Ilustrações:
GIACOMO BALLA
(1871 - 1958. Turim / Itália)
I Parte
CRÔNICA de um ENCONTRO SINGULAR
Londres, 1998. A companheira
de moradia compartilhada, Rute M., bela jovem do sul do Brasil, fazia faxinas
em antigas casas britânicas para pagar seu curso de inglês. Trabalho duro, que incluía
passar aspirador em toda a casa, catar folhas secas nas varandas, esfregar
azulejos e os vidros das grandes janelas, deixar banheiros impecáveis, além de
lavar copos e pratos em pias geralmente cheias. O árduo ofício feito por imigrantes
ilegais tinha vantagens: bem remunerado, gastava-se um máximo de três horas semanais
em cada residência e os proprietários raramente estavam presentes, deixando
educadamente sanduíches e o pagamento do dia num envelope. Ao gripar-se num inverno
impiedoso (ou teria ido passar uns dias em Gales com o namorado escocês? Já não
lembro), Rute M. pediu aos amigos para substituí-la na humilde e necessária faina
durante esse período de ausência. Repartindo a clientela, fiquei com uma típica
casa vitoriana, de tijolinhos aparentes, em Hampstead. Sabia apenas que vivia
ali uma idosa e solitária senhora, possivelmente escritora. Rute M. trocava
poucas palavras com ela e me advertiu sobre o maior problema do serviço: livros
e papéis espalhados por todos os lados, como insetos vivos, e não era permitido
tocá-los nem para tirar o pó.
Imaginei uma dessas autoras
românticas fracassadas, afetadas e neuróticas. Nem ousei pensar em Iris Murdoch
ou Muriel Spark, seria como estar na intimidade com Lygia Fagundes Telles ou Hilda
Hilst. Às nove da manhã toquei a campainha, coberto por uma névoa fina e gélida
que atravessava o gorro e o casaco de pelica forrado de lã de carneiro. Reconheci
imediatamente o par de olhos verdes na porta semiaberta. “Bom dia, senhora. Sou
amigo de Rute M. Ela está enferma e eu farei o seu serviço”. “Pobrezinha. O que
tem? Algo sério? Precisa de ajuda?”. “Apenas uma virose, logo estará recuperada,
Miss Lessing”, respondi, fingindo uma naturalidade impossível, desejoso de
beijar as mãos da mulher de olhos profundos e rosto costurado de rugas. “Como
sabe que me chamo Miss...Lessing?”, desconfiou. “A correspondência...”, menti,
recolhendo cartas e jornais no chão. Ela sorriu, cortês, abrindo a porta de vez.
Usava os cabelos grisalhos
quase azulados, em coque; colete azul elegante; macacão branco, masculino. Aos 79
anos, essa mulher imaginativa, que mais parecia avozinha de contos de fadas, um
pouco gorda, era uma das escritoras mais célebres da Europa e seu nome referencial para o Prêmio Nobel de Literatura. A sua novela mais famosa,
a quase autobiográfica “O Carnê Dourado” (1962), é um êxito mundial, inclusive
no Brasil. Lembro quando a Stela Simpson de Tônia Carrero, na telenovela global
“Água Viva”, brilhava numa cena lendo-o. DORIS LESSING nasceu na Pérsia, criada na antiga
Rodésia, hoje Zimbábue. Conhecida como escritora realista, embora seja autora
de cinco novelas de ficção-científica (o ciclo “Canopus in Argus: Archives”).
Escreve com segurança e talento sobre o desmoronamento familiar, a permanente
crise dos sentimentos humanos e a competição entre casais, retratando a mulher dos nossos
dias com lucidez e ferocidade.
Perguntou se eu queria
tomar algo. Esqueci-me de responder, hipnotizado com a escada que levava ao
primeiro andar, cheia de caixas de livros, e ao passar na cozinha e no salão
principal, arregalei os olhos com o número sem fim de livros desordenados.
“Gosta de doce de gengibre?”, ofereceu afetuosa. Disse que gostava, mas
preferia começar o trabalho, ela não precisava se preocupar, Rute M. havia me
explicado o que deveria ser feito. DORIS LESSING sorriu, sorria sempre, e
desapareceu escada acima. Limpei o andar térreo por quase uma hora e, ao
alvejar os vidros, avistei o jardim selvagem, tomado por plantas belas e descuidadas.
O silêncio era suave, não se ouvia música nem passos nem televisão. Ao subir as
escadas de madeira escura, deparei-me com uma sala com poucos móveis: uma
grande mesa sobrecarregada de livros e papéis, almofadas orientais no chão, pufes e um sofá baixíssimo, sem pés – como um recanto de
espírito hippie. Um gato gordo e velho saltou de cima de um grosso volume de “Satyricon”, de Petrônio, revelando somente três patas.
Praticamente imóvel, DORIS
LESSING escrevia a mão, sentada numa das almofadas. Virou-se para mim, dizendo:
“Este é O Magnífico. Tem 18 anos e teve uma pata amputada. Tinha câncer. Está
muito idoso, pobrezinho”. O gato olhou-me indiferente, aconchegando-se em cima
de outro livro. Poderia ser o gato existencialista da atriz decadente de “Horas
Nuas”, de Lygia Fagundes Telles. Tudo era novidade, não sabia se me surpreendia
principalmente com a vastidão de livros em vários idiomas, o gato de três patas
ou a ágil e serena senhora sentada numa almofada como se fosse adolescente. Por
fim, levantou-se, sussurrando: “Isto é a velhice. Entende? A velhice é a
dificuldade de se levantar”. Continuei o trabalho, enquanto ela mexia em
papéis, perguntando outra vez se eu não queria tomar algo. Quando a cada minuto
voltava-me discretamente para olhá-la, os seus olhos subitamente encontravam os
meus.
Sorriu lindamente,
perguntando: “Como se chama?”. “Antonio”, respondi tirando o pó dos objetos.
“Antonio, você gosta de livros, não?”. “Muitíssimo”. Ela sorriu mais uma vez e
depois de uma pausa demorada, continuou a conversa sutil e inesperada: “Você
chora normalmente?”. “Somente ao ver filmes que me sensibilizam”. “Eu também
nunca choro. É horrível jamais chorar”. “Como joga fora os seus medos?”, ousei
perguntar. “Através da literatura. Uma vez passei um ano inteiro sem escrever e
vivia de mal humor. A escrita é uma espécie de equilíbrio”. Nos pequenos e
intensos olhos verdes, enxerguei a infância dura numa antiga colônia britânica
sul-africana, num sítio espaçoso nas montanhas, a fuga aos 14 anos, o casamento
aos 18, o abandono do marido e dos dois filhos, desprezando o regime racista
e machista da colônia. Uma heroína de aventura. Uma mulher lúcida, de prosa personalíssima, caráter forte, cultiva a literatura como
espaço de domínio e liberdade pessoal.
Ao terminar o trabalho, aceitei
o chá e o doce de gengibre. Boa anfitriã, ela sentou-se ao meu lado na cozinha,
colocando a chaleira, as xícaras floridas e o doce entre os livros na mesa rústica.
Ela sorria sempre – lembrar-me-ei dela eternamente sorrindo. “Escrevo também.
Sou um aprendiz”, confessei. “Imaginei”. “Não consegui nenhum êxito”, afirmei. “Cada
livro tem sua própria vida. Todos os livros têm que lutar a princípio contra
a negatividade e a indiferença. A maioria de meus livros recebe violentas
reações negativas. Na verdade não é importante que a pessoas gostem deles, o
importante é o prazer de escrevê-los e a consciência de que a realidade é sempre
pior do que o que se escreve”.
Durante essa conversação inesquecível, de
evidentes e mútuas aspirações de nos entendermos, MISS LESSING me presenteou
com o livro “A Proper Marriage” (1954) - no Brasil, “Um Casamento Convencional”
-, insistindo que eu levasse um pouco do doce de gengibre para Rute M. “É preciso sobreviver às
piores circunstâncias, meu caro”, aconselhou, enquanto me entregava o
envelope com o pagamento da faxina. Não o aceitei, ela insistiu com vigor, não
o quis de forma nenhuma. Enfrentando a rua insultada pelo inverno rigoroso, em
direção à estação de trem, lágrimas corriam pela face. Na cabeça, o prazer da
escrita, a felicidade clandestina e a excitação do encontro revelador com uma
criatura resistente, magnânima e indômita.
II Parte
A ENTREVISTA
publicada
no caderno “Cultural” do jornal “A Tarde”
e no livro “ArtePalavra - Conversas no Velho Mundo” (2002)
A escritora
britânica DORIS LESSING (nascida Doris May Tayler, em Kermanshash, Pérsia,
1919), autora de “O Carnê
Dourado” (1962), é lembrada para o Nobel de Literatura, ano após ano, nas últimas
três décadas. No mês passado, levou o premio Príncipe Astúrias de Letras, o
mais importante galardão literário espanhol, em reconhecimento a “uma das mais
indiscutíveis figuras da literatura universal”. Amável, elegante, cabelos
brancos atados, profundas rugas que guardam histórias e um olhar hospitaleiro,
ela passou tempos difíceis, mas a sua fama como romancista só faz crescer.
Com uma meia
centena de livros publicados, o seu percurso privado é tão fascinante como a obra.
Viveu a juventude na Rodésia e na África do Sul. Após duas separações
matrimoniais, do abandono de dois filhos e de perseguição política ao denunciar
o regime racista, mudou-se para Londres em 1949, com pouco dinheiro e um
manuscrito, “A Erva Canta / The Grass is Singing”. Aos 31 anos, viu publicada essa
história que fala de um assassinato misterioso e um casamento estranho, abrindo
caminhos à causa da emancipação feminina no pós-guerra, embora a escritora
recuse com determinação o rótulo feminista.
Ao aparecer
na sala reservada para a coletiva, no Instituto Britânico de Barcelona, palmas
e flashes pipocaram como se estivéssemos diante de uma estrela pop. Ao ser
chamada de intelectual por uma jornalista, DORIS LESSING se defendeu: “Sou
autodidata. Intelectual não é precisamente a imagem que tenho de minha pessoa.”
A senhora é uma escritora politizada?
Deixei de ser comunista no início dos anos 1950. Faz muito tempo. Os
meus livros são resultados de experiências, mas costumam associá-los
a fatos políticos. Eu discordo, nunca tive tempo para me ocupar com política.
Escrevi muito, cuidei de um filho, lutei para sobreviver, mas nunca
houve essa atuação política que me atribuem.
A sua literatura ajudou a causa feminista...
Nunca fui militante feminista. Não me envolvi com nenhuma associação
feminista. Sou uma mulher que escreve, mas nunca escrevi pensando “estou
escrevendo como mulher”. Escrevo a partir da experiência feminina, nada mais.
Concorda em ser enclausurada na chamada “literatura feminina”?
Penso que a boa literatura não é boa por ser escrita por homens ou mulheres, é
boa porque tem qualidades. O sexo do autor pouco importa. Eu não suporto a
dita literatura feminina.
Tampouco suporta a literatura comprometida ideologicamente?
Nunca acreditei na literatura engajada. Desagrada-me. Sempre
penso que se produz muita literatura de má qualidade. A escrita tem que ter
vida própria em sua essência, nascida de uma mistura de experiências reais. A
escrita política, panfletária, não tem nenhuma vida, é oca.
Quem lê os seus livros como comprometidos e feministas não a compreende?
Escrevo com sinceridade. Escrevo, repito, sobre minhas experiências,
minha visão de mundo, mesmo quando se trata de narrativas não realistas, como as de ficção científica. Escrevo claramente, mas sei que se uma
pessoa não tiver experimentado o mesmo que eu, ela não entenderá completamente
o que quero dizer.
Onde estão as suas experiências de vida na série “Canopus em Argos: Arquivos”?
Não existe uma diferença substancial entre realismo e fantasia. É só
uma convenção. Pode-se dizer a verdade através da fantasia ou do realismo. Não importa
a forma para se transmitir algo. O mais importante é a sinceridade do material
escrito.
Ninguém é livre. A ideia de que se pode ser livre e fazer o que bem entender é ilusão. Uma coisa típica da juventude. Todos nos encontramos,
mais cedo ou mais tarde, obrigados a fazer coisas por determinadas situações.
Quase sempre é associada a “O Carnê Dourado”. No Brasil, esse romance chegou a ser utilizado como leitura favorita de um personagem libertário de telenovela.
Fico feliz que tenha sido útil para tanta gente. Mas estou
cansada de falar sobre ele. Já disse tudo o que tinha a
dizer, afinal escrevi muitos outros livros.
Publicou um único volume de poesias, “Fourteen Poems”. Não se considera boa poeta?
Nem boa nem má, não sou poeta. Não me vejo escrevendo poesia.
Continuo interessada em escrever prosa.
Qual a função da sua literatura?
A mesma de qualquer outra literatura honesta: comentar sobre a vida
para as pessoas que estão interessadas em analisar a sua própria vida através
da literatura. Não tento mudar o mundo com a literatura. Não é possível. Creio
também que escrever me faz mais humana.
O que pensa do universo feminino? O mesmo que penso sobre os homens. Acho piegas o conceito de mulheres
como seres mais delicados e generosos. Basta estudar a história para
encontramos mulheres terríveis, cruéis. Não enxergo de forma
maniqueísta. Todos podem ser bons ou maus.
Nessa época tensa, os escritores que dão o seu testemunho público sobre o conflito Ocidente versus Oriente estão ultrapassando limites?
Não se pode obrigar o escritor a opinar quando não o deseja, mas ele
tem todo o direito de dar sua opinião sobre o que tiver vontade. Eu acho o Bush
detestável, um homem horrível. Nos Estados Unidos, as bibliotecas e os colégios
não recebem a verba de manutenção que necessitam, mas há sempre dinheiro para
bombardeios, tanques de guerra etc. Nunca há dinheiro para as coisas
verdadeiramente importantes.
Disse-me em 1998, em sua casa londrina de Hampstead, que “a realidade é sempre pior do que o que se escreve”. Continua com a mesma opinião?
Mantenho esta opinião. Basta abrir os olhos para enxergar injustiças,
violência, crueldade. Está tudo aí, diante de nossos olhos, mais duro que
qualquer história romanceada. A vida é dura para a maioria das pessoas.
A velhice não parece preocupá-la.
Não é nada do outro mundo. Envelhecemos e morremos. E é tudo. Não se
pode fazer nada.
Falo de pessoas que não sentem curiosidade pela história ou pela
literatura, por exemplo. São pessoas com muitos anos de estudo e, ainda assim, não
se preocupam profundamente com a leitura. É um fenômeno novo que vem abalando a
reputação educacional.
Qual o caminho que um jovem escritor deve seguir?
Não existe caminho concreto. Depende da experiência e das
escolhas de cada um. Fundamental é independência interior, ter fé em
seu próprio julgamento e não dar atenção aos modismos literários. Um crítico
que nos despreza pode no futuro dar tapinhas nas nossas costas. Tudo
pode mudar da noite para o dia.
Tem remorsos por ter abandonado seus filhos?
Não abandonei meus filhos. Abandonei um estilo infame de vida. Uma existência
racista, enfadonha, horrível e insignificante. Não conseguia continuar vivendo
esse tipo de vida inferior. Foi uma questão de sobrevivência.
Lançou recentemente “The Sweetest Dream”. Fale um pouco sobre ele.
Narra um tempo em que se tinha ideologia. Eu mesma tive algumas crenças
utópicas. Outros tiveram utopias boas ou más. As utopias transformam os homens
em selvagens capazes de matar. O meu livro trata disso.
Barcelona,
Espanha, 2001
18 comentários:
Sou fã absoluta dela. No momento, estou lendo "Amor, de novo". É uma escritora fundamental para quem se interessa pela escrita de autoria feminina.
Maravilha de texto e de entrevista, um "presente" lindo do Antonio Nahud. Fiquei emocionada com tanta simplicidade e beleza. Ganhei o dia!
Muy show.
Grata, li entrevista sobre o mesmo tema com Marguerite Duras, com certeza vou gostar de ler esta.
Linda! Simplesmente Linda!
Antonio Nahud - tu és danado!
Amoooo!!!!
" As utopias transformam os homens em selvagens capazes de matar. " Por essas e outras é minha autora favorita. Sempre comigo porque é uma ótima companhia.
Maravilhosa!
..., ADORÁVEL!!!!
A realidade é sempre mais fantástica, para bem ou mal, do que a ficção.
show!
Parabéns pela entrevista, abrs.
muito bom
maravilha!
Tá! Bom programa... vou pra cama ler Doris Lessing!
Devo a essa grande dama das letras a seguinte declaração: "Admiro muito o calor, a ironia e o estilo de "Essa terra", que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar". Thanks a lot, my Lady.
Grata, Antonio.
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