis pelo que vier. É preciso vigiar com eficácia o resultado das eleições presidenciais. É preciso vigiar a vida, o cotidiano, as nossas ações.

Como é o cotidiano do escritor Jorge Medauar?

Sou um homem vulgar, comum mesmo. Quando estou com saudades da Bahia, triste, gosto de passear de ônibus ou de metrô sem nenhum destino. Leio, escrevo quando sinto vontade. Quando tenho problemas tento resolvê-los pela literatura. Há quem vá para os tribunais, há quem ataque com uma faca, eu resolvo com a literatura. Sou casado há uma eternidade e nunca converso sobre literatura com a minha mulher. Ela não sabe quantos livros escrevi, lê o que faço e boceja, dormindo no meio do relato. Esta é a minha rotina diária.

Nota
Jorge Medauar morreu em 3 de junho de 2003, aos 85 anos.






15 comentários:

Leonidas Moura disse...

Realista, pragmático. Mas parece reservado... Conheço muito pouco de seu trabalho, tornou-se mais interessante agora. Gosto de saber dos autores que leio, eles nos dão pistas rsrs

Elton Sdl disse...

Ótima entrevista. A sabedoria transborda em cada linha.

Cronopios Pipol disse...

Parabéns pela Antonio pela entrevista. Gostaria muito de publicar no Cronópios. Você me autoriza??

Perla Nahum disse...

Menina, ainda, conheci Jorge Medauar. Era amigo de meu padrinho Claudio Jorge, publicitário talentoso, mente brilhante. Tudo isso, nos anos dourados da publicidade no Brasil, liderados pela Multi Propaganda. Jorge era profundamente respeitado, admirado, por seu talento que sensibilizava

Perla Nahum disse...

Belo texto, linda página, Antonio nahud

Bety Costa disse...

e a lixeiratura brasileira

Neuzamaria Kerner disse...

Grande amigo!

Adelaide Ninck disse...

Muito bom o seu texto, como sempre, amo..e a entrevista com o escritor, filho da nossa terra.. Adorei!! As fotografias que ilustram o post são maravilhosas..!! Obrigada, meu querido, pela partilha!! Beijos!!

Ynha Dias disse...

Lindo!

Mário Lúcio Ferreira Ferreira disse...

Maravilha amigo...muito grato!!!

Maria Vilani Madeiro disse...

"A única solução seria abandonar o capitalismo e partir para o socialismo. Os modelos de governo que tivemos até agora são falidos, não deu em nada. Saímos do feudalismo para a república e agora estamos indo pra onde? As coisas estão cada vez mais piores. Fala-se muito, mas a realidade está carregada de miséria, terrorismo, xenofobia e racismo. Infelizmente eu não vou saber o que acontecerá no futuro, mas deixo como espião da vida, como dizia o Mário de Andrade, o meu neto, você, os leitores. Vocês são responsáveis pelo que vier. É preciso vigiar com eficácia o resultado das eleições presidenciais. É preciso vigiar a vida, o cotidiano, as nossas ações".

Águeda Damião disse...

Valeu mto!

Neuzamaria Kerner disse...

Quanta saudade me deu agora lendo a entrevista...

Socorro Lira disse...

excelente

Florisvaldo Mattos disse...

Fomos conterrâneos. eu e o grande contista Jorge Medauar, antes de Água Preta do Mocambo passar a chamar-se Uruçuca (1942), mas quando lá cheguei, menino, ele, já homem feito, já se tinha ido. Só vim a conhecê-lo em 1991, em São Paulo, na Bienal da Nestlé, apresentado por outro contista de peso, o itabunensse Hélio Pólvora. Levou para almoçar em sua casa no Brooklin, almço alegre e farto, regado a vinho francês da melhor cepa. Um grande escritor, esse baiano da Região do Cacau. Seus contos do livro "Água Preta" (1958) são obras-primas.