Ilustrações:
Morto há
mais de 1.800 anos, o romano MARCO AURÉLIO (121 d.C. – 180 d.C. Roma / Itália),
lembrado como o “Imperador Filósofo”, é uma presença erudita importante no
discurso cultural do século XXI. Devo ao
seu pensamento uma reviravolta na minha vida, transformando uma existência mundana em
um convívio discreto e intimista. Sou grato! Ele é um dos expoentes mais célebres do
estoicismo, corrente filosófica de berço grego que despontou em tempos romanos
e cravou suas marcas no pensamento ocidental desde então. Viveu uma época de
pestes e guerras, registrando suas ideias em um diário que o acompanhava nos
acampamentos de batalha. Morreu, provavelmente, da peste, aos 58 anos. Sua obra
clássica, MEDITAÇÕES, investiga temas como a razão, a virtude, o
autocontrole e a busca por paz em um mundo turbulento. Imperador
desde 161 até sua morte em 17 de março de 180, durante expedição em
Vindobona (atual Viena, Áustria), as suas cinzas foram trazidas para Roma e
depositadas no mausoléu de Adriano. Último dos chamados “Cinco Bons
Imperadores”, MARCO AURÉLIO enfrentou turbulência social na capital, assim como
revoltas nas fronteiras, ameaças de traição e golpes palacianos.
Havia um fluxo constante de conspirações e conflitos políticos.
Ele casou-se
com Faustina, a Jovem, em 145. Geraram 13 filhos, mas perderam oito deles na
infância. Entre os filhos, o sádico Cômodo, que se tornou seu sucessor. Atraído pela natureza selvagem, o
imperador passava a maior parte do tempo longe do império, evitando os prazeres
de Roma, a tentação e o conforto. Nem as
inúmeras calamidades no Império, nem as constantes lutas contra os bárbaros que
incessantemente tentavam invadir Roma, nem as desgraças familiares debilitaram
a inteligência e a sensatez de MARCO AURÉLIO. Ele manteve sua honra, sua
bondade e seu senso de justiça. Além disso, escrevia suas reflexões pessoais
para si mesmo, repletas dos mais altos códigos morais, como uma fonte para sua
própria orientação e para se melhorar como pessoa. Resultou em uma obra que
exerce até hoje uma atração magnética.
Possivelmente, ele não teve a intenção
de publicar seus escritos estoicos, cujo título inicial foi “Solilóquios”, depois
“A Mim Mesmo”. Só muitos séculos depois da morte do autor é que foram nomeados
de MEDITAÇÕES. De uma
escola de pensamento influente na filosofia ocidental, o estoicismo surgiu com
Zenão de Cítio, na Grécia do século 4 a.C. Esta corrente filosófica prega que
a busca desmedida pelos prazeres materiais impede o homem de encontrar a
felicidade verdadeira, que reside na virtude moral. Um dos principais
representantes do estoicismo foi o autor romano Sêneca, no século 1º d.C. Em “A
Vida Feliz”, ele descreve como a busca pela felicidade nos deleites materiais é uma
ilusão. As agruras da vida, sejam elas quais forem, não devem ser capazes de
abalar a força moral interior. “Um homem deve ser imparcial e não ser
conquistado por coisas externas: ele deve se admirar, sentir confiança em seu
próprio espírito e, assim, ordenar sua vida de modo a estar pronto para a boa
ou para a má fortuna”, escreveu. Uma das
mais célebres obras da humanidade, escrita entre 170 e 180 d.C, em MEDITAÇÕES deparamos com princípios
éticos e políticos que não envelhecem, confrontos com crenças e crendices,
orientações para não sucumbir diante da ansiedade e da depressão.
Esses escritos nasceram essencialmente como um exercício privado para fortalecer a visão estoica de
mundo de MARCO AURÉLIO. Por cerca de 800 anos, a coleção de pensamentos pareceu
estar perdida, ou pelo menos relegada ao obscurantismo. Reapareceu
no Império Bizantino, a milhares de quilômetros de Roma. De lá, desapareceu e
depois surgiu na Biblioteca do Vaticano por volta de 1300. Na época da Reforma,
cópias de MEDITAÇÕES circularam entre humanistas da Floresta Negra,
botânicos suíços, alquimistas e cortes reais da Europa. A partir de sua
publicação impressa influenciou os tempos vindouros, com filósofos, escritores,
magnatas e presidentes exaltando sua visão. No seu libelo, o imperador dialoga
consigo mesmo, iluminando temas que concernem à humanidade como um todo, como a vida plena, a fraternidade humana, a morte e o lugar do humano no Cosmos. É
também um livro sobre a guerra, escrito em territórios
disputados, cercado por tribos guerreiras ocasionalmente apaziguadas com
tréguas inseguras. Em boa parte do texto, a morte é uma referência que demonstra a fragilidade da
vida e do corpo humano.
Parte desta atmosfera sombria veio do fato de que MEDITAÇÕES também são um livro sobre a epidemia que matou o co-imperador e
meio-irmão de MARCO AURÉLIO, Lúcio Vero, e outras cinco milhões de pessoas
(incluindo ele próprio). A vida era precária. A filosofia do Pórtico (como é
conhecido o estoicismo) jamais foi uma técnica individualista para buscar o
sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que
busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos, exortando seus
seguidores a ações que concorram para o bem comum. Para MARCO AURÉLIO, o humano
só pode alcançar seu ideal, sua plenitude e sua realização agindo de forma
comunitária. Em suma, um livro de máximas escrito para a tranquilidade de espírito e a salvação da
alma. Parte do deleite dele se deve à natureza da prosa, clara e contundente. Uma
pessoa real está lá, entre os aforismos, em momentos vitais. A
vastidão da vida do “Imperador Filósofo” em um passado distante, mas seus manuscritos nos levam até ele. Assim, se a civilização está em colapso, a
melhor resposta é se refugiar na força moral. Quanto aos maus políticos e os
péssimos ministros do Sinistro Tribunal Federal (STF), o conselho é simples: pagar
com o mal é deixar que o inimigo vença. “A melhor maneira de se vingar é não se
tornar como o malfeitor”, ensina o sábio MARCO AURÉLIO.
FONTES
“Marco Aurélio – o Imperador Filósofo” (1991)
de Pierre Grimal
“Marcus Aurelius: a Life” (2009)
de Frank McLynn
“Meditações” (170 a 180 d.C.)
de Marco Aurélio
“The Roman Emperors: a Biographical Guide
to the Rulers of Imperial Rome, 31 BC - AD 476” (1997)
de Michael Grant
“Marco Aurélio – o Imperador Filósofo” (1991)
de Pierre Grimal
“Marcus Aurelius: a Life” (2009)
de Frank McLynn
“Meditações” (170 a 180 d.C.)
de Marco Aurélio
“The Roman Emperors: a Biographical Guide
to the Rulers of Imperial Rome, 31 BC - AD 476” (1997)
de Michael Grant
MEDITAÇÕES: 33 AFORISMOS
um MANUAL para a ADVERSIDADE
um MANUAL para a ADVERSIDADE
LIVRO III
09
Venera a
faculdade intelectual. Nela radica tudo,
para que não se encontre jamais em teu
guia interior
uma opinião inconsequente com a natureza
e com a disposição do
ser racional. Essa faculdade
garante a ausência de precipitação,
a
familiaridade com os homens
e a conformidade com os deuses.
LIVRO IV
17Não ajas
na ideia de que viverás dez mil anos.
A necessidade inevitável paira sobre ti.
Enquanto vives, enquanto é possível, sê virtuoso.
22
Não te
deixes arrastar. Pelo contrário,
em todo impulso, corresponde com o justo,
e em
toda fantasia, conserva a faculdade
de compreender.
26
Viste
aquilo? Vê também isso. Não te espantes.
Mostra-te simples. Erra alguém? Erra
consigo mesmo.
Aconteceu algo contigo? Está bem.
Tudo o que te sucede estava
determinado
pelo conjunto desde o princípio.
Em resumo, breve
é a vida. Devemos aproveitar
o presente com justiça. Sê sóbrio ao
relaxar-te.
31
Ama,
admite o pequeno ofício que aprendeste,
e passa o resto de tua vida como uma
pessoa
que confiou, com toda a sua alma,
todas as suas coisas aos deuses,
sem
tornar-te um tirano nem um escravo
de nenhum homem.
35
Tudo é
efêmero: a lembrança
e o objeto lembrado.
43
O tempo é
um rio e uma corrente impetuosa
de acontecimentos. Mal se deixa ver cada coisa,
é arrastada; aparece outra, e esta também
será arrastada.
44
Tudo o que acontece é tão habitual e bem conhecido
como a rosa na primavera e os frutos no verão;
algo parecido ocorre
com a enfermidade,
a morte, a difamação, a conspiração
e tudo quanto alegra ou
aflige os ignorantes.
LIVRO V
21
Respeite
o melhor que há no mundo;
e isso é o que cuida de tudo.
E estime o melhor que reside em ti;
e isso é do mesmo gênero que
aquilo.
E em ti o que aproveita aos demais é isso
e isso é o que governa tua
vida.
34
Podes
viver bem a tua vida,
se és capaz de caminhar pelo bom caminho,
se és capaz de
pensar e agir com método.
Essas duas coisas são comuns à alma de Deus,
à alma
do homem e à alma de todo ser racional:
o não ser impedido por outro, o buscar
o bem
em uma disposição e atuação justa
e o colocar fim a tua aspiração aqui.
LIVRO VI
06A melhor
maneira de defender-te
é não te assemelhar a eles.
28
A morte é
o descanso da reação sensitiva,
do impulso instintivo que nos move
como
fantoches, da evolução do pensamento,
do tributo que nos impõe a carne.
LIVRO VII
06
Quantos
homens, que foram muito celebrados,
caíram já no esquecimento! E quantos homens
que os celebraram já há tempos partiram?
21
Próximo
está seu esquecimento de tudo,
próximo também o esquecimento de tudo
em relação
a ti.
28
Recolha-te
em ti mesmo. O guia interior racional
pode, por natureza, bastar-se a sim mesmo
praticando a justiça e, segundo essa prática,
conservando a calma.
31
Faça
resplandecer em ti a simplicidade,
o pudor e a indiferença no relativo ao que é
intermediário entre a virtude e o vício.
Ame o gênero humano. Siga a Deus.
42
“O bem e a justiça estão comigo”.
59
Cave em
teu interior.
Dentro se encontra a fonte do bem,
e é uma fonte capaz de brotar
continuamente,
se não deixas de escavar.
61
A arte de
viver assemelha-se mais à luta
que à dança no que se refere a estar firmemente
disposto a fazer frente aos acidentes,
inclusive imprevistos.
69
A
perfeição moral consiste nisso:
em passar cada dia como se fosse o último,
sem
convulsões, sem entorpecimentos, sem hipocrisias.
71
É
ridículo não tentar evitar tua maldade,
o que é possível, e, em troca,
tentar evitar
a dos demais, o que é impossível.
LIVRO
VIII
25
Tudo é
efêmero, o tempo morreu.
Alguns não perduraram na lembrança
sequer um instante;
outros passaram a lenda,
e outros inclusive desapareceram das lendas.
33
Receber
sem orgulho, desprender-se sem apego.
LIVRO IX
04
Quem
transgride a lei, fere a si mesmo;
quem comete uma injustiça, comete contra si
mesmo,
e a si mesmo se torna mau.
05
Tanto na
omissão quanto na ação
pode-se constituir uma injustiça.
07
Possuir
comportamento íntegro, conter o instinto,
apagar o desejo, conservar em ti o
guia interior.
12
Não te
esforce como um desventurado,
nem como quem quer ser compadecido
ou admirado;
que antes seja teu único desejo
agir de acordo com justiça em função do Todo.
LIVRO X
25Quem foge
do seu senhor é um desertor.
A lei é nosso senhor, e quem a transgride
é um desertor. E de uma vez, também quem se aflige,
irrita ou teme, e não aceita o
que tenha
lhe acontecido pela lei, também é um desertor.
LIVRO XI
04
Realizei
algo útil à comunidade?
Ou só a mim mesmo servi?
Sempre reflita sobre estas
duas ideias
para te ajudar a perseverar no bem.
05
Qual é
teu ofício? Ser um homem de bem.
E como se consegue sê-lo, a não ser
mediante
as reflexões, umas sobre a natureza
do conjunto universal, e outras, sobre
a
constituição peculiar do homem?
10
Quem não
for indiferente às coisas sem importância,
quem se deixar levar pelas
aparências,
quem for precipitado ou leviano
em seus julgamentos, não pode ser
considerado justo.
15
O homem
bom e virtuoso é percebido
assim que se aproxima, quer queira ou não.
Mas a
afetação da simplicidade
é uma arma de duplo fio. Nada é mais abominável
que a
amizade do lobo. Acima de tudo evita isso.
O homem bom, singelo e benévolo
tem
estas qualidades nos olhos e não as ocultam.
LIVRO XII
17Se algo
não é justo, não o faz;
se não for verdade, não o diga;
provenha de ti este
impulso.
7 comentários:
Sábio e o mais famoso dos estoicos.
Creio que foi no segundo livro de Outlander (melhor que a série homônima) que li uma referência ao Imperador, cujas meditações faziam parte da biblioteca personagem principal, James Fraser. Interessei ainda mais em conversas com o meu filho. Comprei o livro. Lamentei a autora, Diana Gabaldon), não ter feito mais referências ao gosto literário de James Fraser. Assim também se aprende.
Parabéns, texto excelente.
Caríssimo, amei a postagem sobre Marco Aurélio. Algo semelhante aconteceu em minha vida quando tomei contato com os textos de Guénon (René Guénon Irget): a minha visão de mundo foi bastante transformada.
Nenhuma “realidade” externa existe fora de nossas percepções.
Tudo que se aprende é muito significativo para quem quem quer viver bem. Obrigada pelo post. Valeu.
Nossa, meu amigo,
Ouço todos os dias a filosofia estoica...
Conheci a pouco, mas me encantei.
Séneca, Sócrates e amo Marco Aurélio.
Uma riqueza de saber.
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