para Fahda Maron
“Pudesse
eu não ter laços nem limites
Ó vida de
mil faces transbordantes”
SOPHIA de
MELLO BREYNER ANDRESEN
(1919 – 2004.
Porto / Portugal)
Fotografias:
MARCELO MENDONÇA
e RICARDO
CORTE-REAL
“Ama e
faz o que quer”, orientou o apóstolo São João. Durante muitos anos morei em
Lisboa com o coração rutilando de amor e fazendo o que queria. Nessa época, escrevi
inúmeras crônicas em Belém, bairro peregrinado por turistas ávidos pelos célebres
pastéis doces e pelo espetacular Mosteiro dos Jerônimos, um monumento erguido
para a sepultura do rei D. Manuel I, representando boa parte da história de
Portugal, principalmente a idade de ouro e suas descobertas.
Vivi
meses ao lado do Castelo de São Jorge e no Restelo, em frente a praça da igreja barroca de Nossa Senhora da Memória. Foi uma temporada de aprendizado, muito
vinho e nostalgia redentora, habitando um paraíso arquitetônico e
paisagístico. Dava uns passos e ladeava os túmulos de Camões e Fernando Pessoa,
o Jardim Botânico sem ninguém, a Praça do Império com a
fonte cravejada de brasões e jardins de oliveiras. Quase sempre lia poemas beirando
os palácios de Belém e da Ajuda, na torre-fortaleza.
As cartas
românticas eram vistas nas margens do Tejo, de águas de tonalidade açúcar
mascavo, na desaparecida Praia das Lágrimas, local da despedida de marinheiros
no século XV, que partiam para enfrentar um destino de tempestades, doenças,
solidão e muitas vezes fome. Ao lado, o Centro Cultural de Belém (CCB), magnífico
prédio em que assisti espetáculos de Hannah Schygulla, Jessie Norman e Giorgio Albertazzi em “Memórias de Adriano”. Nele vi também fotografias
hipnóticas do mexicano Manuel Álvarez Bravo.
Caixinha
de preciosidades, Lisboa guarda sustos e resignações. É um labirinto emblemático de
pormenores. Identificava-me com as figuras de pedra do claustro dos Jerônimos,
apontadas para o céu, pisando a cabeça de reis e visualizando um
distante passado. Se fechava os olhos, via o terremoto de 1755, que não poupou
a maior parte da cidade. Absorvendo misteriosas influências e névoas do oculto,
acompanhado de livros e diário inseparáveis, dividia o apartamento térreo do
Restelo com os fantasmas de uma idosa mulher e um felino.
Nenhuma
oração ou lamento conseguia demoli-los da recorrente visita notívaga. O gato
saltava na cama, a magra senhora sentava aos meus pés e dali não se moviam. Na
janela, aberta para um quintal com um limoeiro e elegantes copos-de-leite, a
cadela Sidhi – em hindu “iluminada pelos deuses”, creio - metia as patas e o
focinho, os olhos luminosos observando as assombrações. Era aterrorizante! Sei
que é coisa que não se diz, soa falso, provoca incredulidades, estamos numa
época que se dá importância ao realismo cru, quando ele próprio, afinal, pouco
significa.
Sob uma
lógica globalizada, se nossos conceitos não fazem parte dela, tentam eliminá-los.
A mente que apenas raciocina pela razão é perigosa, tal qual a mente que apenas
se entrega ao sentimentalismo. Entre a razão e o sentimento, viajei pela Europa,
um continente onde seus habitantes imaginam viver no topo do mundo. Consumidos
pelo antigo, preferem a ação à contemplação. Ilusões como a ciência e a
política são tomadas redondamente a sério e o belo é premeditado. Já a beleza tupiniquim
tem aparência distinta. Nossas cidades são arapucas sujas e de mal gosto, habitadas
por multidão inclassificável, mas que inesperadamente brilha, como espontânea
poesia.
Na
tristonha e opressiva Lisboa, recordava Fernando Pessoa, o poeta de “Mensagem”;
e também Mário de Sá-Carneiro e Cesário Verde. “Nas nossas ruas ao entardecer,
/ Há tal soturnidade, há tal melancolia / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a
maresia / Despertam um desejo absurdo de sofrer”. No louco Bairro Alto,
divertia-me com o cantor Emílio Santiago, assistindo espetáculos de travestis drogados
no “Finalmente”. Antes, um chá de kava-kava no “O Outro Lado da Lua”, uma ginginha no “Portas Largas”, a música vigorosa
do “Frágil”, a sordidez do bar “As Primas” e a suntuosidade delirante do “Lux”.
A capital
portuguesa me dá a sensação de romantismo e ausência. Talvez os mistérios
existam para não decifrarmos. Nunca apreciei a arte portuguesa contemporânea.
Os atores atuam como ventríloquos - com exceção da dócil expressividade de
Maria de Medeiros; o cinema é sonífero, inclusive João César Monteiro, Pedro
Costa ou Manoel de Oliveira nos seus momentos virtuosos (“Vale Abrãao”, por
exemplo); a música é enfadonha, desde o mito Amália Rodrigues a Tereza
Salgueiro, do “Madredeus”, uma espécie de Adriana Calcanhoto, talentosa e
sensível, mas bastando três canções seguidas para a ladainha de lamentações
incomodar. A pintura só tem expressão na soberania de Paula Rego.
A literatura é o que há de melhor na arte lusitana: Eça, Al Berto, Herbert
Helder, Saramago, Lobo Antunes, Gabriela Llansol, Breyner Andresen.
Raça de senhores da palavra!
Em Lisboa,
repete-se a melancolia dia após dia, e a repetição leva ao cansaço emocional. Como
em muitas outras grandes cidades, as pessoas estão isoladas, alienadas,
deprimidas. Eu costumava ir ao campo ou a praia para ouvir outras vozes, iludindo
as esperanças. Naquele instante, bailava o pensamento abstrato, despindo uma
cidade, cobrindo-a de flores piedosas, como se em um abrir e fechar de
pálpebras pudesse surgir uma inesperada compaixão. Defendia-me questionando: “O
que se pode esperar de um poeta?”. O silêncio das palavras rasgadas, delirantes
e comovidas, respondia ao invisível.
ANTONIO NAHUD em PORTUGAL
11 comentários:
Parabéns Nahud , belíssima Crônica sobre sua temporada em Lisboa e belas tbm são as imagens , Amei ! Seu jeito leve , descontraído , lindo de jogar com as palavras , torna a leitura de seus Textos , Crônicas e etc , extremamente agradável e assim ... não me canso de dizer : É sempre um prazer ler vc 👏👏👏
Belo texto !
Acabei de "conhecer" Lisboa. Obrigada. Que crônica! Parabéns 👏
Ótimo texto e muitas recordações de boas vivências que passamos juntos meu querido amigo. 😘❤️🍀👏
Sempre bom ler e reler Antonio!
Parabéns! Belo texto como sempre!
Delicia de texto!
Parabéns, muito bom texto! 👏👏👏👏👏
Crônica maravilhosa. Fiquei louca pra conhecer Lisboa.
Lindas fotos
Lisboa deve ser linda..
Parabéns pelo texto....vc sempre nos suprendendo 🙏🥰❤️💙
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