fevereiro 28, 2022

.................................................. SEI ONDE FICA o PARAÍSO


“de quem iremos falar? Se todos os dias morrem
entre nós os que nos faziam algum bem, embora
nunca o bastante, sabiam, mas
contavam, vivendo, aumentá-lo um pouco.”

W. H. AUDEN
(1907 – 1973. York, Reino Unido)
 
Ilustrações: BEX PARKIN
(Reino Unido)
 
 
Noite assim sem nuvens, tão bonita, eleva o espírito às alturas. No fim de um dia melancólico, desprotegido, penalizado com o suicídio de dois amigos do passado grapiúna, sento-me para escrever sem fronteiras. Afinal, quem escreve honestamente não teme as catástrofes e convida o leitor para um combate intelectual. Em estupor vive o mundo: guerras, pandemias mercenárias e calúnias comunistas. No entanto, luzes aqui e ali mostram seu brilho. Assim, escrevo para que, de fato, a experiência do tempo e da saudade possam ser absorvidas. Penso que, um dia, ler este e outros textos, provenientes da minha tensão de esvair-me e cumular-me em metamorfoses, poderá proporcionar-me o eterno retorno. Por vezes, de uma imagem que se desdobra na memória nascem robustas narrativas atravessadas por instantes de emoção, de beleza, de vida-morte, frequentemente com um clímax sentimental.

Tudo que tenho é uma voz para retratar o véu romântico das entranhas. E ninguém existe sem recordações. Sem o passado, viver quem há de? Subitamente, a mente anima paisagens aparentemente desabitadas. E o substrato humano do mundo romântico em ação, a pureza e a vastidão das recordações, os mistérios de mundos que nos são familiares, mas que, no fundo, quase esquecemos, voltam em sensações animadas num momento de intensa beleza. Deixam claro que o romântico é uma marca emblemática, virtuosa e estúpida do meu coração contraditório. Durante décadas, imaginei a possibilidade de encontrar o amor imortal casualmente, talvez em um bar ou numa esquina movimentada, e seria feliz para sempre como em um conto de fadas. Acreditava também em amizades sólidas, crente de que os amigos circulariam ao longo dos anos por mundos opostos, mas na maturidade nos juntaríamos numa espécie de clube, de fortaleza, de condomínio do bem. Os velhinhos outrora devassos recordariam façanhas, amores e desenganos; dariam risadas libidinosas e um cuidaria das mazelas do outro. Um ideal de fim de vida mais romântico impossível.


A memória que me falta liberta-me de amarras e muitas vezes me faz sentir nostalgia de situações que não aconteceram, mas reais e válidas por acreditar nelas. No espaço vago da substância esquecida crescem as coisas iluminadas. Nasci numa família tradicional falida. Tivemos dificuldades. A falta de dinheiro era um pesadelo. Meu pai, um advogado alcoólatra com poucos clientes. Eu estudava num colégio de bacanas, pois um tio professor me ofertou uma bolsa. No Divina Providência, fiz amigos endinheirados. Através deles, carros à disposição, convites para festas, entrada livre em clube privado e boates, passeios em fazendas e casas de praia. Trabalhava um turno como secretário de outro tio, gastando o enxuto salário em roupas. Vaidoso, bem vestido, devia à inúmeras lojas, sacrificando-me para pagar as prestações acordadas. Andava pra cima e pra baixo, comendo e bebendo, namorando, sem um tostão no bolso. Essa farra irresponsável durou alguns anos. Veio a literatura de viagens e mudou tudo. Algo era, enfim, importante.
 
Mergulhei no exercício do texto experimental, escrita confessional que existe para dentro do silêncio. Escolhi, definitivamente, não ser poeira, mas vibração luminosa que se abre à vertigem-fulgor da literatura. Tive um amigo, Salomão, incrivelmente encantador, que lia empolgado os meus contos e poemas imaturos. A primeira desilusão aconteceu quando ele morreu inesperadamente, em um acidente de moto, aos 20 anos. Chamava-me de “meu poeta favorito” e seu fim me perturbou, não aceitei de forma nenhuma, invadindo o cemitério na calada da noite, destruindo flores ainda frescas, comendo a terra que cobria o seu túmulo e chorando desesperadamente ao declarar meu infortúnio. Meses depois, aos 23 anos, outro precioso amigo morreu de Aids. Ao visitá-lo em Santos, disse-me, amargurado: “Fiz sexo três vezes na vida e vou morrer. É uma injustiça, vou cuspir na cara de Deus”. Eu nunca o esqueci. Era um moço feioso, de mente brilhante e humor inteligente.
 

Esses foram os primeiros relâmpagos e arrepios malditos. Seus óbitos abalaram os pilares do futuro condomínio geriátrico e da possibilidade de um inesperado amor a galope. Os anos de juventude passaram. Os membros da sonhada fortaleza paradisíaca surtaram, morreram de overdose, tornaram-se comunistas, foram consumidos pelo câncer, cortaram relações comigo por acreditar em Jair Messias Bolsonaro. Aos cinquenta e poucos anos me vi sozinho. Decepcionado com a mediocridade generalizada, continuei constante na fé em Deus e na própria existência. Embora saiba que a Terra em 2022 não é um planeta nos seus melhores dias. Vale dizer, escrever é o que me dá sustância, mantendo o terror a uma certa distância. Essa animação literária manifesta-se numa escrita de sedução e de confronto, de atração e de lamento, de revelações e de enigmas, de luz e de sombra, de movimento e de quietude.

Recordar duplica as existências humanas e gera novas realidades. Potencializa o bem e o mal. Com a maturidade aprendi que o trevoso é pouco aparatoso e sempre humano, partilha a nossa intimidade e come à nossa mesa. Ainda jovem, um dos amigos que mais desejei bem, admirando seu charme e inteligência, na surdina era um verme. Ao vivo, sempre cúmplice, apoiava-me artisticamente. Quando decidi viver na Europa, deu uma sofisticada festa de despedida no seu elegante apartamento e me presenteou com 300 dólares. Nos bastidores, maligno, fez perversidades inesperadas. Que lembrança triste! Décadas depois, drogado pelas ruas, falando ao vento, foi internado e reabilitado, mas nunca mais foi o mesmo. Chorei ao saber da sua decadência. Na juventude, pensava nele como o síndico da nossa fortaleza de idosos.
 

Entre desatinos, continuo acreditando na importância do amor. Não é um modismo nem tampouco antiquado. E tenho amigos leais que amo! Gente do bem com quem converso e visito ocasionalmente. Cordial e romântico, eu jamais fui um alienado. Como cidadão juramentado me sinto muitíssimo à vontade para conviver com a realidade. Mesmo sem os corações do passado, vez ou outra penso na reunião dos cúmplices da efervescente mocidade. Numa nova conspiração do destino, ano passado, dois deles morreram de doenças sinistras. A seguir, uma sorridente primeira namorada, garota belíssima de coração suave, que grávida me convenceu a levá-la a clínica de aborto do doutor Wilson Telles, um carniceiro, e eu aos quinze anos não soube lutar pelo meu filho, partiu depois de meses de sofrimento de um câncer avassalador.
 
Com o condomínio afetuoso em ruínas, terei forças para seguir em frente e contar nossas narrativas para os fantasmas? Esta semana soube do óbito de mais dois membros dessa fortaleza. Não tinham nem 50 anos. Conheceram o mundo, fizeram sexo com muitos e foram vencidos pela solidão e drogas. Deprimidos, enforcaram-se. Meu Deus, por que? É tão cruel! Meu maior amigo português, Nuno Cassimiro, enforcou-se numa árvore num jardim bucólico. Meu maior amigo em Londres, Ricardo Ramirez, enforcou-se numa fábrica abandonada ao lado do Tâmisa. Meu maior amor, Morvan, enforcou-se à beira mar. Agora Moisés e Lúcio enforcam-se no Arraial da Ajuda e no Recife. Não há heroísmo. Enforcar-se é covardia macabra e medieval.
 

Ele se foi no calor do verão. As praias concorridas, os prazeres impávidos e o sol derretendo as súplicas mais piedosas. O dia da sua morte foi um dia ensolarado. Terrivelmente encantador, o leviano Moisés no fundo não se importava com ninguém. Filho de uma família rica, incapaz de amar, foi um bom amigo em duas épocas distintas. Inicialmente, no final dos anos oitenta, quando dava festas divertidas em seu apartamento. Ao contrair o vírus da AIDS, todos o abandonaram, e ele partiu para Miami e eu pra Espanha. Quinze anos se passaram. De volta a Itabuna, reencontramo-nos. Eu o perdoei pelas antigas maldades. Separado da esposa oportunista, duas filhas, queria investir na sua arte como escultor. Durante um ano, apareceu semanalmente em minha casa. A gente enchia a cara de vinho, via filmes cults e comentava sobre arte e a mediocridade da sociedade baiana. Um blá-blá-blá interminável. Os fatos eram a nossa melhor ficção.
 
Moço talentoso, aventureiro, conhecedor do mundo, bem informado, amoral. Observando seu toque de loucura, eu desconfiava que teria um destino trágico. No nosso encontro final, Mosinho surgiu num domingo, bem cedinho. Visivelmente ébrio, levava uma garrafa de vodka numa das mãos. Perguntei o que estava acontecendo, respondeu estar na farra desde sexta à noite e não podia ficar sozinho. Fiz um sermão fajuto, pedi que tivesse juízo. Ele riu, debochado. Brincando, sugeri que apelasse à Deus. “Não preciso de Deus, sei onde fica o paraíso”, respondeu. “Sabe? Onde?”, indaguei curioso, esperando um tratado filosófico niilista. Ele abriu a bolsa e espalhou diversos papelotes de cocaína no sofá.
 

Pouco tenho a dizer sobre Lúcio Ávila. O conheci adolescente, ainda inocente e belo. Eu era um pouco mais velho. Fomos algumas vezes pra cama, sem paixão ou compromisso. Anos depois, ele casou-se com um sujeito problemático e arrogante. Foram viver em Porto Seguro, montaram lojas de roupas chiques, ganharam grana, afogaram-se no pó, faliram e, por fim, separaram-se. Dedicado e simpático, Lúcio trabalhou como assessor da tosca Ivete Sangalo, no pior momento da cantora, quando estava pra lá de Marrakesch. Ao perder o controle, ela o chutou. Certa vez eu o encontrei em Londres. Vivendo nas terras de Shakespeare, ele apareceu à trabalho e me convidou para assistir ao show conjunto de Ivete, Gilberto Gil, Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Depois, no camarim, no meio da fartura de uísque e outras coisas, Ivete passeava pra cima e pra baixo de calcinha, como se fosse uma deusa. Então, sem saco pra aquela gente, recusei ir com eles a uma festinha privada no apartamento de um produtor inglês. Lúcio não concordou, como se fosse uma ofensa. Deixei claro que não curtia conviver com Ivete, Gil e Arnaldo Antunes. Nunca mais voltamos a nos encontrar.
 
Considerando a motivação que me arrasta, agradeço a sobrevivência ao meu Anjo guia. Rezo para que o amor mais íntimo e verdadeiro cavalgue para alcançar nossos objetivos. É uma montaria que supera a desilusão e salta obstáculos. Pois é, sempre tive uma impressão azeda do suicídio. Embora tenha chegado a pensá-lo, no estilo Virginia Woolf, pedras nos bolsos e afogamento num formoso rio, felizmente na ocasião não havia um rio por perto. Defino o suicídio como maldito não pela questão moral ou espiritual, mas por golpear emocionalmente quem fica. Infelizmente, são tempos trevosos, os demônios estão sedentos de insaciáveis e o vazio é devastador. Conto com poucos, a maioria dos queridos morreu ou se transformou em monstro comunista. Agora, amadurecido e vivendo em farta paisagem marítima consoladora, sei que a sonhada fortaleza-paraíso jamais será erguida. Resistindo ao massacre, talvez aloprado até certo ponto, lembro com louvor amigos que foram importantes numa convivência ingênua. Nesta noite de sortilégios, recordo benéficos momentos juntos. Ave, energia azul! Fica com Deus, Moisés, Lúcio, Papita, Márcia, Salomão, Renatinho, Wilde, Altino, Guga, Sandrão, Chico, Vera Black, Tinho, Marcelo, Abijaude e tantos outros! Ternamente penso em Vós.

Navego naquele estágio mais pra lá do que pra cá, e optei em me confortar com a beleza da vida. Enxergo estrelas no infinito. Intacta, graças a Deus, a minha lua, ainda rainha dos céus, uma presença incrível. O futuro é uma incógnita e finalizo este texto-celebração reafirmando a importância do amor. Só ele pode nos levar a um estado suave. O objetivo é uma maturidade fértil e sem desespero: com esta meta virtuosa, aprendo a viver no caos, reaprendo a emoção exata, a afeição e o espanto documentado, acumulando futuros no dia a dia, dentro de uma liberdade íntima que acredita na gratidão e na alegria de viver.



fevereiro 12, 2022

............................................ O NÓ MISTERIOSO das COISAS

 

“Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro”

MÁRIO de SÁ-CARNEIRO
(1890 – 1916. Lisboa / Portugal)
 
Ilustrações: KATE HEISS
(Reino Unido)
 
 
Houve uma vez um verão europeu. Eu esperando o primeiro dia de sol no Seixal, uma bucólica cidadezinha vizinha a Lisboa, na margem oposta do Tejo. Desde essa época, acredito que o calor solar e a literatura são condições eficazes para se atingir o bem estar. Muito antes da maturidade, num verão tropical, aos oito anos de idade, com alma confundida e inocente, subia numa árvore para devorar “Alice no País das Maravilhas” (1865), de Lewis Carroll, como se estivesse num refúgio secreto ou num jardim encantado que supostamente ninguém jamais poderia me encontrar.
 
O maior bem do homem é uma mente inquieta. Sendo assim, traduzo-me como inclassificável, independente e justo em opiniões morais, políticas e artísticas, arriscando-me à marginalização social. Cresci na informal e insensata cultura baiana, fui à universidade, estudei, viajei, perdi tempo com tolices, fiz centenas de entrevistas, aprendi muito. Resultado dessas experiências, conferi que essencial é o caminho que trilhamos. Quando se vive sem a pretensão de ser importante, e se tem a curiosidade do saber, o aprendizado é fundamental, solidário e iluminado.
 
Ao longo do tempo, uma das descobertas foi a importância da música. Meu cotidiano quase sempre tem trilha sonora. Neste momento, ouço a voz inquietante do senegalês Baaba Maal, da mesma tribo de Youssou N'Dour e Ismael Lô. A música suaviza o coração. Penso também constantemente em vivências e livros. Embora tenha passado largas temporadas em metrópoles, sou em essência um sujeito das montanhas, de cidade caipiras ou de fazendas à beira de matas. Nostálgico e contemporâneo, minha literatura é muitas vezes simbólica. Uma mistura de realidade, memória e imaginação.


No meu tempo em Madri, a considerei uma capital impactante. Lisboa me pareceu tristonha e provinciana. Paris é atraente e esnobe. Morei um ano e meio em Londres. Uma cidade sombria, úmida, enfadonha e civilizada. Voltei ao Brasil após doze benditos anos europeus, mas perdi a essência tupiniquim e desanimo com a violência galopante, as dificuldades de sobrevivência e o culto à ignorância. A maior parte dos nossos políticos são hienas esfomeadas que se agarram ao poder. Durante décadas, cretinos com más intenções ganharam a confiança do povo. É trágico e verídico. Felizmente houve um despertar, e a sociedade enfim descarta os eternos malandros do Congresso. Porém, o sistema resiste e nos sabota. Mas até quando?
 
Creio que a arte supera o vazio. As pessoas que não produzem arte têm uma existência mecânica. Investem em um negócio para sobreviver ou trabalham em empregos medíocres para pagar contas, oxidando o espírito. Para me proteger, acredito sinceramente na literatura. Ando relendo Anna Akhamátova, de poesia íntima, sofrida, dramática. A poética russa dança ao sopro do virtuoso: Blok, Óssip Mandelstam, Maiakóvski, Pasternak, Essénin, Marina Tsevtáeva. Como cidadão do mundo, não aceito limites, aprecio a arte de qualquer lugar.
 
Numa recente revista literária portuguesa, um brasileiro supostamente poeta é destacado numa fotografia em um fundo medieval, de charme elaborado em luz e sombra. Ele em primeiro plano, fortalecido por muros de pedra. Uma farsa, a poesia contemporânea do Brasil é descartável, vazia, pretensiosa. Esse sujeito na publicação lusa não tem o dom da criação literária. Deus, pergunto sem inveja, já que a inveja é uma estupidez, por que dá tanto a quem não merece nada?
 
Grato por mais um precioso verão, estou a um passo do nó misterioso das coisas. Não se pode ter ao mesmo tempo a noite e o dia. Amo a vida e convivo sem medo ou desespero, lutando contra a desonestidade, a psicopatia de tanta gente e a miséria. Guerreiro, o destino que Deus me deu é respeitado. Até o último dia acreditarei na bondade, na cumplicidade dos livros, nas palavras poéticas voando na mente como abelhas, na esperança de dias melhores, na certeza da beleza íntima e nos relâmpagos tortuosos do amor. Não temo o perigo, busco a serenidade como a luz no final do túnel. Confio na essência que liberta. Nada é para sempre. Aprendi que do mundo nada se leva.