“Eu não
sou eu nem sou o outro,
Sou
qualquer coisa de intermédio:
Pilar da
ponte de tédio
Que vai
de mim para o Outro”
MÁRIO de
SÁ-CARNEIRO
(1890 –
1916. Lisboa / Portugal)
Ilustrações:
KATE HEISS
(Reino
Unido)
Houve uma
vez um verão europeu. Eu esperando o primeiro dia de sol no Seixal, uma bucólica
cidadezinha vizinha a Lisboa, na margem oposta do Tejo. Desde essa época,
acredito que o calor solar e a literatura são condições eficazes para se
atingir o bem estar. Muito antes da maturidade, num verão tropical, aos oito
anos de idade, com alma confundida e inocente, subia numa árvore para devorar “Alice
no País das Maravilhas” (1865), de Lewis Carroll, como se estivesse num refúgio
secreto ou num jardim encantado que supostamente ninguém jamais poderia me encontrar.
O maior
bem do homem é uma mente inquieta. Sendo assim, traduzo-me como inclassificável,
independente e justo em opiniões morais, políticas e artísticas, arriscando-me à
marginalização social. Cresci na informal e insensata cultura baiana, fui à universidade,
estudei, viajei, perdi tempo com tolices, fiz centenas de entrevistas, aprendi
muito. Resultado dessas experiências, conferi que essencial é o caminho que
trilhamos. Quando se vive sem a pretensão de ser importante, e se tem a curiosidade
do saber, o aprendizado é fundamental, solidário e iluminado.
Ao longo
do tempo, uma das descobertas foi a importância da música. Meu cotidiano quase sempre
tem trilha sonora. Neste momento, ouço a voz inquietante do senegalês Baaba
Maal, da mesma tribo de Youssou N'Dour e Ismael Lô. A música suaviza o coração.
Penso também constantemente em vivências e livros. Embora tenha passado largas
temporadas em metrópoles, sou em essência um sujeito das montanhas, de cidade caipiras
ou de fazendas à beira de matas. Nostálgico e contemporâneo, minha
literatura é muitas vezes simbólica. Uma mistura de realidade, memória e
imaginação.
No meu
tempo em Madri, a considerei uma capital impactante. Lisboa me pareceu tristonha
e provinciana. Paris é atraente e esnobe. Morei um ano e meio em Londres. Uma
cidade sombria, úmida, enfadonha e civilizada. Voltei ao Brasil após doze
benditos anos europeus, mas perdi a essência tupiniquim e desanimo com a
violência galopante, as dificuldades de sobrevivência e o culto à ignorância. A
maior parte dos nossos políticos são hienas esfomeadas que se agarram ao poder.
Durante décadas, cretinos com más intenções ganharam a confiança
do povo. É trágico e verídico. Felizmente houve um despertar, e a
sociedade enfim descarta os eternos malandros do Congresso. Porém, o sistema
resiste e nos sabota. Mas até quando?
Creio que
a arte supera o vazio. As pessoas que não produzem arte têm uma existência mecânica.
Investem em um negócio para sobreviver ou trabalham em empregos medíocres para
pagar contas, oxidando o espírito. Para me proteger, acredito sinceramente na
literatura. Ando relendo Anna Akhamátova, de poesia íntima, sofrida, dramática.
A poética russa dança ao sopro do virtuoso: Blok, Óssip Mandelstam, Maiakóvski,
Pasternak, Essénin, Marina Tsevtáeva. Como cidadão do mundo, não aceito
limites, aprecio a arte de qualquer lugar.
Numa recente
revista literária portuguesa, um brasileiro supostamente poeta é destacado numa
fotografia em um fundo medieval, de charme elaborado em luz e sombra. Ele em
primeiro plano, fortalecido por muros de pedra. Uma farsa, a poesia
contemporânea do Brasil é descartável, vazia, pretensiosa. Esse sujeito na publicação
lusa não tem o dom da criação literária. Deus, pergunto sem inveja, já que a
inveja é uma estupidez, por que dá tanto a quem não merece nada?
Grato por
mais um precioso verão, estou a um passo do nó misterioso das coisas. Não se
pode ter ao mesmo tempo a noite e o dia. Amo a vida e convivo sem medo ou desespero,
lutando contra a desonestidade, a psicopatia de tanta gente e a miséria. Guerreiro,
o destino que Deus me deu é respeitado. Até o último dia acreditarei na bondade,
na cumplicidade dos livros, nas palavras poéticas voando na mente como abelhas,
na esperança de dias melhores, na certeza da beleza íntima e nos relâmpagos tortuosos
do amor. Não temo o perigo, busco a serenidade como a luz no final do túnel. Confio
na essência que liberta. Nada é para sempre. Aprendi que do mundo nada se leva.
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