março 23, 2025

............................ Os MANUSCRITOS do IMPERADOR FILÓSOFO

 

 

Ilustrações: 
MICHELANGELO BUONARROTI
(1475 – 1564. Caprese Michelangelo / Itália)


 
Morto há mais de 1.800 anos, o romano MARCO AURÉLIO (121 d.C. – 180 d.C. Roma / Itália), lembrado como o “Imperador Filósofo”, é uma presença erudita importante no discurso cultural do século XXI. Devo ao seu pensamento uma reviravolta na minha vida, transformando uma existência mundana em um convívio discreto e intimista. Sou grato! Ele é um dos expoentes mais célebres do estoicismo, corrente filosófica de berço grego que despontou em tempos romanos e cravou suas marcas no pensamento ocidental desde então. Viveu uma época de pestes e guerras, registrando suas ideias em um diário que o acompanhava nos acampamentos de batalha. Morreu, provavelmente, da peste, aos 58 anos. Sua obra clássica, MEDITAÇÕES, investiga temas como a razão, a virtude, o autocontrole e a busca por paz em um mundo turbulento. Imperador desde 161 até sua morte em 17 de março de 180, durante expedição em Vindobona (atual Viena, Áustria), as suas cinzas foram trazidas para Roma e depositadas no mausoléu de Adriano. Último dos chamados “Cinco Bons Imperadores”, MARCO AURÉLIO enfrentou turbulência social na capital, assim como revoltas nas fronteiras, ameaças de traição e golpes palacianos. Havia um fluxo constante de conspirações e conflitos políticos. 
 
Ele casou-se com Faustina, a Jovem, em 145. Geraram 13 filhos, mas perderam oito deles na infância. Entre os filhos, o sádico Cômodo, que se tornou seu sucessor. Atraído pela natureza selvagem, o imperador passava a maior parte do tempo longe do império, evitando os prazeres de Roma, a tentação e o conforto. Nem as inúmeras calamidades no Império, nem as constantes lutas contra os bárbaros que incessantemente tentavam invadir Roma, nem as desgraças familiares debilitaram a inteligência e a sensatez de MARCO AURÉLIO. Ele manteve sua honra, sua bondade e seu senso de justiça. Além disso, escrevia suas reflexões pessoais para si mesmo, repletas dos mais altos códigos morais, como uma fonte para sua própria orientação e para se melhorar como pessoa. Resultou em uma obra que exerce até hoje uma atração magnética.
 
Possivelmente, ele não teve a intenção de publicar seus escritos estoicos, cujo título inicial foi “Solilóquios”, depois “A Mim Mesmo”. Só muitos séculos depois da morte do autor é que foram nomeados de MEDITAÇÕES. De uma escola de pensamento influente na filosofia ocidental, o estoicismo surgiu com Zenão de Cítio, na Grécia do século 4 a.C. Esta corrente filosófica prega que a busca desmedida pelos prazeres materiais impede o homem de encontrar a felicidade verdadeira, que reside na virtude moral. Um dos principais representantes do estoicismo foi o autor romano Sêneca, no século 1º d.C. Em “A Vida Feliz”, ele descreve como a busca pela felicidade nos deleites materiais é uma ilusão. As agruras da vida, sejam elas quais forem, não devem ser capazes de abalar a força moral interior. “Um homem deve ser imparcial e não ser conquistado por coisas externas: ele deve se admirar, sentir confiança em seu próprio espírito e, assim, ordenar sua vida de modo a estar pronto para a boa ou para a má fortuna”, escreveu. Uma das mais célebres obras da humanidade, escrita entre 170 e 180 d.C, em MEDITAÇÕES deparamos com princípios éticos e políticos que não envelhecem, confrontos com crenças e crendices, orientações para não sucumbir diante da ansiedade e da depressão.
 
Esses escritos nasceram essencialmente como um exercício privado para fortalecer a visão estoica de mundo de MARCO AURÉLIO. Por cerca de 800 anos, a coleção de pensamentos pareceu estar perdida, ou pelo menos relegada ao obscurantismo.
Reapareceu no Império Bizantino, a milhares de quilômetros de Roma. De lá, desapareceu e depois surgiu na Biblioteca do Vaticano por volta de 1300. Na época da Reforma, cópias de MEDITAÇÕES circularam entre humanistas da Floresta Negra, botânicos suíços, alquimistas e cortes reais da Europa. A partir de sua publicação impressa influenciou os tempos vindouros, com filósofos, escritores, magnatas e presidentes exaltando sua visão. No seu libelo, o imperador dialoga consigo mesmo, iluminando temas que concernem à humanidade como um todo, como a vida plena, a fraternidade humana, a morte e o lugar do humano no Cosmos. É também um livro sobre a guerra, escrito em territórios disputados, cercado por tribos guerreiras ocasionalmente apaziguadas com tréguas inseguras. Em boa parte do texto, a morte é uma referência que demonstra a fragilidade da vida e do corpo humano. 
 
Parte desta atmosfera sombria veio do fato de que MEDITAÇÕES também são um livro sobre a epidemia que matou o co-imperador e meio-irmão de MARCO AURÉLIO, Lúcio Vero, e outras cinco milhões de pessoas (incluindo ele próprio). A vida era precária. A filosofia do Pórtico (como é conhecido o estoicismo) jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos, exortando seus seguidores a ações que concorram para o bem comum. Para MARCO AURÉLIO, o humano só pode alcançar seu ideal, sua plenitude e sua realização agindo de forma comunitária. Em suma, um livro de máximas escrito para a tranquilidade de espírito e a salvação da alma. Parte do deleite dele se deve à natureza da prosa, clara e contundente. Uma pessoa real está lá, entre os aforismos, em momentos vitais. A vastidão da vida do “Imperador Filósofo” em um passado distante, mas seus manuscritos nos levam até ele. Assim, se a civilização está em colapso, a melhor resposta é se refugiar na força moral. Quanto aos maus políticos e os péssimos ministros do Sinistro Tribunal Federal (STF), o conselho é simples: pagar com o mal é deixar que o inimigo vença. “A melhor maneira de se vingar é não se tornar como o malfeitor”, ensina o sábio MARCO AURÉLIO.
 
FONTES
“Marco Aurélio – o Imperador Filósofo” (1991)
de Pierre Grimal
 
“Marcus Aurelius: a Life”
(2009)
de Frank McLynn
 
“Meditações”
(170 a 180 d.C.)
de Marco Aurélio
 
“The Roman Emperors: a Biographical Guide
to the Rulers of Imperial Rome, 31 BC - AD 476”
(1997)
de Michael Grant

 
 
MEDITAÇÕES: 33 AFORISMOS
um MANUAL para a ADVERSIDADE
 
LIVRO III
09
Venera a faculdade intelectual. Nela radica tudo, 
para que não se encontre jamais em teu guia interior 
uma opinião inconsequente com a natureza 
e com a disposição do ser racional. Essa faculdade 
garante a ausência de precipitação, 
a familiaridade com os homens 
e a conformidade com os deuses.
 
LIVRO IV
17
Não ajas na ideia de que viverás dez mil anos. 
A necessidade inevitável paira sobre ti. 
Enquanto vives, enquanto é possível, sê virtuoso.
 
22
Não te deixes arrastar. Pelo contrário, 
em todo impulso, corresponde com o justo, 
e em toda fantasia, conserva a faculdade 
de compreender.
 
26
Viste aquilo? Vê também isso. Não te espantes. 
Mostra-te simples. Erra alguém? Erra consigo mesmo. 
Aconteceu algo contigo? Está bem. 
Tudo o que te sucede estava determinado 
pelo conjunto desde o princípio. 
Em resumo, breve é a vida. Devemos aproveitar 
o presente com justiça. Sê sóbrio ao relaxar-te.
 
31
Ama, admite o pequeno ofício que aprendeste, 
e passa o resto de tua vida como uma pessoa 
que confiou, com toda a sua alma, 
todas as suas coisas aos deuses, 
sem tornar-te um tirano nem um escravo 
de nenhum homem.
 
35
Tudo é efêmero: a lembrança 
e o objeto lembrado.
 
43
O tempo é um rio e uma corrente impetuosa 
de acontecimentos. Mal se deixa ver cada coisa, 
é arrastada; aparece outra, e esta também 
será arrastada.
 
44
Tudo o que acontece é tão habitual e bem conhecido
como a rosa na primavera e os frutos no verão; 
algo parecido ocorre com a enfermidade, 
a morte, a difamação, a conspiração 
e tudo quanto alegra ou aflige os ignorantes.
 

LIVRO V
21
Respeite o melhor que há no mundo; 
e isso é o que cuida de tudo. 
E estime o melhor que reside em ti; 
e isso é do mesmo gênero que aquilo. 
E em ti o que aproveita aos demais é isso 
e isso é o que governa tua vida.
 
34
Podes viver bem a tua vida, 
se és capaz de caminhar pelo bom caminho, 
se és capaz de pensar e agir com método. 
Essas duas coisas são comuns à alma de Deus, 
à alma do homem e à alma de todo ser racional: 
o não ser impedido por outro, o buscar o bem 
em uma disposição e atuação justa 
e o colocar fim a tua aspiração aqui.
 
LIVRO VI
06
A melhor maneira de defender-te 
é não te assemelhar a eles.
 
28
A morte é o descanso da reação sensitiva, 
do impulso instintivo que nos move 
como fantoches, da evolução do pensamento, 
do tributo que nos impõe a carne.
 
LIVRO VII
06
Quantos homens, que foram muito celebrados, 
caíram já no esquecimento! E quantos homens 
que os celebraram já há tempos partiram?
 
21
Próximo está seu esquecimento de tudo, 
próximo também o esquecimento de tudo 
em relação a ti.
 
28
Recolha-te em ti mesmo. O guia interior racional 
pode, por natureza, bastar-se a sim mesmo 
praticando a justiça e, segundo essa prática, 
conservando a calma.
 
31
Faça resplandecer em ti a simplicidade, 
o pudor e a indiferença no relativo ao que é 
intermediário entre a virtude e o vício. 
Ame o gênero humano. Siga a Deus.
 
42
“O bem e a justiça estão comigo”.
 
59
Cave em teu interior. 
Dentro se encontra a fonte do bem, 
e é uma fonte capaz de brotar continuamente, 
se não deixas de escavar.
 
61
A arte de viver assemelha-se mais à luta 
que à dança no que se refere a estar firmemente 
disposto a fazer frente aos acidentes, 
inclusive imprevistos.
 
69
A perfeição moral consiste nisso: 
em passar cada dia como se fosse o último, 
sem convulsões, sem entorpecimentos, sem hipocrisias.
 
71
É ridículo não tentar evitar tua maldade, 
o que é possível, e, em troca, tentar evitar 
a dos demais, o que é impossível.
 

LIVRO VIII
25
Tudo é efêmero, o tempo morreu. 
Alguns não perduraram na lembrança 
sequer um instante; outros passaram a lenda, 
e outros inclusive desapareceram das lendas.
 
33
Receber sem orgulho, desprender-se sem apego.
 
LIVRO IX
04
Quem transgride a lei, fere a si mesmo; 
quem comete uma injustiça, comete contra si mesmo, 
e a si mesmo se torna mau.
 
05
Tanto na omissão quanto na ação 
pode-se constituir uma injustiça.
 
07
Possuir comportamento íntegro, conter o instinto, 
apagar o desejo, conservar em ti o guia interior.
 
12
Não te esforce como um desventurado, 
nem como quem quer ser compadecido 
ou admirado; que antes seja teu único desejo 
agir de acordo com justiça em função do Todo.
 
LIVRO X
25
Quem foge do seu senhor é um desertor. 
A lei é nosso senhor, e quem a transgride 
é um desertor. E de uma vez, também quem se aflige, 
irrita ou teme, e não aceita o que tenha 
lhe acontecido pela lei, também é um desertor.
 

LIVRO XI
04
Realizei algo útil à comunidade? 
Ou só a mim mesmo servi? 
Sempre reflita sobre estas duas ideias 
para te ajudar a perseverar no bem.
 
05
Qual é teu ofício? Ser um homem de bem. 
E como se consegue sê-lo, a não ser 
mediante as reflexões, umas sobre a natureza 
do conjunto universal, e outras, sobre 
a constituição peculiar do homem?
 
10
Quem não for indiferente às coisas sem importância, 
quem se deixar levar pelas aparências, 
quem for precipitado ou leviano 
em seus julgamentos, não pode ser considerado justo.
 
15
O homem bom e virtuoso é percebido 
assim que se aproxima, quer queira ou não. 
Mas a afetação da simplicidade 
é uma arma de duplo fio. Nada é mais abominável 
que a amizade do lobo. Acima de tudo evita isso. 
O homem bom, singelo e benévolo 
tem estas qualidades nos olhos e não as ocultam.
 
LIVRO XII
17
Se algo não é justo, não o faz; 
se não for verdade, não o diga; 
provenha de ti este impulso.
 



7 comentários:

Iara Neves disse...

Sábio e o mais famoso dos estoicos.

Ana Muniz disse...

Creio que foi no segundo livro de Outlander (melhor que a série homônima) que li uma referência ao Imperador, cujas meditações faziam parte da biblioteca personagem principal, James Fraser. Interessei ainda mais em conversas com o meu filho. Comprei o livro. Lamentei a autora, Diana Gabaldon), não ter feito mais referências ao gosto literário de James Fraser. Assim também se aprende.

Mary Ferreira disse...

Parabéns, texto excelente.

Aurea Maria Corsi disse...

Caríssimo, amei a postagem sobre Marco Aurélio. Algo semelhante aconteceu em minha vida quando tomei contato com os textos de Guénon (René Guénon Irget): a minha visão de mundo foi bastante transformada.

Marlene Maria Schwertner disse...

Nenhuma “realidade” externa existe fora de nossas percepções.

Lurdinha Teles disse...

Tudo que se aprende é muito significativo para quem quem quer viver bem. Obrigada pelo post. Valeu.

Silvana Flor disse...

Nossa, meu amigo,
Ouço todos os dias a filosofia estoica...
Conheci a pouco, mas me encantei.
Séneca, Sócrates e amo Marco Aurélio.
Uma riqueza de saber.