janeiro 31, 2022

.................................. THOMAS MANN – EXÍLIO e SOMBRAS



“A solidão mostra o original, a beleza ousada e surpreendente, a poesia. Mas a solidão também mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito.”
THOMAS MANN
Morte em Veneza
 
Ilustrações:

KARL HOFER
(1878 – 1955. Karlsruhe, Alemanha)
 

Autor de obras-primas como “A Montanha Mágica”, THOMAS MANN (1875 - 1955. Lübeck / Alemanha) é um dos maiores escritores de todos os tempos. Premiado com o Nobel de literatura em 1929, manifestou-se constantemente sobre as questões de sua época. Era filho de uma família abastada, o pai senador e a mãe, uma brasileira rica de Paraty que tinha talentos artísticos, tocava piano muito bem, cantava e contava histórias. Irmão mais novo de Heinrich Mann, autor de  O Anjo Azul / Professor Unrat” (1905), e um admirador apaixonado da música de Wagner, escreveu em 1933 o polêmico ensaio “Tormento e Grandeza de Richard Wagner”. Em 1895, viajou pela Itália. Na volta, publicou numa revista o conto “A Vontade de Ser Feliz”

Em 1900, aos 25 anos de idade, concluiu o gigantesco “Os Buddenbrook – História do Declínio de Uma Família”. Entre 1900 e 1903, namorou o pintor e violinista Paul Ehrenberg, que inspiraria o Rudi Schwerdtfeger de “Doutor Fausto”. Pouco depois, conheceria Katia Pringsheim, de uma rica família de intelectuais e artistas de origem judia – sua avó era uma conhecida feminista. Casaram em fevereiro de 1905. Foi uma união feliz. Ensaista e tradutora, Katia se esforçava para poupá-lo das preocupações cotidianas.

O casal teve seis filhos bem dotados: o mais velho, Klaus, elogiado como escritor, principalmente pelo romance “Mephisto”, de 1936; a filha mais velha, Erika, casou-se com o famoso ator nazista Gustav Grundgens, e mais adiante administrou a herança literária do pai; o segundo filho, Golo, tornou-se historiador respeitado; além deles, a ensaísta Monika, o violinista e literato Michael Thomas e a cientista Elisabeth. Nesta família talentosa, havia incesto, ódio, homossexualidade e suicidas. Klaus morreu de overdose em 1949, e Michael, o mais novo, depressivo, matou-se misturando álcool e barbitúricos.
thomas mann, erika, katia e klaus

Quando Klaus ainda era um adolescente, seu pai o encontrou nu e escreveu em seu diário: “Forte impressão de seu corpo magnífico em desenvolvimento. Senti uma emoção poderosa”. Após o suicídio do filho em 1949, Erika tornou-se mais dependente de seus pais e eles dela. Na juventude, ela atuou em peças teatrais antinazistas, e ele dirigiu uma revista para emigrantes. Elisabeth, mencionada com ternura pelo pai em cartas e diários, casou-se com um acadêmico idoso, vivendo em Chicago e na Itália. Monica, em 1940, teve seu navio torpedeado cruzando o Atlântico, e viu seu marido se afogar.

Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, THOMAS MANN escreveu “A Morte em Veneza, baseada numa temporada no Grand Hôtel des Bains do Lido, onde encontrou um bonito aristocrata polaco que inspirou Tadzio. Em 1913, recebeu o título de Doctor Honoris Causa na Universidade de Bonn, iniciando uma trajetória rica em honrarias. Pouco antes da guerra, tornou-se nacionalista, escrevendo “Considerações de um Apolítico” e entrando em confronto com o irmão Heinrich, que se opunha ao militarismo alemão. O ensaio é uma mescla de nacionalismo, de ilusões românticas e de polêmica literária. Depois apoiou a República de Weimar, tendo-se oposto ao nazismo e denunciado o antissemitismo. Se reconciliaria com o irmão no final dos anos 20.
heinrich e thomas

Após a grande vitória eleitoral dos nacional-socialistas, em 1930, THOMAS MANN faria um discurso em Berlim, intitulado “Apelo à Razão”, se referindo visionariamente ao nazismo como “uma onda gigantesca de barbarismo excêntrico”, cheio “de primitivismo e marcado por “convulsões de massa, aleluias e repetições mistificantes de chavões monótonos, até que todo mundo espume pela boca”. No discurso, pergunta se se tornará realidade “uma singeleza primitiva, simples de coração e de juízo”, e se dará certo num “povo cheio de cultura e experiente”.

O escritor afirmava que escrever exigia coragem e sacrifício. Mítico e autoconfiante, lembra com orgulho, em carta a Theodor Adorno em 1950, que o “deus Franz Kafka amava Tonio Kröger”. Na realidade, ele consagrou a vida ao seu ofício, que desempenhou com perseverança e meticulosidade. Obcecado pela perfeição, porque a obra de arte deveria ser perfeita para durar, desde jovem deu rédea solta aos seus desejos criativos, a um impulso literário nascido do que ele chamava de sua “mania de contar histórias”, herança de sua mãe.
julia, mãe de thomas

A deslumbrante carreira literária deu seu primeiro salto qualitativo em 1901, quando publicou “Os Buddenbrooks – História do Declínio de Uma Família”, um best-seller. Romance filosófico, análise profunda do ser e das condições da vida. A reflexão, a introspecção, o refinamento moral, a sagacidade literária, apresentam-se aos olhos do jovem escritor. Em 1924, foi a vez de “A Montanha Mágica”, também um enorme êxito. Um livro ousado que critica a sociedade e desnuda a alma. São páginas cheias de discussões e divagações sobre o tempo, a morte, o corpo, a doença, o amor, o progresso. Um texto inovador, de um outro tempo, de um outro mundo.

Em 1933, poucos dias depois de Adolf Hitler se tornar chanceler, THOMAS MANN viajou pela Europa, acabando por se fixar em Zurique. Despojado da nacionalidade alemã, perdeu sua casa, seus bens, seus livros, seus manuscritos e o título Honoris Causa recebido em 1913. Em 1936, adquiriu nacionalidade checoslovaca e, dois anos depois, aceitou um posto na Universidade de Princeton, nos EUA, sendo recebido na Casa Branca e se proclamando herdeiro de Goethe: “Onde estou, está a Alemanha”. Em 1943, começou “Doutor Fausto” e, no ano seguinte, ele e a esposa adquiriram nacionalidade norte-americana.
 
Amante inveterado da música, algo que se refletiu na sua obra. Com convicções burguesas e liberais, repudiou a manipulação das massas pelo totalitarismo . E embora sustentava que a coisa mais digna e verdadeira era “o isolamento, o equilíbrio silencioso e proveitoso da vida”, essa solidão, da qual nasce o trabalho da arte original, não hesitou em saltar para a arena pública e erguer-se na defesa da dignidade humana pisoteada por tiranias.
 
Conhecido em família como “O Mago”, manteve ao longo de sua existência uma homossexualidade latente e secreta. Nos recitais e nos concertos notava um jovem, olhava para ele, fazia sentir e compreender o seu encanto, e mais tarde, na privacidade dos seus diários, registrava o momento. Em 31 de outubro de 1920, escreveu: “Em um ensaio da Missa Solemnis, minha impressão principal foi de um jovem extraordinariamente bonito, de aparência eslava e vestindo uma espécie de traje russo, com quem estabeleci uma espécie de contato à distância, pois percebeu meu interesse por ele e estava obviamente satisfeito com isso.”

a família mann
Guardou seu desejo, sua energia erótica, sua sexualidade discreta para seu trabalho: todas as manhãs em seu escritório, por quase sessenta anos, ele se desmascarava, tirando a guarda. Seu “Buddenbrook”, publicado em 1901, a “Felix Krull”, publicado em 1954, estão imersos no homoerótico. Os destinos da maioria de seus heróis – Hanno Buddenbrook, Tonio Kröger, Aschenbach, Hans Castorp, Adrian Leverkuhn, Felix Krull – são moldados por sua homossexualidade inquieta e ambígua. Assim, dezenas de exemplos e contextos na sua obra garantem que sua vida e sua arte formem um todo indivisível. 

Aos 14 anos ele se apaixonou por um colega de classe, Armin Martens, uma experiência que se lembrava sessenta anos depois como “delicada, dolorosamente dolorosa”. O amado tornou-se Hans Hansen em “Tonio Kröger”. Alguns anos a seguir, outro colega, Willri Timpe, deu a ele o modelo para Pribislav Hippe, por quem Hans Castorp em “A Montanha Mágica” tinha uma queda. Aos 25 anos, teve o que chamou de “aquela experiência central do meu coração” com Paul Ehrenberg, um estudante de pintura e violinista da Academia de Arte de Munique, que mais de quarenta anos depois se tornou Rudi Schwerdtfeger em “Doutor Fausto”.

Até mesmo o adolescente de “A Morte em Veneza” foi baseado em um garoto real. Em livro de memórias, sua esposa Katia escreveu: “Um menino muito charmoso e bonito de cerca de treze anos. Ele chamou a atenção do meu marido imediatamente. Era tremendamente atraente, e meu marido sempre o observava com seus companheiros na praia. Ele não o perseguiu por toda Veneza, mas o garoto o fascinava, e ele pensava nele com frequência.” Em carta de 1927 para seus filhos mais velhos, Erika e Klaus, ambos gays, o escritor confessou sua paixão por Klaus Heuser, de 17 anos. “As aventuras secretas e quase silenciosas da vida são as melhores. Eu vivo e nos amamos. Seus olhos negros se encheram de lágrimas. Seus lábios eu beijei.”.

Seu último amor foi talvez o mais pungente e obsessivo, e também entrou em sua ficção. Observado tanto por sua esposa quanto por sua filha Erika, aos 75 anos ele se apaixonou por Franz Westermeier, um garçom bávaro. Em seu diário, escreveu: “A fama mundial é inútil para mim. Nada vale. Prefiro um sorriso dele, seu olhar, a suavidade de sua voz. Ele foi levado para a galeria que nenhuma história literária relatará, e que remonta a Klaus H., Paul, Armin... Adormeço pensando no meu querido.”. Estar apaixonado por Klaus resultou em ensaio sobre Kleist, Westermeier o inspirou a escrever sobre Michelangelo.
casa de thomas mann na califórnia
 
De 1939 a 1952, os Mann viveram nos Estados Unidos, onde a reputação do romancista era alta, uma espécie de porta-voz dos emigrantes alemães. Ele construiu uma bela casa na Califórnia, perto de outros patrícios – Schönberg, Bruno Walter, Adorno e seu irmão Heinrich. Terminada a Segunda Guerra Mundial, recusou-se a  regressar à Alemanha, escrevendo a um amigo, “Há duas, três ou talvez quatro pessoas que eu gostaria de ver novamente. Todos os outros me fazem estremecer.” Voltou em 1949, após a morte do filho Klaus e do irmão Heinrich, para receber o Prêmio Goethe em Frankfurt. Seis anos depois esteve em Stuttgart e Weimar, discursando em homenagem a Friedrich Schiller. Nos anos 1950, THOMAS MANN fixou-se na Suíça, em Zurique, onde morreu em 1955, aos 80 anos.
 
No decurso de seus últimos anos, THOMAS MANN considerou sua vida e sua obra com ceticismo, citando Shakespeare, “Tu vens sob uma forma tão dúbia... ”, e Goethe, que dissera de sua própria existência: “Em todo caso, assim é que ela foi. Quem quiser a imite sem quebrar o pescoço”. Entretanto, sua arte está impregnada de vida. Isso é o que ficou, essa é a verdade diáfana de um extraordinário homem de letras. Um escritor de sucesso, de uma vida de exílios e desejos ocultos, de sabedoria e melancolia, de dedicação e sombras.
 

10 LIVROS de THOMAS MANN
(por ordem de preferência)
 

01
Os BUDDENBROOK – HISTÓRIA do DECLÍNIO de uma FAMÍLIA
(Buddenbrooks: Verfall eimer Familie, 1901)
 
A saga de uma abastada família de comerciantes do norte da Alemanha. Quatro gerações retratadas com personagens vívidos, diálogos brilhantes e riqueza de detalhes. Um olhar preciso sobre a burguesia alemã - entre nascimentos e funerais, casamentos e separações, desentendimentos e rivalidades, sucessos e fracassos, declínio moral e financeiro. É considerado um dos principais romances do século XX.

02
A MORTE em VENEZA
(Der Tod in Venedig, 1912)
 
Um prestigiado escritor alemão de meia idade, que passa por um período de bloqueio criativo, tomado por um impulso, decide viajar para Veneza em busca de descanso. Lá ele encanta-se com um jovem polonês, de apenas 14 anos, que passava o verão com a mãe e suas irmãs. O protagonista foi inspirado no compositor Gustav Mahler, que faleceu em 1911, na época que o autor estava em Veneza, onde a história nasceu. O filme de Visconti, de 1971, transforma o personagem em compositor, trazendo para a tela as músicas de Mahler.


03
DOUTOR FAUSTO
(Doktor Faustus, 1947)
 
Releitura moderna da lenda de Fausto, na qual a Alemanha trava um pacto com o demônio - uma brilhante alegoria à ascensão do Terceiro Reich e à renúncia do país a sua própria humanidade. O protagonista é um compositor que cria uma música radicalmente nova e balança as estruturas da cena artística da época. Em troca de 24 anos de verve musical sem paralelo, ele entrega sua alma e a capacidade de amar as pessoas. Uma meditação profunda sobre a identidade germânica e as responsabilidades de um artista.
 
04
A MONTANHA MÁGICA
(Der Zauberberg, 1924)
 
A trajetória de um jovem engenheiro. Durante uma estadia de sete anos em um sanatório para tuberculosos nos Alpes suíços, ele relaciona-se com uma miríade de enfermos que encarnam os conflitos espirituais e ideológicos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. Lidando com uma variedade de temas - estados doentios, a arte, o amor e a morte -, esta obra-prima é um dos grandes testamentos literários do século XX.
 

05
As CABEÇAS TROCADAS
(Die Vertauschten Köpfe, 1940)
 
Nas terras indianas, o triângulo amoroso entre Sita, “a das belas cadeiras”, Shridaman, descendente de uma estirpe de brâmanes, e Nanda, vigoroso ferreiro e pastor de gado. Sita se casa com Shridaman, mas se deixa encantar pelos atributos físicos de Nanda - na verdade, os dois amigos íntimos têm qualidades que, para ela, se complementam idealmente. Ao se aproximar da filosofia oriental, o autor experimenta o erotismo, a profanação e a mitologia, mas não abre mão de um elemento caro à sua prosa: o embate entre instinto e razão.
 
06
Sua ALTEZA REAL
(Königliche Hoheit, 1909)
 
Com um tom de fábula e certa tendência à paródia, conta a história do grão-ducado de Grimmburg e de um divertido príncipe que de repente vê o mundo ultrarrígido de sua corte, dominado por tradições e hierarquias, confrontado com a visão pragmática de um bilionário norte-americano e, sobretudo, de sua filha de espírito independente. Os jovens se aproximam e, para além do encantamento, o príncipe tem a clareza de que a salvação de sua estirpe pode estar na fortuna da moça. Uma cuidadosa descrição da sociedade europeia em decadência, que vislumbra no vigor do Novo Mundo uma possibilidade de rejuvenescer.
 

07
TONIO KROGER
(Idem, 1903)
 
Centrada na relação entre o artista e a sociedade, em grande parte autobiográfica, a narrativa acompanha a vida do protagonista desde criança até jovem adulto. Filho de um comerciante alemão e de uma mãe latina de tendências artísticas, ele divide-se entre ambos. No início, sente-se atraído por um colega popular e voltado para o esporte. Poeta, dado à introspecção e à reflexão sobre a arte, fica fascinado pelos que vivem dos seus instintos vitais. A arte será uma condenação à solidão?  O que é a vida autêntica?
 
08
CONTOS
(Frühe Erzählungen, 1893 - 1912)
 
Vinte e cinco histórias que tratam da relação entre arte e vida, o lugar da morte e da doença, o sentido da existência, a importância do trabalho e as complexas relações do indivíduo com a sociedade e a cultura dominante - além da preocupação recorrente com o destino político e cultural da Alemanha. Da comédia macabra à tragédia, dos contos breves aos mais extensos, as várias facetas de um mestre da ficção.
 

09
O ELEITO
(Der Erwählte, 1951)
 
A epopeia medieval do Papa Gregório, homem que vive a dualidade de ser fruto de um pecado e querer servir a Deus com toda sua alma. Narrado por um monge irlandês, o romance acompanha sua vida, lançado ao mar num cesto, ainda bebê, por ser o fruto pecaminoso de um casal de irmãos nobres. Ele sobrevive milagrosamente e é criado numa ilha por pescadores e um monge. Já adulto, o destino fará com que ele reencontre a mãe, agora rainha, e repita o pecado do incesto, pois ambos ignoravam seus laços de sangue. Banido de novo, buscará o caminho da evolução moral e espiritual, para então encontrar a redenção divina.
 
10
MÁRIO e o MÁGICO
(Mario und der Zauberer, 1930)
 
Uma viagem à cidade costeira italiana de Torre di Venere. A família espera umas férias calmas, mas vai ser confrontada com os problemas políticos da Itália de Mussolini e, em particular, com os numerosos turistas de classe média. Após diversos incidentes, assiste ao espetáculo de um mágico. Mas, mais do que um mágico, ele revela-se um poderoso hipnotizador. Durante a sua representação, se mostra capaz de tornar o público dócil, um pouco como Mussolini e outros ditadores europeus da época foram capazes de fazer.


janeiro 12, 2022

................ SOAVAM VOZES, SENSAÇÕES AZULADAS e ESPANTOS

 

para Fahda Maron


“Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes”
SOPHIA de MELLO BREYNER ANDRESEN
(1919 – 2004. Porto / Portugal)

Fotografias: MARCELO MENDONÇA
e RICARDO CORTE-REAL
 
 

“Ama e faz o que quer”, orientou o apóstolo São João. Durante muitos anos morei em Lisboa com o coração rutilando de amor e fazendo o que queria. Nessa época, escrevi inúmeras crônicas em Belém, bairro peregrinado por turistas ávidos pelos célebres pastéis doces e pelo espetacular Mosteiro dos Jerônimos, um monumento erguido para a sepultura do rei D. Manuel I, representando boa parte da história de Portugal, principalmente a idade de ouro e suas descobertas.
 
Vivi meses ao lado do Castelo de São Jorge e no Restelo, em frente a praça da igreja barroca de Nossa Senhora da Memória. Foi uma temporada de aprendizado, muito vinho e nostalgia redentora, habitando um paraíso arquitetônico e paisagístico. Dava uns passos e ladeava os túmulos de Camões e Fernando Pessoa, o Jardim Botânico sem ninguém, a Praça do Império com a fonte cravejada de brasões e jardins de oliveiras. Quase sempre lia poemas beirando os palácios de Belém e da Ajuda, na torre-fortaleza.

As cartas românticas eram vistas nas margens do Tejo, de águas de tonalidade açúcar mascavo, na desaparecida Praia das Lágrimas, local da despedida de marinheiros no século XV, que partiam para enfrentar um destino de tempestades, doenças, solidão e muitas vezes fome. Ao lado, o Centro Cultural de Belém (CCB), magnífico prédio em que assisti espetáculos de Hannah Schygulla, Jessie Norman e Giorgio Albertazzi em “Memórias de Adriano”. Nele vi também fotografias hipnóticas do mexicano Manuel Álvarez Bravo.
 
Caixinha de preciosidades, Lisboa guarda sustos e resignações. É um labirinto emblemático de pormenores. Identificava-me com as figuras de pedra do claustro dos Jerônimos, apontadas para o céu, pisando a cabeça de reis e visualizando um distante passado. Se fechava os olhos, via o terremoto de 1755, que não poupou a maior parte da cidade. Absorvendo misteriosas influências e névoas do oculto, acompanhado de livros e diário inseparáveis, dividia o apartamento térreo do Restelo com os fantasmas de uma idosa mulher e um felino.
 
Nenhuma oração ou lamento conseguia demoli-los da recorrente visita notívaga. O gato saltava na cama, a magra senhora sentava aos meus pés e dali não se moviam. Na janela, aberta para um quintal com um limoeiro e elegantes copos-de-leite, a cadela Sidhi – em hindu “iluminada pelos deuses”, creio - metia as patas e o focinho, os olhos luminosos observando as assombrações. Era aterrorizante! Sei que é coisa que não se diz, soa falso, provoca incredulidades, estamos numa época que se dá importância ao realismo cru, quando ele próprio, afinal, pouco significa.
 
Sob uma lógica globalizada, se nossos conceitos não fazem parte dela, tentam eliminá-los. A mente que apenas raciocina pela razão é perigosa, tal qual a mente que apenas se entrega ao sentimentalismo. Entre a razão e o sentimento, viajei pela Europa, um continente onde seus habitantes imaginam viver no topo do mundo. Consumidos pelo antigo, preferem a ação à contemplação. Ilusões como a ciência e a política são tomadas redondamente a sério e o belo é premeditado. Já a beleza tupiniquim tem aparência distinta. Nossas cidades são arapucas sujas e de mal gosto, habitadas por multidão inclassificável, mas que inesperadamente brilha, como espontânea poesia.

Na tristonha e opressiva Lisboa, recordava Fernando Pessoa, o poeta de “Mensagem”; e também Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde. “Nas nossas ruas ao entardecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam um desejo absurdo de sofrer”. No louco Bairro Alto, divertia-me com o cantor Emílio Santiago, assistindo espetáculos de travestis drogados no “Finalmente”. Antes, um chá de kava-kava no “O Outro Lado da Lua, uma ginginha no “Portas Largas”, a música vigorosa do “Frágil”, a sordidez do bar “As Primas” e a suntuosidade delirante do “Lux”.
 
A capital portuguesa me dá a sensação de romantismo e ausência. Talvez os mistérios existam para não decifrarmos. Nunca apreciei a arte portuguesa contemporânea. Os atores atuam como ventríloquos - com exceção da dócil expressividade de Maria de Medeiros; o cinema é sonífero, inclusive João César Monteiro, Pedro Costa ou Manoel de Oliveira nos seus momentos virtuosos (“Vale Abrãao”, por exemplo); a música é enfadonha, desde o mito Amália Rodrigues a Tereza Salgueiro, do “Madredeus”, uma espécie de Adriana Calcanhoto, talentosa e sensível, mas bastando três canções seguidas para a ladainha de lamentações incomodar. A pintura só tem expressão na soberania de Paula Rego. A literatura é o que há de melhor na arte lusitana: Eça, Al Berto, Herbert Helder, Saramago, Lobo Antunes, Gabriela Llansol, Breyner Andresen. Raça de senhores da palavra!
 
Em Lisboa, repete-se a melancolia dia após dia, e a repetição leva ao cansaço emocional. Como em muitas outras grandes cidades, as pessoas estão isoladas, alienadas, deprimidas. Eu costumava ir ao campo ou a praia para ouvir outras vozes, iludindo as esperanças. Naquele instante, bailava o pensamento abstrato, despindo uma cidade, cobrindo-a de flores piedosas, como se em um abrir e fechar de pálpebras pudesse surgir uma inesperada compaixão. Defendia-me questionando: “O que se pode esperar de um poeta?”. O silêncio das palavras rasgadas, delirantes e comovidas, respondia ao invisível.

ANTONIO NAHUD em PORTUGAL