janeiro 12, 2022

................ SOAVAM VOZES, SENSAÇÕES AZULADAS e ESPANTOS

 

para Fahda Maron


“Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes”
SOPHIA de MELLO BREYNER ANDRESEN
(1919 – 2004. Porto / Portugal)

Fotografias: MARCELO MENDONÇA
e RICARDO CORTE-REAL
 
 

“Ama e faz o que quer”, orientou o apóstolo São João. Durante muitos anos morei em Lisboa com o coração rutilando de amor e fazendo o que queria. Nessa época, escrevi inúmeras crônicas em Belém, bairro peregrinado por turistas ávidos pelos célebres pastéis doces e pelo espetacular Mosteiro dos Jerônimos, um monumento erguido para a sepultura do rei D. Manuel I, representando boa parte da história de Portugal, principalmente a idade de ouro e suas descobertas.
 
Vivi meses ao lado do Castelo de São Jorge e no Restelo, em frente a praça da igreja barroca de Nossa Senhora da Memória. Foi uma temporada de aprendizado, muito vinho e nostalgia redentora, habitando um paraíso arquitetônico e paisagístico. Dava uns passos e ladeava os túmulos de Camões e Fernando Pessoa, o Jardim Botânico sem ninguém, a Praça do Império com a fonte cravejada de brasões e jardins de oliveiras. Quase sempre lia poemas beirando os palácios de Belém e da Ajuda, na torre-fortaleza.

As cartas românticas eram vistas nas margens do Tejo, de águas de tonalidade açúcar mascavo, na desaparecida Praia das Lágrimas, local da despedida de marinheiros no século XV, que partiam para enfrentar um destino de tempestades, doenças, solidão e muitas vezes fome. Ao lado, o Centro Cultural de Belém (CCB), magnífico prédio em que assisti espetáculos de Hannah Schygulla, Jessie Norman e Giorgio Albertazzi em “Memórias de Adriano”. Nele vi também fotografias hipnóticas do mexicano Manuel Álvarez Bravo.
 
Caixinha de preciosidades, Lisboa guarda sustos e resignações. É um labirinto emblemático de pormenores. Identificava-me com as figuras de pedra do claustro dos Jerônimos, apontadas para o céu, pisando a cabeça de reis e visualizando um distante passado. Se fechava os olhos, via o terremoto de 1755, que não poupou a maior parte da cidade. Absorvendo misteriosas influências e névoas do oculto, acompanhado de livros e diário inseparáveis, dividia o apartamento térreo do Restelo com os fantasmas de uma idosa mulher e um felino.
 
Nenhuma oração ou lamento conseguia demoli-los da recorrente visita notívaga. O gato saltava na cama, a magra senhora sentava aos meus pés e dali não se moviam. Na janela, aberta para um quintal com um limoeiro e elegantes copos-de-leite, a cadela Sidhi – em hindu “iluminada pelos deuses”, creio - metia as patas e o focinho, os olhos luminosos observando as assombrações. Era aterrorizante! Sei que é coisa que não se diz, soa falso, provoca incredulidades, estamos numa época que se dá importância ao realismo cru, quando ele próprio, afinal, pouco significa.
 
Sob uma lógica globalizada, se nossos conceitos não fazem parte dela, tentam eliminá-los. A mente que apenas raciocina pela razão é perigosa, tal qual a mente que apenas se entrega ao sentimentalismo. Entre a razão e o sentimento, viajei pela Europa, um continente onde seus habitantes imaginam viver no topo do mundo. Consumidos pelo antigo, preferem a ação à contemplação. Ilusões como a ciência e a política são tomadas redondamente a sério e o belo é premeditado. Já a beleza tupiniquim tem aparência distinta. Nossas cidades são arapucas sujas e de mal gosto, habitadas por multidão inclassificável, mas que inesperadamente brilha, como espontânea poesia.

Na tristonha e opressiva Lisboa, recordava Fernando Pessoa, o poeta de “Mensagem”; e também Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde. “Nas nossas ruas ao entardecer, / Há tal soturnidade, há tal melancolia / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam um desejo absurdo de sofrer”. No louco Bairro Alto, divertia-me com o cantor Emílio Santiago, assistindo espetáculos de travestis drogados no “Finalmente”. Antes, um chá de kava-kava no “O Outro Lado da Lua, uma ginginha no “Portas Largas”, a música vigorosa do “Frágil”, a sordidez do bar “As Primas” e a suntuosidade delirante do “Lux”.
 
A capital portuguesa me dá a sensação de romantismo e ausência. Talvez os mistérios existam para não decifrarmos. Nunca apreciei a arte portuguesa contemporânea. Os atores atuam como ventríloquos - com exceção da dócil expressividade de Maria de Medeiros; o cinema é sonífero, inclusive João César Monteiro, Pedro Costa ou Manoel de Oliveira nos seus momentos virtuosos (“Vale Abrãao”, por exemplo); a música é enfadonha, desde o mito Amália Rodrigues a Tereza Salgueiro, do “Madredeus”, uma espécie de Adriana Calcanhoto, talentosa e sensível, mas bastando três canções seguidas para a ladainha de lamentações incomodar. A pintura só tem expressão na soberania de Paula Rego. A literatura é o que há de melhor na arte lusitana: Eça, Al Berto, Herbert Helder, Saramago, Lobo Antunes, Gabriela Llansol, Breyner Andresen. Raça de senhores da palavra!
 
Em Lisboa, repete-se a melancolia dia após dia, e a repetição leva ao cansaço emocional. Como em muitas outras grandes cidades, as pessoas estão isoladas, alienadas, deprimidas. Eu costumava ir ao campo ou a praia para ouvir outras vozes, iludindo as esperanças. Naquele instante, bailava o pensamento abstrato, despindo uma cidade, cobrindo-a de flores piedosas, como se em um abrir e fechar de pálpebras pudesse surgir uma inesperada compaixão. Defendia-me questionando: “O que se pode esperar de um poeta?”. O silêncio das palavras rasgadas, delirantes e comovidas, respondia ao invisível.

ANTONIO NAHUD em PORTUGAL


11 comentários:

Nely De Oliveira Figueirêdo disse...


Parabéns Nahud , belíssima Crônica sobre sua temporada em Lisboa e belas tbm são as imagens , Amei ! Seu jeito leve , descontraído , lindo de jogar com as palavras , torna a leitura de seus Textos , Crônicas e etc , extremamente agradável e assim ... não me canso de dizer : É sempre um prazer ler vc 👏👏👏

Ana Claudia Bezerra Barros disse...


Belo texto !

Nadia Junqueira disse...


Acabei de "conhecer" Lisboa. Obrigada. Que crônica! Parabéns 👏

Cleiciana V Lucas disse...


Ótimo texto e muitas recordações de boas vivências que passamos juntos meu querido amigo. 😘❤️🍀👏

Ana Virginia Santiago disse...


Sempre bom ler e reler Antonio!

Mary Ferreira da Silva disse...


Parabéns! Belo texto como sempre!

Mary Júlia Santos disse...


Delicia de texto!

Pedro Pólvora disse...


Parabéns, muito bom texto! 👏👏👏👏👏

Alice Dias disse...


Crônica maravilhosa. Fiquei louca pra conhecer Lisboa.

Leda Luiza Botta Fenzke disse...


Lindas fotos
Lisboa deve ser linda..

Luzia Lepre disse...


Parabéns pelo texto....vc sempre nos suprendendo 🙏🥰❤️💙