março 27, 2021

....................................................................... O SILÊNCIO de DEUS




Ilustrações: HANS HOLBEIN, o VELHO
(1460 – 1524. Augsburgo, Alemanha)
 
 
Escute-me. Serei sincero. Meu amor morreu há quase cinco anos. Eu o queria profundamente. Naquele dia sombrio, senti o silêncio de Deus. Não temo a morte e nem tinha razões para viver, mas decidi seguir adiante. Não por mim, mas para ser útil intelectualmente aos demais. Quando era jovem tive sonhos de grandeza. Queria ser um homem que deixasse sua marca no mundo. A classe de ambição estúpida que se tem quando é imaturo. Nada sabia da maldade e da crueldade. Durante muitos anos fui inocente como um menino. Entretanto, a vida deu uma reviravolta e monstros surgiram no caminho.
 
Negava-me a ver o que acontecia, esnobei a cruel realidade. Até então eu vivia num mundo encantado. Foi um golpe duro. Percebi que era um miserável ignorante, mimado e ingênuo. Pedi proteção à Deus para enfrentar a catástrofe que me atingia e não tive respostas. Diante do silêncio sagrado, a literatura me amparou, me acalentou, me ajudou. Anos se passaram. Nos últimos dias, relendo os “Evangelhos”, cheguei à “Paixão de Cristo” e voltei a meditar sobre o silêncio divino. Acredito que o enfoque no sofrimento físico de Jesus Cristo está equivocado. Afinal, muitos sofreram tal dor na carne, alguns até mais.
 
Seu sofrimento durou pouco. Umas quatro horas, calculo. Constatei no relato um sofrimento muito maior que o físico. Explico-me. Todos os discípulos de Cristo não entenderam o significado da “Última Ceia”. Quando os agentes da lei vieram para prendê-lo, eles fugiram, e Pedro negou o Mestre. O Homem de Nazaré havia falado com eles durante três anos. Haviam convivido diariamente, mas não entenderam o que Ele queria dizer. Todos o abandonaram e o deixaram completamente só.
 
Esse é o maior sofrimento: a compreensão de que ninguém nos compreende, o estar sozinho quando se necessita confiar em alguém. É terrivelmente doloroso. No entanto, para Cristo, o pior estava por chegar. Quando foi cravado na Cruz e ficou ali, pendurado, sofrendo, gritou: “Deus, Deus meu, por que me abandonou?”. Gritou com todas as suas forças. Pensou que seu Pai do Céu o havia abandonado. Acreditou que tudo o que pregara era mentira. Teve grandes dúvidas minutos antes de morrer. Esse foi o pior sofrimento de Jesus Cristo. Refiro-me ao silêncio de Deus.


março 13, 2021

..................................... A PAIXÃO segundo ANTONIO NAHUD



A paixão, este sentimento de intensidade forte, arrebatador, surgiu inicialmente na minha juventude de maneira tímida. Nesta reflexão escrita, alternando cenas do passado longínquo e de um passado recente, exercitarei recordações dengosas e dolorosas, entre arrebatamentos e promessas não cumpridas. Ao revisitar a história, termino por confrontar os fantasmas que me assombram. Investi em paixões contidas, platônicas, e outras ardentes, explosivas, de corpo e alma. Em verdade, nunca temi o ato de amar. Sempre fui capaz de coragem para viver a paixão. Por isso, sofri ante romances irrealizados ou em deixar partir o amor, mas jamais aceitei a condenação de uma vida medíocre e infeliz.

O filósofo Rousseau dizia que “na juventude deve-se acumular o saber e na velhice fazer uso dele”. Tento ao escrever. Do verbo latino patior (sofrer ou suportar uma situação difícil), a paixão é fulminante. Todos deveriam ter alguma paixão. Das mais simples às mais arriscadas: paixão por chocolate, por voar, beber, comer, conduzir velozmente. Paixão por sexo, cantar, ler, escrever, dançar, viajar etc. Até mesmo paixão pela vida, que deveria ser a maior de todas. De fato, uma vida sem paixão é inconcebível, já que apaixonar-se é essencial para o estímulo do existir. Uma vida sem ela está fadada ao fracasso, faltando o impulso irresistível para seguirmos.

Não há como negar, a paixão move o mundo. Sabe-se que a fome ocasiona fraqueza e, por fim, a morte. Tal qual o alimento é necessário, assim também é apaixonar-se. Ao trabalharmos sentindo excitação é porque há paixão. Se estudamos e absorvemos conhecimento com prazer, há paixão. Naturalmente, a paixão leva também a suspiros eróticos, ciúmes, lágrimas e até tragédias, especialmente quando não é correspondida. Afinal a paixão irrealizada não se cala, corrói. Um sentimento intenso e vivo que, uma vez não concretizado, permanece em aberto, a esperar algo (ou alguém) capaz de dar-lhe um desfecho digno.

A paixão revela-se em plenitude como um segredo encantado. É um elemento imorredouro, perene, infalível: não se pode evitar. Um dos seus grandes inimigos é a morte. Eu formei um casal apaixonado, a viver um casamento feliz, interrompido brutalmente pelo suicídio e sepultando a felicidade de maneira permanente. A paixão que sentia, um sentimento intenso, tornou-se inconcretizada, definitivamente impossível. Não podia recobrar o amor falecido. A morte impedia. Durante anos estava sempre a vagar, perdido no infinito, em estado de amor puro. Preso numa viuvez vazia, destruído pela devoção imorredoura - uma paixão da qual não podia me libertar. Era como uma prisão perpétua, consumido pela frustração de saber que a paixão seguiria irrealizada, em suspenso, proibida de abrir-se para as intempéries da vida. Nesta época, atingi o estágio desesperador de quem ama, mas está impedido de amar por um obstáculo intransponível: a morte.

A paixão é uma experiência imortal, um sentimento tão intenso que, mesmo após décadas, ainda pode nos consumir. A sua história raramente chega a um final. Tive uma paixão infinita no tempo em que morei em Barcelona, na Espanha, de sentimento irrealizado, da chance de ser feliz que se perdeu. Ainda hoje recordo com uma nostalgia enamorada. A paixão pode ser impedida por fatos irreversíveis (como a indiferença do objeto do desejo), mas pode também ser sepultada pelo medo, pelo simples temor. Quem sofre na covardia, opta em não correr o risco de amar. Assim agindo, pode-se até evitar os inconvenientes de quem se apaixona (apaixonar-se é sofrer). Mas a paixão permanecerá lá, no fundo do coração, qual um bicho a esperar da presa que nunca vem. Para pessoas assim o amor irrealizado é o cenário de quem se acovarda e a condenação à uma vida vazia, uma vida cheia de nada.

Quando se despreza o tesão, a paixão propriamente dita, estamos nos condenando a uma vida linear e pouco estimulante. Ao evitar a paixão geralmente somos infelizes, estranhos, mecânicos. É mais adorável lutar contra as correntezas de uma vida atribulada e complexa utilizando os robustos remos da paixão. Perdendo a paixão, perde-se o esplendor. Porém, ainda mais melancólico é relacioná-la a sentimentos ruins e a classificá-la como prejudicial. Entretanto, os que pensam dessa forma talvez estejam equivocados. Tais pensamentos possivelmente são gerados por um desgosto relacionado a um amor frustrado ou a um cotidiano insosso.

Diversas obras literárias abordam o tema. Dentre elas, “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, em que o protagonista, ao ver perdidas as esperanças de obter a amada, beija apaixonadamente as armas em que ela tocou e acaba com a própria vida. O romance de 1776 provocou uma série de suicídios na Alemanha. Jovens inspiraram-se no personagem devido ao peso do sentimento não correspondido. Em “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, dois amantes de famílias inimigas, sem conseguir superar a paixão impossível, terminam tirando a própria vida. São exemplos de paixões exageradas, incontroláveis, mórbidas, mas há também a sensação de êxtase, de ser tomado por uma felicidade incomensurável.

Quem já se apaixonou sabe do poder sem limites. O apaixonado é invencível. E, justamente por isso, é perigoso. Nesse sentido, renomados cientistas e estudiosos são unânimes em afirmar que a paixão é um fenômeno psicológico de exacerbação emocional em relação a figura desejada, gerando um estado alterado de consciência, cuja percepção distorcida da realidade pode conduzir a atitudes radicais e até fatais. Inclusive, alguns especialistas consideram que uma pessoa apaixonada está doente, porque está fora do padrão psíquico de normalidade. E daí? Pior é a apatia, a indiferença, o vazio.

Fenômeno poderoso, a paixão pode levar a um estado alterado de consciência capaz de matar ou morrer. Por isso, creio que muitos temem se apaixonar uma segunda ou terceira vez. Sabem que serão tomados pela loucura de amar, dominando suas ações à sua própria revelia. Já quem nunca se apaixonou, muitas vezes se convence que a paixão pode trazer consequências negativas, e é a mais pura verdade.

Não tenha dúvidas que um apaixonado poderá sofrer - e muito -, porque nesta batalha, sobreviver é uma sorte, mas feridas são inevitáveis. Todavia, para elevados auspícios na vida, aceite uma sugestão: apaixone-se. Porque a paixão é um privilégio quase sagrado, nos faz viver plenamente. Jamais desperdiçaria a vida na mediocridade do medo de amar, de apaixonar-se e ser feliz. Ao contrário, até o último suspiro ousarei tentar conquistar o que a vida tem de melhor. Nem sempre dá certo, óbvio, mas acredito que viver apaixonado é glorioso. Mesmo que seja uma paixão inventada. Já é um primeiro passo.

Não se pode abandonar a paixão impunemente. Não se pode enganar a si próprio, dizer que já passou, que não deve pensar mais a respeito. Quem aceita que não fez nada (não lutou pelo amor), não pode ser feliz. Vive o desamor. E como se faz para viver uma vida vazia? E como se faz para viver uma vida cheia de nada? Eu mergulhei em paixões, sem qualquer remorso. Resumindo, hoje sou um jovem senhor, o retrato da boa velhice que, bem disposta, acumula paixões saudosas. Posso até enrugar a pele, mas não pretendo enrugar a alma, distribuindo entusiasmo e disposição em letras, artes e lembranças apaixonadas.