janeiro 15, 2021

........................................ JORGE AMADO: um CORAÇÃO SIMPLES




Houve uma época em que fui severo em relação ao contador de histórias JORGE AMADO (1912 – 2001. Itabuna, Bahia), trocando-o principalmente por escritores que faziam da linguagem uma prática experimental. Não passou de tolices da busca pessoal de um escritor. Eu ignorava a escrita simples e sem pretensão traduzida em quase todas as línguas e ocupando lugar significativo no universo literário contemporâneo. Hoje em dia costumo ter longas e genuínas conversas sobre a beleza da sua literatura. Recentemente, assistindo a um documentário de 1995 de João Moreira Salles, sobre a vida do autor de “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1966), comoveu-me o seu jeito despojado, reafirmando o país cordial e mestiço: fita do Senhor do Bonfim no pulso, camisa semiaberta, crítica às leis arcaicas, políticos e a falta de memória dos brasileiros.

 

No poético documentário, JORGE AMADO defende o caráter popular da revolução de 30 de Getúlio Vargas, fala das “excrescências” comunistas na primeira fase da sua obra, define ideologia como “uma merda” e reafirma sua luta por uma sociedade sem racismo e injustiça social. Talvez ele seja o nosso romancista mais popular, aqui e no exterior. Sua narrativa elabora uma visão da nacionalidade que tem lastro e que se popularizou enormemente através das adaptações para a televisão. Eu o entrevistei duas vezes: a primeira na sua casa do Rio Vermelho, em Salvador; e anos depois no Cassino do Estoril, em Portugal. Diante de mim, um homem simples e gentil, sem a vaidade besta da maioria dos escritores.


Nas entrevistas, revelou-se um escritor na linha de Gilberto Freyre, orgulhando-se do Brasil sincrético e resgatando com carinho a simbiose entre o coronel e o jagunço. Saudou a heterodoxia da mistura de raças, religiões e culturas. Defendeu a colonização portuguesa, supostamente menos violenta que a espanhola. Eu o descobri aos onze ou doze anos. Papai tinha na biblioteca a sua obra completa. No entanto, era leitura proibida para menores. Enfrentei a censura, pedindo argumentos sólidos que me impedissem de ler a tal coleção de capa vermelha. Respondeu tratar-se de literatura de putas e vagabundos, eu deveria me conformar com José de Alencar.

 

Na calada da noite, às escondidas, entreguei-me ao deleite de conhecer o tal universo profano do nosso Honoré de Balzac, impressionando-me com “Mar Morto” (1936), “Terras do Sem Fim” (1943), “Gabriela, Cravo e Canela” (1958) e “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” (1959). Constatei o romantismo e a sensualidade de sua criação, permeada pelo realismo, a proeminência das personagens de extratos sociais miseráveis, o bom humor e o patriotismo. O que essa literatura perde em rigor ganha em vitalidade e fantasia. Massacrado pela crítica, a história literária do escritor baiano foi marcada por poucas e boas. “Capitães da Areia” (1937) foi queimado em praça pública, retornando às livrarias apenas no final da ditadura Vargas, em 1944. Considerados subversivos, também foram queimados em Salvador 1694 exemplares de “Cacau” (1933), “Suor” (1934), “Jubiabá” (1935), “Mar Morto” e “Capitães da Areia”.

 

O famoso “Gabriela, Cravo e Canela” (1958), cujo cenário é a região cacaueira do Sul da Bahia, provocou a ira dos ilheenses que passaram a tratar o seu autor como persona non grata. A situação nefasta só mudaria com o sucesso explosivo da telenovela “Gabriela”, em 1975, e a vantagem turística vindo dela. Além disso, foram freqüentes as afirmações de que não era um bom escritor, que explorava o exotismo da Bahia para alavancar a venda dos seus livros e que a sua trajetória apresentava contradições. Ainda assim, não conseguiram sufocar o enorme talento do mestre grapiúna, que revelou ao mundo a Mata Atlântica, o perfume do cacau, as ruas do Pelourinho, os terreiros de candomblé, jagunços, coronéis, Vadinho, marinheiros, boêmios, poetas cachaceiros, Pedro Archanjo, mães-de-santo e uma irresistível galeria de ardentes demônios femininos: Gabriela, Malvina, Glória, Maria Machadão, Teresa Batista, D. Flor, Tieta e tantas outras.

Nascido em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna, Bahia, desde sua infância JORGE AMADO conhecia a disputa sangrenta pelas terras dos frutos de ouro, ou seja, o cacau. Mudou-se para Salvador, conhecendo os estivadores do porto, prostitutas e menores abandonados, entre outros marginalizados. Escritor da Geração de 30, ao lado dos também nordestinos Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, enveredou como esses por uma narrativa de cunho social, retratando as injustiças sociais. A obra amadiana alia o lirismo à crítica social, caracterizando-se pela simplicidade da linguagem e pelo tom coloquial e popular, de fácil comunicação com o público. Em sua obra, encontramos a perseguição aos terreiros de candomblés, meninos de rua lutando pela sobrevivência, mulheres vítimas da sociedade machista, o negro discriminado e a desonestidade das classes dominantes.

 

A escritora Zélia Gattai, de visível delicadeza no corpo miúdo e nos olhos cintilantes, foi sua segunda esposa e companheira por quase 50 anos. Era um relacionamento cúmplice, bonito. Amigo de Pierre Verger, Antonio Carlos Magalhães, Carybé e João Ubaldo Ribeiro, entre outros, o escritor parecia não se dar conta da sua fama e importância. Generoso, respondia cartas de leitores. Em 1993, recebi uma singela carta sua saudando o meu livro de estreia, “O Aprendiz do Amor”. Por tudo isso - vida e obra tão especiais -, jamais deve ser esquecido. Eu soube da sua morte em Barcelona, através do jornal “El País”, e imediatamente me veio à mente uma frase do português José Saramago: “Uma torre dessas não cai assim”. Com JORGE AMADO se foi uma época gloriosa da nossa literatura, restando raros escritores robustos e escassos leitores densos.

 

Está mais do que evidente que a literatura brasileira vai mal das pernas. Vivemos numa época de mentalidades xucras. Portanto, reler o escritor baiano faz bem. Não é por mero acaso que ele vendeu mais de 20 milhões de exemplares dos seus livros num país onde pouco se lê. Ele é indiscutivelmente um dos nomes mais importantes da nossa literatura. Salve, Jorge!


TODA a OBRA de JORGE AMADO

LENITA (em parceria com Dias da Costa e Edison Carneiro) (1929);

O PAÍS do CARNAVAL (1931);

CACAU (1933);

DESCOBERTA do MUNDO (em parceria com MATILDE GARCIA ROSA) (1933);

SUOR (1934);

JUBIABÁ (1935);

MAR MORTO (1936);

CAPITÃES de AREIA (1937);

A ESTRADA do MAR (1938);

ABC de CASTRO ALVES (1941);

A VIDA de LUÍS CARLOS PRESTES (O CAVALEIRO da ESPERANÇA) (1942);

TERRAS do SEM FIM (1943);

SÃO JORGE dos ILHÉUS (1944);

BAHIA de TODOS OS SANTOS: GUIA de RUAS e de MISTÉRIOS (1945);

SEARA VERMELHA (1946);

HOMENS e COISAS do PARTIDO COMUNISTA (1946);

O AMOR do SOLDADO (1947);

O GATO MALHADO e a ANDORINHA SINHÁ: uma HISTÓRIA de AMOR (1948);

O MUNDO da PAZ (1950);

Os SUBTERRÂNEOS da LIBERDADE (V. 1: Os ÁSPEROS TEMPOS; V. 2: AGONIA da NOITE; V. 3: A LUZ no TÚNEL) (1954);

GABRIELA, CRAVO e CANELA: CRÔNICA de uma CIDADE do INTERIOR (1958);

A MORTE e a MORTE de QUINCAS BERRO D’ÁGUA (1959);

Os VELHOS MARINHEIROS ou a COMPLETA VERDADE SOBRE as DISCUTIDAS AVENTURAS do COMANDANTE VASCO MOSCOSO DE ARAGÃO, CAPITÃO de LONGO CURSO (1961);

Os PASTORES da NOITE (1964);

DONA FLOR e seus DOIS MARIDOS: ESOTÉRICA e COMOVENTE HISTÓRIA VIVIDA por DONA FLOR, EMÉRITA PROFESSORA de ARTE CULINÁRIA, e seus DOIS MARIDOS - o PRIMEIRO, VADINHO de APELIDO; de NOME TEODORO MADUREIRA e FARMACÊUTICO o SEGUNDO ou a ESPANTOSA BATALHA ENTRE o ESPÍRITO e a MATÉRIA (1966);

TENDA dos MILAGRES (1969);

TEREZA BATISTA CANSADA de GUERRA (1972);

TIETA do AGRESTE: PASTORA de CABRAS ou a VOLTA da FILHA PRÓDIGA, MELODRAMÁTICO FOLHETIM em CINCO SENSACIONAIS EPISÓDIOS e COMOVENTE EPÍLOGO: EMOÇÃO e SUSPENSE! (1977);

FARDA FARDÃO CAMISOLA de DORMIR: FÁBULA para ACENDER uma ESPERANÇA (1979);

O MENINO GRAPIÚNA (1981);

TOCAIA GRANDE – A FACE OBSCURA (1984);

A BOLA e o GOLEIRO (1984);

O CAPETA CARYBÉ (1986);

O SUMIÇO da SANTA: uma HISTÓRIA de FEITIÇARIA (1988);

NAVEGAÇÃO de CABOTAGEM: APONTAMENTOS para um LIVRO de MEMÓRIAS que JAMAIS ESCREVEREI (1992);

A DESCOBERTA da AMÉRICA pelos TURCOS ou de como o ÁRABE JAMIL BICHARA, DESBRAVADOR de FLORESTAS, de VISITA à CIDADE de ITABUNA, para dar ABASTO ao CORPO, ali lhe OFERECERAM FORTUNA e CASAMENTO ou AINDA os ESPONSAIS de ADMA (1994);

Os COMPADRES de OGUM (1995);

O MILAGRE dos PÁSSAROS, FÁBULA (1997)

HORA da GUERRA, CRÔNICAS (2008)

carybé