julho 19, 2015

............................. ELISABETH BISHOP no BRASIL

pablo picasso


 Aqui há um excesso de cascatas; os rios amontoados
correm depressa demais em direção ao mar,
e são tantas nuvens a pressionar os cumes das montanhas
 que elas transbordam encosta abaixo em câmera lenta,
virando cachoeiras diante de nossos olhos.

ELIZABETH BISHOP 
Questões de Viagem


Em 1951, a poeta norte-americana ELIZABETH BISHOP (1911-1979) resolveu visitar uma amiga dos tempos de faculdade que estava morando no Brasil. Sua ideia inicial era passar uma semana no Rio de Janeiro e depois seguir viagem para outros países da América do Sul, mas acabou ficando por quase 15 anos. Seu motivo tinha nome e sobrenome: Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, arquiteta autodidata carioca, responsável pela construção do Parque do Flamengo, mais conhecida como Lota, com quem se relacionou amorosamente dos 40 aos 55 anos. Ela chegou quando no Brasil se esboçava o período que muitos consideram uma renascença tropical, época de reinvenção nacional no romance, na poesia, no cinema, na arquitetura, no teatro, na música popular. Sentiu-se em casa. Se não pelo próprio lugar, ao menos pelo romance apaixonado com Lota. Foi sempre ambivalente com relação ao nosso país, fascinada por muitos de seus aspectos mais calorosos, mas horrorizada com a pobreza, a injustiça e o atraso. Numa de suas cartas para o poeta Robert Lowell, em 1959, escreveu: “Estou vivendo no Brasil há quase oito anos, a maior parte do tempo nas montanhas, perto de Petrópolis. Volto a Nova Iorque quando posso, mas aqui é meu verdadeiro lar agora. Como você sabe, é um país estranho, uma mistura dos séculos XVIII e XIX com rápida industrialização, terrível pobreza, luxo, preto e branco, o  avançado e o primitivo – ainda estou surpresa de me ver vivendo aqui, mas vou ficando”.

lota de macedo soares
Bishop teve uma vida marcada por perdas. Seu pai morreu de insuficiência renal crônica quando ela tinha apenas oito meses e, a mãe, abalada, foi aos poucos perdendo o equilíbrio mental. Sem os pais, ela se sentia só e abandonada, situação que piorou quando desenvolveu asma e uma série de alergias, que a impediram de frequentar a escola regular. A solidão era um mal que ela custou a superar: em 1948, escreveria para o amigo e poeta Robert Lowell, dizendo que era a pessoa mais solitária que já havia existido. Na década de 1930 ela viveu na França, graças a sua colega em Vassar e amante Louise Crane, herdeira da poderosa indústria de papel. De volta aos Estados Unidos, conheceu a célebre poeta Marianne Moore, 24 anos mais velha, de quem se tornou muito amiga. Ela demonstrou grande interesse por seu trabalho. A amizade entre ambas, que perdura na extensa correspondência, durou até a morte de Moore, em 1972. Em 1946, a veterana poeta sugeriu seu nome para o Houghton Mifflin Prize (prêmio de poesia) e ela venceu. Os primeiros poemas de ELIZABETH BISHOP, muito influenciados por Moore, surgiram na revista do Vassar College, fundada por ela com a escritora Mary McCarthy. Depois de rejeições por alguns editores, o primeiro de seus volumes de poesia (“North and South”) apareceu em 1946. 

bishop e louise crane em 1937
Aos 40 anos, embarca em Nova York num navio mercante para uma longa viagem a América do Sul. Acolhida nos meios especializados como revelação promissora, vivia da fortuna deixada pelo pai e enfrentava crises sucessivas de alcoolismo e criação. De passagem pelo Rio, vai passar uns dias com a ex-colega de universidade, no sítio Samambaia, em Petrópolis, onde conhece a brasileira Lota. Não pensa em demorar, mas come um caju, adoece, é hospitalizada e o apoio de Lota vira amor – um caso que, apesar dos pesares, vai durar pelo menos quinze anos. Embora ELIZABETH BISHOP tenha amado Lota e o país, a entrega foi sempre reticente. Entretanto, a aversão é ambígua; afinal, é no Brasil que vai recuperar a verve que andara lhe faltando.


O Brasil marcou sua vida como temática de numerosos poemas, contos e cartas. Traduziu poemas dos principais expoentes do modernismo brasileiro e manteve relações cordiais com vários desses artistas. Sua percepção das contradições brasileiras é sutil e perspicaz, traduzida em poemas sobre a paisagem, na evocação das chuvas tropicais, na sátira social explícita, no retrato dos pobres. ELIZABETH BISHOP e Lota viveram juntas a maior parte do tempo na casa modernista, envidraçada e coberta de alumínio, que Lota e o arquiteto Sérgio Bernardes fizeram na mata de uma escarpa, na região de Petrópolis. Cercada de carinho, segurança e isolamento, a poeta viveu dias felizes, apesar do alcoolismo renitente. Pôde também cultivar o ócio - requisito que ela destaca como imprescindível, numa das cartas, à consecução da atividade artística, ainda que num sentido reverso: dedicação absoluta, no caso do poeta, à feitura do poema. Gastava meses, por vezes anos, escrevendo um único poema, trabalhando para obter um sentido de espontaneidade.

lota de macedo soares
Lota era culta, mandona e introduziu a companheira no núcleo das vanguardas do Brasil moderno. O apartamento do casal, no Rio de Janeiro, foi durante esses anos um bom lugar para conhecer a boemia dourada carioca. Móbiles de Alexander Calder e quadros de Portinari adornavam o ático com vista para o mar, na praia do Leme. O imóvel magnífico, no número 5 da rua Antonio Vieira, é um bom exemplo do art déco dos anos 1930. No entanto, ELIZABETH BISHOP nunca ficou inteiramente à vontade no Rio: “Não é a cidade mais bela do mundo, apenas o lugar mais belo do mundo para uma cidade”. Achava a classe alta provinciana e esnobe, e a indiferença dela diante da corrupção e da desigualdade enorme provocava sua repulsa.

casa samambaia
A casa que se converteu em seu lar, em símbolo e personagem de seus poemas, foi a de Samambaia, em Petrópolis, a uma hora de carro do Rio. Estava em construção quando elas se conheceram e acabou sendo uma das obras-primas da arquitetura do século XX. Os famosos arquitetos Walter Gropius e Alvar Aalto a elogiaram, o também arquiteto Richard Neutra a visitou e as revistas internacionais a fotografaram. Como gesto de amor, Lota acrescentou ao projeto um pequeno estúdio independente, para a poeta escrever olhando as cachoeiras e os morros da serra. Foi um reino secreto nas alturas, onde ela encontrou calma e inspiração. Com seus grandes painéis de vidro, ainda hoje está bem conservada, sobrevivendo como uma pousada modesta, sem luxos, mas cheia de sabor. Conserva a capela, varanda, grandes salões e pisos de madeira nobre. Com os anos, a relação com a formidável Lota tornou-se opressiva demais, e ELIZABETH BISHOP se refugiou em Ouro Preto, a joia do barroco brasileiro no coração de Minas Gerais. Também esta bela casa, a Mariana, continua intacta, um casarão colonial que ela comprou e restaurou, com vista fabulosa do centro antigo. O nome dela é uma homenagem à Marianne Moore, mentora e amiga.


O pai de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, oposicionista na República Velha, depois adversário histórico de Getúlio Vargas, era dono do periódico mais influente em meados do século passado, o Diário Carioca. Lota nasceu em 1910, em Paris, onde o pai se achava exilado. Mulher culta, estudou no ateliê do pintor Cândido Portinari, amiga de escritores e artistas. Sem ter frequentado universidade, foi reconhecida como arquiteta e paisagista emérita. Tinha uma personalidade prática, impaciente. Deixou sua marca na paisagem e na história do Rio quando Carlos Lacerda, seu amigo e primeiro governador (1960-4) da Guanabara, deu-lhe a missão de criar o Parque do Flamengo.

parque do flamengo
A construção do parque no Aterro do Flamengo, se não afastou as duas mulheres, serviu de pretexto ao afastamento. Lota ficava no Rio, onde se entregava de maneira obstinada ao trabalho, redobrado no interminável confronto de sua personalidade impetuosa e perfeccionista com a politicagem administrativa. ELIZABETH BISHOP se refugiava em Ouro Preto. Em 1966, forçada pelo esgotamento da herança familiar, sem que os prêmios literários que recebeu servissem de compensação suficiente, aceitou dar seu primeiro curso acadêmico, na Universidade de Washington, em Seattle. Detestou lecionar (tinha aversão a falar em público, mesmo os próprios poemas), mas se apaixonou por uma jovem aluna, que seria sua amante por alguns anos. O caso tinha todo um aspecto escandaloso: a estudante estava grávida quando se conheceram, chegou a morar em Ouro Preto com ela e a criança, e voltou a viver em Seattle depois de uma tumultuosa ruptura.

carta de bishop
Enquanto finalizava o Parque do Flamengo, a saúde de Lota deteriorou, conforme ela se debatia nas escaramuças burocráticas, prestes a romper com o próprio Lacerda, cuja estrela política, depois do golpe de 1964, declinava depressa. Recebeu diagnósticos de arteriosclerose e depressão. Numa atitude drástica, contrária ao conselho médico, viajou para Nova York a fim de conversar com a amada, tentando salvar o relacionamento. Na manhã seguinte, 20 de setembro de 1967, a arquiteta se mataria de uma overdose de tranquilizantes. Já quase inconsciente quando socorrida por ELIZABETH BISHOP, que se recriminaria por ter dormido demais, ela foi hospitalizada e entrou em coma. Morreu de falência cardíaca uma semana depois, aos 57 anos. Elizabeth nunca se recuperou do choque provocado por mais uma perda. Embora a maioria dos amigos de Lota no Rio tenha se voltado contra ela, continuou mantendo laços com o Brasil, sobretudo com Ouro Preto, até o início dos anos 1970.

miranda otto e glória pires em “flores raras”
Aos poucos voltou a viver na Nova Inglaterra (EUA), na companhia de outra mulher. Foi vítima de aneurisma cerebral, que a matou em 1979, aos 68 anos. Desde então sua fortuna crítica cresce, seu nome muitas vezes é incluído entre os dez poetas norte-americanos mais influentes no século de Eliot, Pound e Cummings. Tivemos a oportunidade de saber um pouco mais sobre sua vida itinerante e complicada através do bonito filme “Flores Raras” (2013), de Bruno Barreto, que narra seus anos brasileiros e foi sucesso de bilheteria. Como tantos viajantes estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, ELIZABETH BISHOP exalta a natureza e deplora a sociedade. Contra o pano de fundo da desigualdade e do atraso, seu olhar duro logo identifica o elemento provinciano, o hábito irracional, a desordem e a “loucura” em que vivem os brasileiros: “O Brasil é mesmo um horror”. Nem por isso ela fica insensível a certa doçura na familiaridade, na ênfase afetiva das relações pessoais, outro traço assíduo na historiografia que não lhe passou despercebido no cotidiano.


Em sua opinião, Gilberto Freyre é “legível”, embora faça ressalva a sua condescendência para com a escravidão. É entusiástica quanto a “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que considera o melhor na literatura local depois de Machado de Assis. Ficou tão encantada com “Minha Vida de Menina”, o diário de Helena Morley sobre sua infância em Diamantina, que o traduziu e publicou em inglês. Escreve que João Cabral de Melo Neto é dos poucos poetas brasileiros que de fato aprecia - os outros seriam Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. Desanima de suas tentativas para introduzir as amigas Clarice Lispector e Rachel de Queiroz nos Estados Unidos. Critica os poemas concretos, que “parecem experiências pré-1914 com uma pitada de Cummings”.

casa mariana
Morando no Brasil, em 1956, recebeu o prêmio Pulitzer pelo livro “North and South — A Cold Spring”. Receberia mais tarde o Prêmio Nacional do Livro (The National Book Award) e o prêmio nacional do Círculo dos Críticos literários (The National Book Critics Circle Award), assim como duas bolsas, Guggenheim e Ingram Merrill Foundation. Tornou-se poeta residente na Universidade de Harvard em 1969. Em 1976, foi a primeira mulher a receber o International Neustadt Prize for Literature (Prêmio Internacional Neustadt de Literatura). Escreveu para a revista The New Yorker, fazia muitas conferências e durante uns poucos anos ensinou na Universidade de Washington, antes de se mudar para Harvard por sete anos. Ensinou ainda na New York University, antes de terminar seus dias de ensino no Massachusetts Institute of Technology.

A crítica é unânime em ressaltar, entre as qualidades literárias de ELIZABETH BISHOP, a precisão verbal e a profundidade descritiva. Tinha, além disso, o olho treinado de uma turista quase profissional, tomada pelo demônio geográfico que a fez viajar como nômade pela vida afora. Apaixonada pela exatidão, recriou os mundos do Canadá, EUA, Europa e Brasil. Não admitia ter pena de si mesma, mas seus poemas mal escondem suas dificuldades como mulher, lésbica, órfã, viajante sem raízes, asmática frequentemente hospitalizada, depressiva e alcoólatra.



CHEGADA EM SANTOS

Eis uma costa; eis um porto;
após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem:
morros de formas tão práticas, cheios - quem sabe? de autocomiseração,
tristes e agrestes sob a frívola folhagem,

uma igrejinha no alto de um deles. E armazéns,
alguns em tons débeis de rosa, ou de azul,
e umas palmeiras, altas e inseguras. Ah, turistas,
então é isso que este país tão longe ao sul

tem a oferecer a quem procura nada menos
que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato
e definitivo entendimento de ambos
após dezoito dias de hiato?

Termine o desjejum. Lá vem o navio-tênder,
uma estranha e antiga embarcação,
com um trapo estranho e colorido ao vento.
A bandeira. Primeira vez que a vejo. Eu tinha a impressão

de que não havia bandeira, mas tinha que haver,
tal como cédulas e moedas - claro que sim.
E agora, cautelosas, descemos de costas a escada,
eu e uma outra passageira, Miss Breen,

num cais onde vinte e seis cargueiros aguardam
um carregamento de café que não tem mais fim.
Cuidado, moço, com esse gancho! Ah!
não é que ele fisgou a saia de Miss Breen,

coitada! Miss Breen tem uns setenta anos,
um metro e oitenta, lindos olhos azuis, bem
simpática. É tenente de polícia aposentada.
Quando não está viajando, mora em Glens

Falls, estado de Nova York. Bom. Conseguimos.
Na alfândega deve haver quem fale inglês e não
implique com nosso estoque de bourbon e cigarros.
Os portos são necessários, como os selos e o sabão,

e nem ligam para a impressão que causam.
Daí as cores morta dos sabonetes e selos -
aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam
de nossos cartões-postais antes que possam lê-los

nossos destinatários, ou porque a cola daqui
é muito ordinária, ou então por causa do calor.
Partimos de Santos imediatamente;
vamos de carro para o interior.

(Tradução de Paulo Henriques Britto)


IDA À PADARIA

Esta noite a lua contempla
a avenida Copacabana
em vez de olhar para o mar,
e as coisas mais cotidianas

são novas pra ela. Debruça-se
sobre os fios frouxos dos bondes.
Lá embaixo, os trilhos se esgueiram
até se fundirem ao longe

(entre carros estacionados
que lembram balões coloridos
já murchos e moribundos);
os fios, pela lua atraídos,

somem numa nebulosa
longínqua. A padaria
está imersa na meia-luz –
estamos racionando energia.

Os bolos, de olhar esgazeado,
parecem que vão desmaiar,
As tortas, gosmentas, vermelhas,
doem. O que devo comprar?

Misturam milho à farinha
e as bisnagas ficam doentias –
pacientes de febre amarela
amontoados na enfermaria.

O padeiro, doente, sugere
“pães de leite” em vez de bolo.
Eu compro, e é como levar
um bebezinho no colo.

Sob falsa amendoeira
uma puta ainda menina
dança um chá-chá-chá, girando
como um átomo na esquina.

À sombra negra do meu prédio
um negro levanta a camisa
pra mostra um curativo
cobrindo negra ferida.

Com um bafo de cachaça
potente feito uma bazuca
aponta a bandagem branca
e me diz coisas malucas.

Dou-lhe dinheiro e boa-noite,
por força do hábito. Ah!
Não haveria uma palavra
mais relevante pra lhe dar?

(Tradução de Paulo Henriques Britto)


UMA ARTE

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Tradução de Paulo Henriques Britto)


BANHO DE XAMPU

Os líquens – silenciosas explosões
Nas pedras – crescem e engordam,
Concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
Com os halos ao redor da lua, embora
Até o momento nada tenha mudado.
E como o céu há de nos dar guarida
Enquanto isso não se der,
Você há de convir, amiga,
Que se precipitou;
E eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo brilham estrelas
Cadentes, arredias.
Para onde irão elas
Tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.



julho 12, 2015

.................................. WALT WHITMAN – CANÇÃO de MIM MESMO



“Eu me contradigo ?
Pois muito bem, eu me contradigo,
Sou amplo, contenho multidões”

Ilustrações: JOHN SLOAN


Poeta da nação, do povo, da vida vivida a céu aberto, no campo ou embalada pela brisa dos mares. Na avaliação de Jorge de Sena, “o maior poeta da América, e um dos mais originais e corajosos poetas líricos da poesia universal”. “Toda revolução digna deste nome produz seu grande poeta. O poeta capta, nos tempos de comoção social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes transformações coletivas, em seu momento agudo, revolucionário ou insurrecional. Assim, se Maiakovski é o poeta da Revolução Russa, não é exagero dizer que WALT WHITMAN (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes do seu nascimento. O fato de as revoluções apodrecerem, por mais altos que sejam seus ideais, pouco afeta a poesia dos que se exaltaram, por elas exaltados, em seu momento puro”, escreveu Paulo Leminski.

walt whitman
Um bom texto de Carlos Machado, no blog Alguma Poesia, faz um apanhado preciso da trajetória do poeta. Em 1857, na França, Charles Baudelaire lançou a primeira edição de seu revolucionário “Flores do Mal / Les Fleus du Mal”, livro que lhe valeria o título de primeiro poeta moderno. Dois anos antes, no outro lado do Atlântico, o jornalista norte-americano WALT WHITMAN, lançara “Folhas de Relva / Leaves of Grass”, outro livro de poemas igualmente ousado e inovador. Entre os franceses, o livro de Baudelaire causou escândalo. As “Flores do Mal” brotavam na contramão do bom-gosto vigente, trazendo para a poesia temas proibidos, como o sexo, a morte e a decadência humana. Uma coletânea em que o primeiro poema chamava o leitor de hipócrita. Com as “Folhas de Relva” não foi muito diferente. Mas, em certos aspectos, o impacto pareceu ainda maior. “Isso não é um livro; quem toca neste livro, toca em um homem”, afirmaria o poeta, sempre intenso, sempre grandiloquente.

“Folhas de Relva” foi o único livro de poesia do bardo. Ao longo da vida, ele reescreveu os poemas da primeira edição, acrescentou numerosos outros, mas o volume manteve sempre o título original. A última edição ampliada seria publicada em 1892, a edição que hoje circula pelas livrarias do mundo, uma obra colossal com mais de uma centena de versos. Numa ousada independência de toda a tradição literária europeia de seu tempo, o poeta possui sua própria voz, seus próprios temas, sentimentos independentes, e mais do que tudo, utiliza uma linguagem poética também inovadora, inaugurando uma forma poética livre e multiforme que só se popularizaria no cenário da poesia mundial cerca de meio século mais tarde, com o advento dos modernismos literários do século XX. 

Utiliza em seu vocabulário poético as gírias e expressões coloquiais empregadas no cotidiano, palavras pronunciadas não pela elite intelectual do país, mas pela população pobre. WALT WHITMAN também colocava em prática seu desejo de abolir as barreiras entre a poesia e a prosa, desenvolvendo um idioma poético sem rimas, em versos longos, com linhas intermináveis, versos livres, nunca vistos até então, em poemas declamatórios, arrebatados e apaixonados, sempre otimistas, cantando as belezas da paisagem e da população da grande e jovem nação à qual pertencia.

Sua obra, porém, permaneceu em grande medida desconhecida, e só começou a ser redescoberta na virada do século XX, ficando consagrada apenas em torno de 1920, com o advento do modernismo. Aí sim seus inovadores versos livres influenciariam toda a tradição poética moderna norte-americana, como Ezra Pound, Gertrude Stein, William Carlos Williams e Allen Ginsberg. Referência universal, sua poesia também influenciou muitos poetas no Brasil, entre os quais modernistas de primeira grandeza como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e também figuras mais recentes como Paulo Leminski e Ana Cristina César.


Ando relendo os belos versos de WALT WHITMAN. O poeta inspirou Fernando Pessoa, e ficou mais conhecido do grande público por ter seu poema “Ó Capitão! meu Capitão!” em destaque no famoso filme “Sociedade dos Poetas Mortos / Dead Poets Society” (1989). Em 1873, ele sofreu um ataque que o aleijou. Retirou-se então para Camden, Nova Jersey, onde passou a morar na casa do irmão. Cultivando uma longa barba profética, tornou-se um dos patriarcas e sábios da nascente cultura norte-americana. Lá morreu em 26 de março de 1892. Mas se o leitor abrir as páginas da maior parte da poesia atual, bem como boa parte da prosa de hoje, facilmente verificará que o velho Walt continua por aí, vivíssimo.

Um abraço, e até a próxima. Cedo a voz ao grande poeta andarilho.

Tradução dos Poemas: ADRIANO SCANDOLARA

walt whitman
A BASE de TODA METAFÍSICA

E agora, senhores,
Uma palavra eu lhes dou para permanecer em suas memórias e mentes,
Como base, e fim também, de toda metafísica.

(Também, para os alunos, o velho professor,
No final de seu curso apinhado.)

Tendo estudado o novo e o antigo, os sistemas grego e alemão,
Kant tendo estudado e exposto – Fichte e Schelling e Hegel,
Exposto o saber de Platão – e Sócrates, maior que Platão,
E maior que Sócrates buscado e exposto – Cristo divino tenho muito estudado,
Eu vejo reminiscentes hoje aqueles sistemas grego e alemão,
Vejo as filosofias todas – igrejas cristãs e princípios, vejo,
Sob Sócrates claramente vejo – e sob Cristo o divino eu vejo,
O caro amor do homem pelo seu camarada – a atração de amigo por amigo,
Do marido bem-casado e a esposa mãe de crianças e os pais,
De cidade por cidade, e terra por terra.


A UM ESTRANHO

Estranho que passa! você não sabe com quanta saudade eu lhe olho,
Você deve ser aquele a quem procuro, ou aquela a quem procuro, (isso me vem, como em um sonho,)
Vivi com certeza uma vida alegre com você em algum lugar,
Tudo é relembrado neste relance, fluído, afeiçoado, casto, maduro,
Você cresceu comigo, foi um menino comigo, ou uma menina comigo,
Eu comi com você e dormi com você – seu corpo se tornou não apenas seu, nem deixou o meu corpo somente meu,
Você me deu o prazer de seus olhos, rosto, carne, enquanto passamos – você tomou de minha barba, peito, mãos, em retorno,
Eu não devo falar com você – devo pensar em você quando sentar-me sozinho, ou acordar sozinho à noite,
Eu devo esperar – não duvido que lhe reencontrarei,
Eu devo garantir que não irei lhe perder.


A VOCÊ

Estranho! se, ao passar, você me encontrar e desejar falar comigo, por que não falar comigo?
E por que eu não falaria com você?


ÀS VEZES COM ALGUÉM QUE AMO

Às vezes com alguém que amo, me encho de fúria, pelo medo de extravasar amor sem retorno;
Mas agora penso não haver amor sem retorno – o pagamento é certo, de um jeito ou de outro;
(Eu amei certa pessoa ardentemente, e meu amor não teve retorno;
No entanto, disso escrevi estas canções.)


AO QUE FOI CRUCIFICADO

Meu espírito está com o teu, caro irmão,
Não te importes porque tantos, dizendo teu nome, não te compreendem;
Eu não digo teu nome, mas te compreendo (há outros também;)
Eu te especifico com graça, Ó, meu camarada, para saudar a ti e saudar àqueles que estão contigo, antes e depois – e aos que virão também,
Todos nós labutamos juntos, transmitindo o mesmo fardo e sucessão;
Nós poucos, iguais, indiferindo a terra, indiferindo o tempo;
Nós, que cingimos todo continente, toda casta – permitindo toda teologia,
Compaixonados, perceptivos, em harmonia com os homens,
Nós andamos silentes entre disputas e asserções, sem rejeitar os que disputam, nem o que é assertido;
Nós ouvimos berros e barulhos – somos tocados por divisões, ciúmes, recriminações por todo lado,
Eles se fecham peremptoriamente sobre nós, para cercar-nos, meu camarada,
No entanto andamos irrestritos, livres, por todo o mundo, em jornada por alto ou baixo, até deixarmos nossa marca indelével sobre o tempo e diversas eras,
Até saturarmos o tempo e as eras, que os homens e mulheres de raças e eras por vir, possam provar-se como nossos irmãos e amantes, como nós somos.


CIDADE DE ORGIAS

Cidade de orgias, passarelas e gozos!
Cidade em quem vivi e cantei em seu meio, que um dia farei ilustre,
Não os seus pajens – não são seus tableaux inconstantes, seus espetáculos que me compensam;
Não as suas fileiras intermináveis de casas – não os navios nos cais,
Não suas procissões nas ruas, nem suas claras janelas, com suas mercadorias;
Nem dialogar com pessoas instruídas, ou trazer a minha parte na festa ou banquete;
Não isso – mas, enquanto passo, Ó, Manhattan! seu relâmpago frequente e ligeiro de olhos que me oferecem amor,
Que oferecem resposta ao meu próprio – estes me compensam;
Amantes, contínuos amantes, apenas, me compensam.


AO JARDIM, O MUNDO

Ao jardim, o mundo, renovado em ascensão,
Parceiros potentes, filhas, filhos, em prelúdio,
O amor, a vida de seus corpos, ser e sentido,
Curioso, contemple aqui minha ressurreição, após o sono;
Os ciclos em revolução, em seu amplo movimento, aqui me trouxeram outra vez,
Amoroso, maduro – tudo belo para mim – tudo maravilhoso;
Meus membros, e o fogo trêmulo que folga neles, pelos mais maravilhosos motivos;
Existindo, eu perscruto e penetro ainda,
Contente com o presente – contente com o passado,
Ao meu lado, ou atrás de mim, Eva me seguindo,
Ou à frente, e eu a segui-la do mesmo jeito.


VINDA DO OCEANO REVOLTO, A MULTIDÃO

1

Vinda do oceano revolto, a multidão, chegou suave a mim uma gota,
Sussurrando, eu te amo, antes que um dia eu morra,
Fiz uma longa viagem, para meramente te ver, te tocar,
Pois eu não podia morrer até eu te ver uma vez,
Pois eu temia poder depois te perder.

2

(Agora nos conhecemos, nos vimos, estamos seguros;
Retorne em paz ao oceano, meu amor;
Sou também parte deste oceano, meu amor – nós não estamos tão separados;
Contemple a grande curvatura – a coesão de tudo, como é perfeita!
Mas, quanto a mim, a você, o irresistível mar irá nos separar,
A hora nos carrega, distintos – mas não pode nos carregar assim para sempre;
Não seja impaciente – por um pequeno espaço – Eu te conheço, eu saúdo o ar, o oceano e a terra,
Todo dia, no ocaso, por você, meu amor.)


ERAS E ERAS, RETORNANDO EM INTERVALOS

Eras e eras, retornando em intervalos,
Invulnerado, imortal errante,
Luxurioso, fálico, com lombos potentes e originais, perfeitamente suave,
Eu, entoador de canções Adâmicas,
Pelo novo jardim, o Ocidente, o chamado das grandes cidades,
Em delírio, preludio assim o que é gerado, oferecendo isso e oferecendo a mim mesmo,
Banhando-me, banhando minhas canções em Sexo,
Rebentos de meus lombos.


FEITO ADÃO, DE MANHÃ CEDO

Feito Adão, de manhã cedo,
Saindo de sob os galhos, renovado de sono;
Contemplem-me enquanto passo – ouçam-me a voz – aproximem-se,
Toquem-me – toquem com a palma da mão meu Corpo enquanto passo;
Não tenham medo do meu Corpo.