setembro 19, 2025

................................. Dos VERSOS no SUL da BAHIA: 21 POETAS

 


Vivemos um momento em que a ignorância
serve para derrotar a inteligência.
J.R. GUZZO
(1943 – 2025. São Paulo / SP)
 
Poesia é salvação.
OCTAVIO PAZ
(1914 – 1998. Cidade do México / México)
 
para Maria de Lourdes Netto Simões
pesquisadora e incentivadora
da poesia grapiúna
 
Aquarelas:
ANDY EVANSEN
(1965. Wisconsin / EUA)

 
 
Aos ocasionais leitores de poesia ofereço uma seleção de
POETAS do SUL da BAHIA. Já não guardava, todos, na memória, mas sempre conservei a conexão épica em meu computador, arquivos e biblioteca. Absorvendo a lição de Alceu Amoroso Lima: “a arte de criar não tem limites, pois a arte, em sua essência, é uma intervenção do homem na ordem do Universo”, viajei no tempo com esse passaporte, tal como um garimpeiro em busca de pedras preciosas. E encontrei ametistas em versos de ontem e de hoje. Alguns dos autores foram meus amigos de juventude, outros nem tanto. Na escolha, de critério pessoal, aqueles que me identifico, também resgatei poetas históricos e alguns esquecidos. Pensei em 12 poetas, falando sobre a literatura de cada um, em um tributo a emblemática antologia de Telmo Padilha, “12 Poetas Grapiúnas” (1979).
 
Na primeira lista, 46 poetas se apresentaram. Reli todos deles.  Por fim, amoroso e rigoroso, 21 VATES fundamentais subiram ao podium para representar a lírica sul-baiana. Somente eles, origem, seus livros, dois poemas. Como planejado ficaria um post interminável. A seleção não se pretende definitiva, nem guarda mágoas. É só uma visão de leitor que por toda a vida acompanhou a produção literária da Região do Cacau. Consciente de que a arte eleva aos céus, com o telescópio da alma vislumbrei poemas radiantes. Fernando Pessoa cultivava a crença de que
“quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.  Tal convicção é o extrato mais sublime da poética grapiúna. Pisando em solo da realidade, enquanto a argila da ampulheta se movimenta, renasce no tempo essa poesia valiosa. É a poética ressignificando sentimentos.

eu e o poeta baiano claudius portugal

21 POETAS GRAPIÚNAS
(por ordem alfabética)
 
01
ANTONIO NAHUD
(1969. Itabuna / Bahia)
autor de “Ficar Aqui Sem Ser Ouvido por Ninguém” (1998) e “Suave é o Coração Enamorado” (2006)
 
01
Viajei de carro e de comboio, de navio,
de avião, e com meus benditos pés.
Continentes, florestas, desertos.
Dormindo sobre fendas e abismos
com as feras a rondar a poesia
à vastidão da dor e da esperança.
Vida de aventura, amor, rebeldia,
nas águas profundas do desmundo.
Ao deus azul da juventude,
Ergo a bandeira da liberdade
que ainda hoje respeito.
 
02
Agora, sim: que se inicie, lá fora,
a tempestade. Agora que varri
a casa! que escrevi, pensei, decidi;
que este dia, corretamente, concebi.
Que qualquer dia fosse assim,
vertiginosamente criativo,
na solidão em partilha:
com a luz azulada e tranquila,
de um guia espírito antigo.


02
CAMILO de JESUS LIMA
(1912 – 1975. Caetité / Bahia)
autor de “As Trevas da Noite Estão Passando” (1941) e “Cantigas da Tarde Nevoenta” (1955)
 
01
CHUVA
 
Negra, a noite enegrece o espaço opaco em torno.
Asas desfilam no ar, sumindo na penumbra.
O ar é parado e abafadiço. Como um forno,
A noite marcha e a terra inteira tinge a obumbra.
 
Rasga o colo do céu rubro rubi. Deslumbra
De um raio em ziguezague o rutilante adorno.
Tra o trovão após o raio que relumbra.
Morre na noite a dispnéia de um bochorno.
 
O arvoredo, a tremer, ergue os braços ao léu.
A terra ardente é toda um pedaço de gula,
Um desejo de brasa a pedir chuva ao céu.
 
E a chuva, em ricochete, abre o céu carregado,
Esperneia, peralta; em pingos grossos, pula;
E tomba, e treme, e tamborila no telhado...
 
02
A VISÃO do MÁRTIR
 
Dá um pedaço da tua terra ao teu irmão
Para ele trabalhar e para ele morrer.
 
Lança os teus olhos para as aves livres.
Vê que elas voam, navalhando o céu infinito.
É assim que a tua alma deve ser.
 
Divide com teu irmão o teu manto.
Mistura um pouco do teu pranto à angustia do seu pranto.
 
O pão que vem dos trigais louros
Dá para o teu sustento e para sustentar
Todos os que têm fome.
Toda a gente que vive a gemer e a chorar.
 
Quando eu falei assim a turba vociferou,
E zombou e sorriu.
Esmurraram-me a face
Laceraram-me as carnes.
Escarraram-me no rosto macilento
E ataram-me à corrente como um lobo bravio.
 
Entretanto a manhã era clara e bonita.
Aves voavam soltas pelo espaço,
Livres como o pensamento
A terra imensa e infinita
Abria o seio numa floração
E os trigais louros como cabeleiras
Vergavam ao peso das espigas
Curvando-se ante a miséria dos famintos,
Na oferta magnífica do pão...


03
CARLOS ROBERTO SANTOS ARAÚJO
(1952. Ibirapitanga / Bahia)
autor de “Nave Submersa” (1986), “Sonetos da Luz Matinal” (2004) e “Viola Ferida” (2008)
 
01
Os CAVALOS ALADOS
 
Os cavalos, alados, vão no vento,
Voando, leves, lívidos, além.
O tropel dos seus cascos repercute
No silêncio de um campo imaginário.
 
São cavalos tecendo, em suas vozes,
Os relinchos dos íntimos desejos.
O perfume farejam de alegóricas
Potrancas. A manhã roreja.
 
Suas asas de pássaros imêmores
Acentuam, levíssimas, a brisa
Onde velam seus sonhos de luares.
 
São cavalos que aos altos céus devolvem
(como as aves dissolvem-se no azul)
suas crinas de chuva e seus corpos de nuvem.
 
02
CACAUEIROS de ABRIL
 
Cacaueiros de abril descendo a encosta
Cantam vozes de chuvas perfumadas,
Veludíssimas folhas encharcadas
De lágrima sutil que não se mostra,
 
Cântico das águas derramadas,
Beijo de amor que a planta gosta,
Recebendo-o na face descarnada
A que possa lhe dar franca resposta.
 
Cacaueiros de abril nascem de chuvas
Geladas a molhar velhas janelas,
Onde o antigo menino se debruça,
 
A noite, combatendo, à luz das velas,
A escuridão da treva mais pressaga
No sonho da manhã que não se apaga.


04
FIRMINO ROCHA
(1919 – 1971. Itabuna / Bahia)
autor de “O Canto do Dia Novo” (1968) e “Firmino Rocha: Poemas Escolhidos e Inéditos” (2008)
 
01
DERAM um FUZIL ao MENINO
 
Adeus luares de Maio.
Adeus tranças de Maria.
Nunca mais a inocência,
nunca mais a alegria,
nunca mais a grande música
no coração do menino.
 
Agora é o tambor da morte
rufando nos campos negros.
Agora são os pés violentos
ferindo a terra bendita.
 
A cantiga, onde ficou a cantiga?
No caderno de números,
o verso ficou sozinho.
Adeus ribeirinhos dourados.
Adeus estrelas tangíveis.
Adeus tudo que é de Deus.
Deram um fuzil ao menino.
 
02
QUERO o SILÊNCIO
 
O silêncio.
Quero o silêncio.
O grande silêncio.
O silêncio das águas dormindo no ventre da terra.
O silêncio das horas misteriosas
em que as virgens desejam viagens infinitas
e os pastores se ajoelham
e escutam as mensagens da Estrela da manhã.
O silêncio.
Quero o silêncio,
O grande silêncio.
O silêncio do Princípio.


05
FLORIANAEL PORTELA
(1947 – 1999. Vitória da Conquista / Bahia)
 
01
Se me pedirem a palavra
Darei os meus olhos
E plantarei nas avenidas
Meus cabelos
Esperarei até que o vento espalhe-os
Entre as nuvens do céu....
 
02
Esse olhar esquecido
Parece até o meu.
Nessa manhã de gelo
Me sinto
Me perco
Me tomo
A beleza da aranha
Tecendo seu mundo
Entre silêncio e solidão
Ela viaja....


06
FLORISVALDO MATTOS
(1932. Uruçuca / Bahia)
autor de “Fábula Civil” (1975), “A Caligrafia do Soluço e Poesia Anterior” (1996) e “Mares Anoitecidos” (2000)
 
01
SONETO RURAL
 
À precipitação do amanhecer
rural retiro à flauta o som mais puro
de quem, já acostumado com o escuro,
absorto fica vendo o sol nascer.
 
Caprino olho tecido em bem-querer,
preexistente nas coisas que procuro
pastoreando sonhos: amargo ver
desencontrado olhar longe do muro.
 
Recolho pastoral envelhecida
ao som da flauta (pastoral da vida)
armado de silêncio e panorama.
 
Ela se perde verde no horizonte,
como ovelha de luz ou como fonte
onde lavo meu sonho. E se derrama.
 
02
PASSOS e ACENOS
 
Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades)
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) — o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo, ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.


07
GENNY XAVIER
(1962. Caculé / Bahia)
autora de “Poemas” (1981)
 
01
AMADURECER
 
Para cada movimento: a cautela.
Para cada lembrança: a concentração.
Para cada dor: a resiliência...
 
Não vale a queda!
Não vale o esquecimento!
Não vale o sofrimento!
 
Vale o equilíbrio.
Vale a consciência (passado e presente).
Vale o tempo de viver...
 
02
VIVER
 
A vida segue
e promove colisões
entre mundos e ideias
carregando homens
através de eventos
imensuráveis e insurgentes.
Segue implacável
até que se findem os mundos
e que as ideias se imortalizem
no correr dos tempos...
 
Ideias e ideais
nunca morrem.


08
ILDÁSIO TAVARES
(1940 - 2010. Gongogi / Bahia)
autor de “Ditado” (1974) “O Canto do Homem Cotidiano” (1977) e “Tapete do Tempo” (1980)
 
01
PLENILÚNIO
 
Na cidade amordaçada,
ladra a distância na rua
e reluz sobre a calçada
uma indiferente lua.
 
Não sei se e março ou setembro,
se é segunda-feira ou quinta.
Não sei se esqueço ou se lembro,
Se fale a verdade ou minta.
 
O sol tarda na cidade
E a lua reluz no alto,
Esparzindo claridade
Sobre o negrume do asfalto.
 
02
CATARSE
 
Não hei de me curvar
ante a linguagem do meu tempo.
 
Hei de sobrenadar o seu lixo,
restos de angústia, gula, desespero
e caos (sem todavia perder
a piedade), emergir
em busca de ar; de ar; de luz;
da paz de compreender (decidir)
o que me perder; o que me salvar.
 
Não. Não hei de enveredar-me
entre os dejetos;
não hei de me deter ante os escombros.
 
Seguirei meu caminho; e vou catando
lenha – e preciso acender o fogo;
arrebentar o espelho;
enxugar as lágrimas –
purificar a linguagem do meu tempo.


09
IOLANDA COSTA
(1967. Itabuna / Bahia)
autora de “Poemas sem Nenhum Cuidado” (2004), “Amarelo por Dentro” (2009) e “Colar de Absinto” (2017).
 
01
ULTRAMARINA
 
então o mar, inaê
é azulina de mágoa
 
salina escumada
de boca, água
de língua vega
 
solidão de alga
vaga, a lua
quando míngua
 
02
Do AMOR
 
o amor se alimenta do livro
resvala-se dele. seus capítulos
de sol e água
e cabras de fortes pulmões
 
parágrafos e extremos
 
: cortinas
cor de carne e mão e pélvis
 
o amor rumoreja
seu vocabulário repetido
urge. atravessa
paredes e séculos
 
: tentáculos e urdiduras


10
JANETE MENDONÇA BADARÓ
(1935 - 2015. Ilhéus / Bahia)
autora de “Momentos” (1979) e “Máscaras em Procissão” (1984)
 
01
CANTO de AMOR
 
o perpassar
do vento
brincando
lá fora
           
aquele canto
dos insetos
lá na mata
e o barulho
do carro
no asfalto   
 
fazendo
orquestra
com os nossos ais…
 
02
Num céu muito aberto
para receber risos de verão
a terra se cobre
de muito verde e azul
É a mata e o mar
esparramando-se
por todos os lados
e colinas alegres
porto ponte
ruas casas
gente
tudo respirando fé
que vem do Cristo Redentor
das torres das igrejas
dos corações centenários
e aos sábados e domingos
feéricos
todos vão ao banquete de sol
nas praias de areia alva
comem caranguejo
bebem cerveja
batem um papo à toa
queimam os corpos
abandonados à brincadeiras da carne


11
JORGE de SOUZA ARAÚJO
(1947. Baixa Grande / Bahia)
autor de “Os Becos do Homem” (1982), “Essa Esquiva e Dilacerada Fauna” (2002) e “Pegadas na Praia” (2003)
 
01
MEMÓRIA
 
Ouvir apito de trem
fere grito calcinado
de terra nojo nostalgia
do brumado penha lembrança
numa certa rua da linha
em itabuna bahia
Do trem: o apito o vagão de bois
a ponga o olhar feroz condutor
mutuns rio do braço probidade
itajuípe baldeações
e o verde imenso bonito e verde
dos cacauais
O que não faríamos para estar
no trem da estrada de ferro de ilhéus
num domingo à tarde de silvo e selva
onde aquele senhor de branco
sempre bêbado e falador
discursava sua solidão na segunda classe?
Hoje apito trem vagão
trotam rio acuado descendo
grosso bolo no peito
de um tempo ora recluso na memória.
 
02
Para cantar uma cidade
não basta marcá-la em infenso mapa
ou pressentí-la em seu exato número
população, superfície, climas
topografia, riquezas, pobrezas
misérias, ranhuras, talvezes.
Há que sabujar-se em suas
saliências
e reentrâncias
correr ruelas, becos, avenidas
flagrar o novo e sobretudo o
velho
que diz mais e muito
e muito mais revive, povoa
a alma antiga de seres e lugares.


12
JOSÉ DELMO
(1953. Buerarema / Bahia)
autor de “Frutos do Tempo” (1977), “Cacau Verde” (1985) e “Inventário da Consciência” (1995)
 
01
VIGÍLIA
 
Se não vigiarmos a vida
Eles escreverão a história
 
E o futuro poderá
neles acreditar
 
Ainda bem que existe o artista
que canta o povo,
 
suas dores e suas alegrias
seus temores e sua fé.
 
02
JEQUITIBÁ REI

A cidade tem todas as almas
e a alma todas as coisas que a cidade tem.
A minha memória se encerra
na copa verde do Jequitibá
eleito pela natureza
no alto da serra
e que, impassível, na sua grandeza de madeira de lei
assistiu ao primeiro navegante chegar
pelo mar azul da Capitania dos Ilhéus.
Nunca sentido o eco
do estampido seco da arma de fogo
do louco tenente Romero
contra os índios desavisados.
E como fora penoso o voo
da última graúna,
cansada e ferida,
afogada nas águas do Rio Cachoeira,
que levavam para o mar
as penas dos pássaros
e os corpos dos índios,
expirando dos deuses de pedra dura
a palavra ita
e da mata escura
dos bichos pretos, de penas,
felinos, rasteiros e peçonhentos
a palavra una
até brotar do açoitado
Amor Divino
sergipano Felix Severino
a cidade de pedra-preta, Itabuna!
O perigo
próximo ao teu pé
derrubava as árvores da mata
onde o príncipe Maximiliano
austríaco aventureiro
preso aos lamaçais traiçoeiros
viu macucos serem abatidos
por seus famintos tropeiros.
Mais manchas de sangue
sobre as águas de outro rio
a eternizar no lugar
e no seu leito de areia lavada
o nome do pássaro tombado:
Rio e Vila Macuco.
 
Qual imponência,
emplumada de verde!
Era o verde!
 
Verde testemunha
da batalha dos nadadores,
dos traficantes catando búzios,
do verde-sumo, do mar quase anil,
repleto de naus e caravelas
transbordantes de pau-brasil.
Do rufar dos tambores
dos negros amotinados
no Engenho de Santana.
Dos quilombos e aldeias destruídas,
das catucadas mortais,
do valente cafuzo
nos holandeses de Nassau,
antes, nos franceses, com ares de tais.
Dos pontos luminosos
saltitando nas entranhas das matas
como mico-leão-da-cara-dourada.
Do pássaro Solfalá
que sumiu aos olhos dos homens
e da Lagoa Encantada fez seu habitat.
Da Vila Ferradas ferrada na margem da veia
aberta para o coração mortal da floresta.
Dos caxixes dos coronéis,
dos jagunços em tocaia, do tombo dos inocentes,
de tanta gente chegando, matando, morrendo,
nascendo, resistindo.
Os pássaros e os índios sumindo… sumindo…
Sumindo como fora o macaco jupará,
semeando a roxa amêndoa na mata,
aprovando o cacau que os colonos
trouxeram para as terras do sem fim.
 
Ó Jequitibá!
Fostes invulnerável ao verde espetáculo
antes de ser poluído pela civilização grapiúna
e só quando frágeis eram teus galhos
despencastes serra abaixo’
teu tronco milenar
pondo espantados os olhos das casas
que se erguiam ao teu pé.
 
Sabias, ó jequitibá!
em tua rica solidão de madeira de lei
que quando as árvores, os pássaros, os índios,
os rios, os bichos,
nhoesembé, ita, una, uô,
não tinham nomes brancos,
era mais o azul do céu e o verde da mata.
Era profundo o silêncio da orquestra dos bichos…
13
KLEBER TORRES
(1947. Salvador / Bahia)
autor de “Objeto Direto” (1982), “Artes & Manhas” (2021) e “Abracadabra” (2022)
 
01
CANTO XXVIII
 
A tempestade não assusta o espírito do rio
que desce mar revoltado em cataratas de lama
levando esperanças, móveis e vidas
além de gente de destino incerto
roupas em desalinho
marmitas sem comida
surpresas que arrebitam os olhos
e estreitam o coração,
mas depois do caos e da imperfeita explosão
tudo volta à sua rotina
há calma e indiferença nas pedras que emergem em ilhas
e, como se nada tivesse acontecido
o vento breve veste capa de calmaria
pousa no ombro do poeta
ou assanha o cabelo do menino.
 
02
FOME
 
Sem metáforas e em silêncio
a fome come o homem:
lampejos de inanição.


14
LOURIVAL PILIGRA JÚNIOR
(1965. Itabuna / Bahia)
autor de “Fractais” (1996) e “A Odisseia de Jorge Amado” (2012)
 
01
VELAS PARA a MORTE
 
Roubo da noite a negra face envenenada
e luto contra a dor terrível da distância,
deixo em silêncio o medo lírico da infância,
mato de fome a boca insana e renegada...
 
Mastigo os ossos da soberba e da ganância,
invisto contra a solidão de todo nada,
supero a fúria de uma mente atordoada,
venço o combate contra a trágica arrogância...
 
Enfrento a Gôrgona no vale dos tormentos,
frente ao destino, digo apenas: “outra vez”,
deito em meu colo a língua de um dragão chinês,
adestro Cérbero e supero os meus lamentos...
 
- Depois me curvo, simples servo em seu altar,
e “acendo velas para a morte vir rezar...”
 
02
Um BEIJA-FLOR
 
um beija-flor pousou na minha poesia
com sutileza como um anjo iluminado,
seu olhar divino me deixou impressionado
- doce metáfora de um verso à luz do dia...
 
o beija-flor ficou me olhando ali parado,
simples paisagem da mais pura fantasia,
seu olhar de flor brilhou com força e alegria
- jardim suspenso, no meu verso eternizado...
 
um beija-flor pousou seus pés de sutileza
na minha alma de poeta embrionário,
um filme lírico de amor e de beleza,
tela compondo, como um conto, o meu cenário...
 
- o beija-flor agora sonha que é um canário
e canta hinos pra alegrar minha tristeza!


15
MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES
(1968. Ilhéus / Bahia)
autor de “Pequeno Inventário das Ausências” (2001) e “Arquivos de um Corpo em Viagem” (2015)
 
01.
SENIL
 
O que meus olhos já não veem
se perdeu na poeira que passou.
O que já nem sei que esqueci
é passado pássaro que voou.
Já não se recorda o rosto devastado
e o espelho são rugas cor de prata.
Que idade tem minha história?
O segundo da lembrança
ou a eternidade da desmemoria?
 
Não diga.
 
02.
TEU NOME
 
Gravo nesta pedra
teu nome perdido.
Talho fundo
a pele cinzenta,
como talhou
meu destino
o cinzel de
tua indiferença.


16
MARIA LUIZA NORA (BAÍSA)
(1948. Ilhéus / Bahia)
autora de “A Ética da Paixão” (2010)
 
01
A ÉTICA da PAIXÃO
 
A paixão traz consigo
uma outra dignidade
e esta
não está prescrita
não está prevista
não está clara.
Esta, que nos faz maiores
e melhores,
vem da compreensão
dos limites do homem
na convivência com a paixão.
Vem da percepção
de que a paixão
tem uma ética própria.
 
Assim como tem uma ética própria
a paixão tem um ciclo.
 
02
A FLOR
 
No tempo do desamor
na época da negação
uma flor rompe o cascalho
e impõe sua poesia.
E o homem
árido e seco
olha a flor com gratidão.


17
RODRIGO MELO
(Ilhéus / Bahia)
autor de “O Sangue que Corre nas Veias” (2013) e “Enquanto o Mundo Dorme” (2016)
 
01
PRESCRIÇÃO para ALCANÇAR a PAZ ORIGINAL
 
não siga todo conselho que receber,
uns poucos,
como não manter a cabeça baixa ao caminhar por aí
feito um desses homens que receiam o que vão encontrar,
também não discuta,
não bajule,
não agrade demais,
tampouco pule de ponte alguma,
mesmo que as mulheres peçam,
mesmo que os chefes ordenem,
mesmo que a cidade inteira se reúna para tentar te convencer.
não guarde todo conselho que receber,
uns poucos,
como não criar expectativas a respeito da alma e da sua evolução,
nem tente entender a mesquinharia,
feito um desses homens que ainda acreditam no amor,
e esqueça as surras,
os tombos
e todas as patifarias que te fizeram
ou tentaram fazer.
um dia,
quando menos esperar,
nada disso fará
diferença.
 
02
A VERDADE
 
um homem de fibra
tem arrependimentos
e acorda suado
no meio da noite
e olha para a janela
em busca de alguém
porque a verdade
ele descobriu
quase nunca faz bem
porque a verdade
descobriu também
tem que ser repartida
um homem de colhões
luta para esquecer
as agruras do caminho
o egoísmo e a maldade
dos vencedores
porque a verdade
ele descobriu
é uma sentença
a verdade
também descobriu
depois de descoberta
te acompanha para
todo lugar.


18
SÉRGIO RICARDO PRAZERES BRANDÃO
(1966. Itabuna / Bahia)
 
01
PUBERDADE FLORAL
 
Miro meus versos no espaço sideral
e muitas vezes eles caíram na lua.
Inspiração do altíssimo, sobrenatural,
assim recito meus solilóquios na rua.
 
Hoje, em pouco menos que duas horas
vi como cada segundo conta a evolução
 das meninas quando viram senhoras
e se veem como donas de um coração.
 
Aquilo que elas pensam serem delas
pertencem ao onipresente que sonda
almas brancas, cinzas ou amarelas.
 
Grande transformação chega em ondas.
Pensamentos viram letras em aquarelas,
botões viram flores e a beleza estronda.
 
02
O DECORRER do TEMPO
 
Pra eu ser feliz me falta muito pouco.
Depois que durmo bem, acordo e como,
entro no meu saudável universo louco
e sintonizo anjos, santos e gnomos.
 
Me livro de algumas pragas que ouço
ouvindo mantras, louvores, passarinhos,
formando um transparente arcabouço
entre mim e os infelizes seres daninhos.
 
Temos que ser fortes testemunhas da fé
Mostrar o que cremos por A mais B
e deixar a boa energia fluir pelo pé.
 
Somos muito mais do que a ciência vê.
Quando vemos esta vida como ela e',
valorizamos tempo em suave decorrer.


19
SOSÍGENES COSTA
(1901 – 1968. Belmonte / Bahia)
autor de “Obra Poética” (1959) e “Iararana” (1933)
 
01
FLOR de CACAU
 
Flor de cacau toda orvahada e moça,
És curtidinha de sereno em Una,
Em Itabuna ainda és mais moça,
Sinhá-moça, mulher de grapiúna.
Flor de cacau toda orvalhada e roxa.
Chuva em crisol fez teu lilás moreno.
Serias a paixão de Barba Roxa,
Se Barba Roxa viesse a este sereno.
Roda no orvalho este cacau pequeno.
Roda em sereno este pião de louça,
Crisoberilo lapidado em roxo.
Quem quiser se casar, escolha moça
Que tomou chuva, e além de sol, sereno.
Flor de cacau é o tipo dessa moça.
 
02
O RIO e o POETA
 
Despi o manto de bardo,
Vesti a pele do rio.
Vou correndo e vou falando
Encantado neste rio.
Vou passando nos lugares
Atrasados deste rio.
Vou falando na pobreza
Dos lugares deste rio.
Não me calo na viagem.
Falo pelos cotovelos.
Mas ponho calor na fala
Para exprimir simpatia
Pela causa dos pequenos
Que são tantos neste rio
.....................................
Procuro imitar o canto
Da viola e da cotovia.
Imito o canto do povo.
Mas calada a simpatia,
Minha fala de poeta
Perdeu toda a poesia.


20
TELMO PADILHA
(1930 – 1997. Itabuna / Bahia)
autor de “Girassol do Espanto” (1956), “Onde Tombam os Pássaros” (1974) e “O Rio” (1977)
 
01
De alguma janela (ou alpendre)
dois olhos te contemplam,
duros de não saber
o que deles fazer: se olhar
ou simplesmente ser
olhos na noite, ausência
de olhar o que não vê.
Mesma coisa aqueles que
Opacos de mais sofrer
O contemplam na descida,
Descendo contigo a vida.
..........................................
Outros olhos o contemplam
e são olhos diferentes:
olhos de ver, não de sentir
o que no fundo levas:
não pitus ou acaris,
mas grossa água, quente
como sangue, ou sangue.
Vão juntos, dois rios
Pelo mesmo rio.
Juntos: água e sangue
Chamados do mesmo nome.
 
02
PISOTEIO
 
Se em duas bandas o corto
mais que um gesto, produzo:
o branco, tom e invólucro
exibe seu brilho, ponche
no copo, esse beber
de um deus que não é
 
No outro, o gesto
de pisar, dança e canto
e odor (ao sol), suor
que mais sua, a chuva
por chegar, antes que chegue.
 
Antes da fábrica, os pés
gestam o brilho, quentes
em compromisso e dança,
semente quase pronta
em escrita regular. (...)


21
VALDELICE PINHEIRO
(1929 – 1993. Itabuna / Bahia)
autora de “De Dentro de Mim” (1961) e “Pacto” (1977)
 
01
Eu vim
de noites úmidas,
quando as sementes
fecundavam
o corpo virgem
da mata.
Eu vim
da branca paisagem
de pequenas flores
germinando ouro
no ventre
dos cacauais.
E acordei na manhã
dos deuses,
no mundo
do chocolate.
 
02
Nessas lentas madrugadas
Por onde o tempo escorre lento
Como vento ausente,
Na calmaria de um silêncio
Sem asas,
Sem velas,
Na direção de porto nenhum,
Eu fico como quem já disse adeus.


FONTES
“12 Poetas Grapiúnas” (1979)
de Telmo Padilha
 
“Esteja a Gosto! Viajando pela Costa do Cacau
em Literatura e Fotografia”
(2007)
de Maria de Lourdes Netto Simões
 
“Panorama da Nova Poesia Grapiúna”
(2010)
de Gustavo Felicíssimo
 
“Poetas Novos da Região Cacaueira”
(1987)
de Maria de Lourdes Netto Simões
 
“21 Poetas”
(1990)
de José Delmo


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