Antonio Nahud entrevista JORGE MEDAUAR
São
Paulo, novembro de 1989
Imagens: HIROSUKE KITAMURA
Sobre
a literatura de JORGE MEDAUAR, escreveu Guimarães Rosa: “Há rigorosa
autenticidade de campo, meio, cenário, há muita observação direta, documentando
certo, sem atravancar. Tudo humano. Tudo arte, também. Medauar é mestre no unir
os aspectos, as coisas. E, a língua, uma linha bem achada, padrão do melhor,
gostosura. Acredite: o que digo, é o que acho”. Dele, afirmou Carlos Drummond
de Andrade: “tem olhos perscrutadores, mas dotados de simpatia e compreensão”. Suas
histórias trazem o colorido e a força daqueles ancestrais que o trouxeram ao
mundo como um brasileiro de origem árabe, mais precisamente da milenar
civilização síria, como afirma neste poema: “Sabei, sabei que fiz de antigos
cedros / Barcos que a infância pôs à flor das ondas: / Meu pai, que é Medauar,
teceu-me as velas / E a filha dos Zaidans, que é minha mãe, / Pôs amoras de mel
no tombadilho. / Nesse barcos navego, marinheiro / Fenício do Zodíaco e dos
trópicos / Vermelhos de lamento e de canção (…..)”.
Escritor
dos humildes e oprimidos, da memória e solidão, o grapiúna JORGE MEDAUAR recebeu seu primeiro grande reconhecimento com o Prêmio Jabuti de 1959, com “Água
Preta”, na categoria Contos, concedido no mesmo ano a seu conterrâneo, Jorge
Amado, na categoria romance. Figura singular na literatura brasileira, criou
uma estética literária ligada ao mundo sul-baiano como também à sua própria natureza.
Com mais de 40 anos de literatura, o escritor nascido em Água Preta do Mocambo
(hoje Uruçuca) e traduzido em vários países, publicou 15 livros, além da
participação em inúmeras antologias.
O
seu prestígio abriu caminho para uma frutífera geração de escritores e
poetas das Terras do Sem Fim, destacando-se Hélio Pólvora, Telmo Padilha, Florisvaldo
Mattos, Sonia Coutinho e Cyro de Mattos. Publicou o primeiro livro em 1945,
“Chuva sobre tua Semente” (poemas), e o mais recente no ano passado, “Contos
Encantados” (infantil). Aos 71 anos, casado com a ilheense Odete, tem dois
filhos e mora em São Paulo há várias décadas. Leitor assíduo,
confessa a influência do russo Anton Tcheckov na sua escrita e acredita que
existem duas linhas mestras na literatura: a do escritor bem construído, sério
com a linguagem, que não faz concessões, e a do que é justamente a outra face
da moeda.
Para
entrevistá-lo, esperei calmamente duas horas na sua biblioteca particular. Li
algumas páginas de "O Coração das Trevas" de Joseph Conrad, deslizei os dedos pelos teclados da velha
Remington esverdeada e bisbilhotei a adega com vinhos importados (logo
seria convidado para saborear uma taça de vinho do Porto). Ainda matando o
tempo, abri um JORGE MEDAUAR de 1949, “Morada de Paz”, lendo: “Estes dias não me
pertencem: passam / Sob a indiferença de meus olhos / Meus cabelos e minha
boca, passam / Irremediavelmente passam”.
Suspirei, algo nervoso, sabendo que logo estaria diante de um dos
mais férteis prosadores da moderna literatura brasileira.
MUITOS ESCRITORES SE QUEIXAM DA FALTA DE
LEITORES. ACUSAM A TELEVISÃO DE ASFIXIAR A LITERATURA. O SENHOR CONCORDA?
Não.
Diziam algo parecido na época de ouro de Hollywood e o número de livros
publicados só fez aumentar. A literatura continua viva, o que se tem reduzido é
a boa literatura. Hoje é difícil encontrar um Machado de Assis ou um Graciliano
Ramos. O escritor atual não se preocupa em cuidar da língua e de outros
ingredientes proveitosos.
ESSES “INGREDIENTES PROVEITOSOS”
DETERMINAM A QUALIDADE DO ESCRITOR?
Exatamente.
Só assim ele será bom, dominando o seu ofício. O mesmo pode ser dito de um
carpinteiro ou um jornalista.
PODERIA CITAR ALGUNS ESCRITORES QUE
DOMINAM O SEU OFÍCIO?
Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Marques Rabelo, Jorge de Lima e Monteiro Lobato são
grandes nomes da literatura nacional.
O SENHOR SEGUE ALGUM MÉTODO PARTICULAR
AO ESCREVER?
Sou
um escritor impetuoso, não trabalho diariamente, só quando um tema me agarra,
levando-me a escrever. Cito umas palavras que ouvi certa vez de Graciliano:
“tem dias, quando termino um capítulo, em que sinto um verdadeiro orgasmo”. É o
meu caso. O que faço é tentar compreender meus personagens. Coloco-me no lugar
deles, quer seja um homem ou uma mulher. O que me interessa é viver por
procuração o que esse personagem vive. Esqueço-me do que eu faria naquele
lugar. Outra coisa, detesto revisar, corrigir.
SUA LITERATURA PRIMA PELA
AUTENTICIDADE, PALCO DE IMAGENS E PERSONAGENS REALISTAS. CONSEGUE ESTE
RESULTADO ATRAVÉS DE PESQUISAS OU A MEMÓRIA COMANDA O ESPETÁCULO?
Sou
um memorialista, mas sempre volto às minhas bases para não perder o passado,
afinal a memória caminha de mãos dadas com a fantasia. Percebo, inclusive, que
há pessoas que se reconhecem nos meus livros, outros que não se reconhecem de
todo. Dou uma visão do que lembro no meio de milhares de outras. É difícil
falar do passado como se fosse imutável. Quando se pega num casal que tenha
vivido uma história, e um dia há uma ruptura e se ouve um e outro, tem-se duas
versões totalmente divergentes. É o próprio princípio da literatura, não há a
verdade absoluta.
NUNCA SE INTERESSOU EM ESCREVER TEXTOS
TEATRAIS OU ROTEIROS PARA CINEMA E TELEVISÃO?
Fiz
um texto teatral nos anos 60 chamado “A Bomba da Paz”. Está engavetado.
Acredito que não tenho talento para esses veículos.
O SEU TALENTO ESTÁ DIVIDIDO ENTRE A
LITERATURA, O JORNALISMO E A PUBLICIDADE...
Trabalhei
muitos anos como jornalista e publicitário. Agora estou aposentado. De vez em
quando escrevo para o Estadão, a Folha de S. Paulo ou A Tarde, mas sem qualquer
compromisso. O publicitário, vez ou outra, também faz um free-lancer. Mas a literatura sempre foi e continua sendo o meu
interesse maior.
MESMO ADMIRADO E COM UMA LONGA
TRAJETÓRIA, NÃO É UM ESCRITOR DE BEST-SELLERS.
SOFRE POR ISSO?
Nunca
optei por esse caminho. O que determina um best-seller
são certas concessões. Recentemente saiu um livro chamado “O Açougueiro” que
pretende ser literatura e não é. Não passa de erotismo barato. É uma obra
pronta para fazer parte da lista dos mais vendidos. O sucesso também é uma faca
de dois gumes. Quando alguém tem sucesso, há uma dupla reação: por um lado, as
pessoas querem abraçá-lo; por outro, querem sufocá-lo, destruí-lo. Os que
escrevem não conseguem entender por que é que não são eles que se tornaram
conhecidos, que tiveram sucesso. Pensam sempre que é por causa do outro, que
lhes barrou o caminho.
O ERÓTICO SERIA A CHAVE DO SUCESSO COMERCIAL? É O QUE O LEITOR ESPERA?
Entre
outras coisas. O leitor espera prazer, satisfação e sair da leitura
acrescentado de alguma coisa. Isso só acontece quando há um encontro íntimo
entre autor e leitor.
DEPOIS DE TANTOS ANOS ESCREVENDO
HISTÓRIAS CURTAS, ACHA QUE O CONTO TEM UMA LEGIÃO DE FIÉIS?
Constato
que o conto vende muito mais hoje em dia. Nós vivemos numa época de velocidade, de
falta de tempo, e o conto, por ser um romance curto, pode ser lido em poucos
minutos. Ele está mais vivo do que nunca. Existem jovens escritores de talento
que continuam acreditando nele. Você, por exemplo. Li atentamente e com prazer os
seus contos “As Queridinhas” e “Diário de Loucura e Razão”, publicados no
Cacau/Letras.
FICO HONRADO... E O MUNDO EDITORIAL
CONTEMPORÂNEO? ELE MERECE APLAUSOS?
Está
brincando. Estou desencantado com o marketing
e a mídia desse país. Dois ou três escritores são apoiados e acabou-se. Falta
entusiasmo pelo livro. O escritor brasileiro está jogado no lixo. O mercado
editorial só se preocupa com literatura estrangeira. Isso sufoca o autor
nacional, dá raiva, impõe certo complexo.
OS SUPLEMENTOS LITERÁRIOS NÃO APOIAM O
AUTOR NACIONAL?
Nem
sempre. Mesmo assim são necessários até quando são ruins. Suplementos têm sua
validez. Até o da Folha de S. Paulo, por exemplo. Mas quem sabe um dia tomem
outro rumo e descubram a literatura local.
VIVE HÁ MUITOS ANOS EM SÃO PAULO. SE
SENTE PARTE DESTA METRÓPOLE?
Não
sou paulistano, apesar de bastante adaptado a esta grande cidade. Continuo
sendo de Água Preta e assim sempre será. São Paulo é uma loucura, uma cidade
desgastante, que mata e envenena. Claro que existem compensações,
principalmente na área artística, mas também somos obrigados a conviver com o
crime, a poluição e a dor.
QUEM SABE UM DIA VOLTARÁ A VIVER NA BAHIA.
Gostaria
de voltar a viver na cidade em que nasci. Mas quando penso nessa ideia, lembro-me
de Adonias Filho dizendo que também não há sossego num lugar pequeno, afinal
sempre somos reconhecidos e apontados por muita gente. Nos lugares pequenos o
visível e o invisível, o permitido e o proibido são mais evidentes. Valorizam
demais as aparências, ao que as pessoas vão dizer.
ESTEVE RECENTEMENTE NO SUL
DA BAHIA. O QUE CONCLUIU?
Mudou
muito e toda mudança é sempre para melhor, embora tenha notado algumas coisas
ruins, como os assaltos às fazendas de cacau. É, porém, sintoma da miséria
generalizada. Esses assaltantes não têm emprego ou são mal pagos. São resultado
da deformação das elites, que estão aidéticas, doentes, trabalhando para o
fracasso dos modelos.
DIANTE DESTE QUADRO, QUAL SERIA A SOLUÇÃO POLÍTICO-SOCIAL?
A
única solução seria abandonar o capitalismo e partir para o socialismo. Os
modelos de governo que tivemos até agora são falidos, não deu em nada. Saímos do
feudalismo para a república e agora estamos indo pra onde? As coisas estão cada
vez mais piores. Fala-se muito, mas a realidade está carregada de miséria, terrorismo,
xenofobia e racismo. Infelizmente eu não vou saber o que acontecerá no futuro,
mas deixo como espião da vida, como dizia o Mário de Andrade, o meu neto, você,
os leitores. Vocês são responsáveis pelo que vier. É preciso vigiar com
eficácia o resultado das eleições presidenciais. É preciso vigiar a vida, o
cotidiano, as nossas ações.
COMO É O COTIDIANO DO ESCRITOR JORGE
MEDAUAR?
Sou
um homem vulgar, comum mesmo. Quando estou com saudades da Bahia, triste, gosto
de passear de ônibus ou de metrô sem nenhum destino em mente. Leio , escrevo
quando sinto vontade. Quando tenho problemas tento resolvê-los pela literatura.
Há quem vá para os tribunais, há quem ataque com uma faca, eu resolvo com a
literatura. Sou casado há uma eternidade e nunca converso sobre literatura com
a minha mulher. Ela não sabe quantos livros escrevi, lê o que faço e boceja,
dormindo no meio do relato com a maior facilidade. Esta é a minha rotina diária.
Nota:
Jorge Medauar morreu em 3 de junho de 2003, aos 85 anos.
15 comentários:
Realista, pragmático. Mas parece reservado... Conheço muito pouco de seu trabalho, tornou-se mais interessante agora. Gosto de saber dos autores que leio, eles nos dão pistas rsrs
Ótima entrevista. A sabedoria transborda em cada linha.
Parabéns pela Antonio pela entrevista. Gostaria muito de publicar no Cronópios. Você me autoriza??
Menina, ainda, conheci Jorge Medauar. Era amigo de meu padrinho Claudio Jorge, publicitário talentoso, mente brilhante. Tudo isso, nos anos dourados da publicidade no Brasil, liderados pela Multi Propaganda. Jorge era profundamente respeitado, admirado, por seu talento que sensibilizava
Belo texto, linda página, Antonio nahud
e a lixeiratura brasileira
Grande amigo!
Muito bom o seu texto, como sempre, amo..e a entrevista com o escritor, filho da nossa terra.. Adorei!! As fotografias que ilustram o post são maravilhosas..!! Obrigada, meu querido, pela partilha!! Beijos!!
Lindo!
Maravilha amigo...muito grato!!!
"A única solução seria abandonar o capitalismo e partir para o socialismo. Os modelos de governo que tivemos até agora são falidos, não deu em nada. Saímos do feudalismo para a república e agora estamos indo pra onde? As coisas estão cada vez mais piores. Fala-se muito, mas a realidade está carregada de miséria, terrorismo, xenofobia e racismo. Infelizmente eu não vou saber o que acontecerá no futuro, mas deixo como espião da vida, como dizia o Mário de Andrade, o meu neto, você, os leitores. Vocês são responsáveis pelo que vier. É preciso vigiar com eficácia o resultado das eleições presidenciais. É preciso vigiar a vida, o cotidiano, as nossas ações".
Valeu mto!
Quanta saudade me deu agora lendo a entrevista...
excelente
Fomos conterrâneos. eu e o grande contista Jorge Medauar, antes de Água Preta do Mocambo passar a chamar-se Uruçuca (1942), mas quando lá cheguei, menino, ele, já homem feito, já se tinha ido. Só vim a conhecê-lo em 1991, em São Paulo, na Bienal da Nestlé, apresentado por outro contista de peso, o itabunensse Hélio Pólvora. Levou para almoçar em sua casa no Brooklin, almço alegre e farto, regado a vinho francês da melhor cepa. Um grande escritor, esse baiano da Região do Cacau. Seus contos do livro "Água Preta" (1958) são obras-primas.
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