setembro 05, 2025

............................................................................ O HOMEM-INSETO

 

 

...ofereço-lhes o texto que escrevo,
ignoro se o entendem, como ignoro
se a minha presença ativa bate asas
como a borboleta “é para si”,
e concluo “é para nós”
MARIA GABRIELA LLANSOL
(1931 – 2008. Lisboa / Portugal)
“Onde Vais, Drama-Poesia?”
 
Se não vigiarmos a vida,
eles escreverão a história
e o futuro poderá neles acreditar.
JOSÉ DELMO
(1953. Buerarema / Bahia)
 
Fotografias:
RUI PALHA
(1953. Lisboa / Portugal)
 
para Anna Áurea Mendonça, admirável irmãzinha das horas nuas e cruas
Moysés Simões, amável parceiro em um memorável verão vermelho
e Nuno Casimiro, constante cúmplice europeu enforcado
em uma árvore de solidão

 
 
Tenho a alma marcada por um humanismo cristão profundo, um senso de tragédia existencial e uma fidelidade à tradição de outros tempos. Pensei nesse meu jeito singular de ser em plena
Jornada Fortaleça sua Imunidade Emocional”, um evento típico dessa época desembestada. Enquanto especialistas risíveis falavam sobre a instabilidade emocional, social e política, imagens da decadência contemporânea desfilavam em um telão. O público inquieto, munido de iPhones, parecia desinteressado dos palavrórios enfadonhos. E a palavra é o signo que melhor identifica o humano. Argumentar com discursos politizados ultrapassados não articula um pensamento. A linguagem atua contra o palestrante. Paradoxo, porque somos seres linguísticos, necessitamos da palavra. Quão poderosa ela é! A humanidade chegará a dominar a arte de se servir dela apenas para fins benéficos? Além do bem e do mal, tomei notas sobre o convescote pago com o nosso suado dinheiro e anunciado na mídia como reflexão sobre o desatino tupiniquim, me sentindo um infiltrado entre pilantras.

Não é fácil ser um sobrevivente de cada dia. A sensibilidade nessa sociedade cada vez mais estúpida é quase um suicídio, o mito de Sísifo. São poucos os que se preocupam com a situação caótica em que vivemos, evidenciando uma existência vazia de significâncias. Fantoches em uma trupe mambembe, raros se aprofundam em política, educação, artes ou valores éticos. Muitos exibem bondade por ter consciência que o vilão morre no final da aventura cinematográfica, e tudo é menos burocrático para o virtuoso. Essas criaturas desatinadas, são hipnotizadas por shopping-centers, carros de luxo, amantes ordinários (jovens musculosos ou louras de silicone), futebol, reality shows, carnaval, drogas, fofocas, selfies e likes. Bem diferente dos animais irracionais. Do elefante a abelha, do colibri ao cão, os bichos sobrevivem sem desperdícios ou futilidades. Desprezando sua própria espécie, o homem polui rios e mares, mata por ciúmes, se acha superior ao acumular títulos universitários e trabalha para pagar contas em parte desnecessárias. Vive-se asneiras vergonhosas.

O elemento humano é de uma complexidade obtusa e ululante. Outro dia parei para refletir a respeito e, não sei por que, me veio à cabeça Goethe e sua tragédia poética
“Fausto” (1790), uma obra-prima da literatura universal, que conta a história de um protagonista que aposta sua própria alma com o diabo Mefistófeles em troca de poder e prazer. Fausto é a imagem do sujeito moderno, que acredita poder moldar o próprio destino sem a graça de Deus. Eis o que é a natureza humana: uma mistura de ignorância, arrogância e insensatez. Deprimente… Muitos valorizam desimportâncias, incapazes de distinguir entre aparência e substância. Cada vez se fala mais e se ouve menos. Acreditam em soberania posando de advogados, empresários, influenciadores, artistas ou escritores. Demagogos, sobrevivem de tramoias e esquemas, mascarando-se de êxito. A fama e a politicagem, entre tantos desatinos – afirmo com conhecimento de causa, trabalhei com políticos e entrevistei famosos -, são performances hipócritas, sem verdade ou sentimentos.

Todos os dias quando me levanto olho-me no espelho e observo fragmentos de mim mesmo, estilhaços de uma vida inteira, o que foi e o que poderia ter sido. O meu lado detetive noir investiga a degeneração. Percebi que até o honesto, uma invenção de luxo, utiliza rotinas mecânicas e sensações pueris. É cada vez mais difícil conhecer um sujeito honrado. A sociedade se tornou uma impostura radical. A mentalidade de intelectuais e suas teses abusadas é para dar risada. Os ambiciosos líderes religiosos, sem Deus, multiplicam seu pão sem compaixão. Tempos atrás, na comunidade de Pitanga dos Palmares, no Recôncavo baiano, após chuvas torrenciais, me deparei casualmente com famílias desabrigadas, incluindo uma senhora grávida de oito meses, descalça, faminta e com o sorriso mais lindo do mundo. Alojadas numa creche úmida e suja, esperavam, pacientemente, a empatia dos bonzinhos de plantão, dos beatos de araque e dos caça votos. Casos como esse me levam a compreender como a depressão e gulodice material são frutos podres da falta de espiritualidade.

E o que aconteceu com a nossa política? Ninguém nega a sua importância. A política interfere na vida privada, influencia a economia, condiciona o progresso. Entranha-se na intimidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que a hostilizam. Um fenômeno generalizado é ouvir pessoas de bem evidenciarem sua ojeriza pela política partidária. Generalizar é sempre perigoso. Mais perigoso ainda é se omitir, a pretexto de que os honestos não se dão bem com o sistema e entregar o território de tamanha relevância a quem dele queira se aproveitar. Já advertia Edmund Burke há tantos anos:
“Para o mal vencer, basta que os bons cruzem os braços. Para o bem triunfar, é suficiente que os descruzem”. Essa conclamação deve ser refletida como libelo. É urgente que a política seja reabilitada. Infelizmente a democracia real não atrai a juventude. Esta é seduzida por ambientalismo, direitos humanos, liberdade sexual, igualdade étnica, liberação das drogas, desprezo religioso e agrupamento tribal, de massa de manobra, numa ladainha canhota de marionete e não de paladino da justiça.

“A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém”, filosofou certa vez o poeta Mário Quintana, em um de seus momentos de lucidez sobre a natureza humana. E o desprezo é o maior dos crimes. Não passa de uma grande maldade humana quando se tem tanto para dar e nada dá. Mesmo que essa doação fosse apenas um gesto de delicadeza, atenção ou humanismo afetivo. O totem de indiferença é brutal. Age como se o necessitado não existisse, numa atitude ignóbil e desdenhosa. A sentença desonrosa é que a humanidade erra, trai, mente, rouba, mata. Em uma viagem no túnel do tempo veremos que diversos ícones, de Napoleão Bonaparte a Getúlio Vargas, de Cleópatra a Evita Perón, são charlatões. O sistema reescreve a história, adota a falsa glorificação e envenena a essência do mel do melhor. Estou amargo e pessimista? Talvez, mas acima de tudo procuro ser realista e grato a Deus por estar vivo. Óbvio que tem dias que dá vontade de desaparecer, sumir, enfim, ser executado para todo o sempre. É como se fosse uma boa saída, mas zombo da angústia num piscar de olhos. Essa resiliência é o que tenho de melhor.

Aproveito os dias e as noites na Terra não como herói ou espertalhão, tampouco como fracassado e antissocial, mas como coadjuvante de uma comédia sinistra, com cenas de alegria conversando com Deus, rindo com a família, passeando com o cão Puck, cuidando de plantas, ouvindo o silêncio, lendo, escrevendo, vendo um filme policial e outras coisas simples da satisfação. Respeito os inconformados, os poetas e os aventureiros, consciente de que tudo se acabará a qualquer momento. Um final irreversível. Bem, já me disseram que não passo de um adulto mimado cheio de caprichos, talvez mais um homem-inseto, devido a inevitável insignificância. Pode até ser, mas sinceramente luto contra a ignorância, a vaidade, o egoísmo e o autismo. A cada dia, um aprendizado existencial no palco de um mundo melhor. Por exemplo, passei o fim de semana lendo
“Diário Estoico”, dos filósofos norte-0americanos Ryan Holiday e Stephen Hanselman. A obra propõe reflexões baseadas em passagens de pensadores como Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio, explicando como podem ser aplicadas para desenvolver força espiritual, autocontrole emocional e clareza mental.

Somos TODOS irmãos de alma. Sendo assim, tudo o que eu quero é não me perder nos conflitos do amor, do trabalho, da vida, da política. Tudo o que eu quero é um coração cada vez mais leve e uma cabeça sempre em paz. Tudo o que eu quero é não ser alvo da fúria dos malvados, que revestidos de fel machucam através de delitos, injúria verbal, difamação e calúnia. Por sorte existe o vinho, o jazz, a literatura e os filmes para, de algum modo, nos dar oxigênio para continuar. Aprendi que precisamos ter discernimento para distinguir o bem e o mal. Ter direito a ter opinião e a externá-la é parte da espinha dorsal da concepção democrática. É válido criticar, divulgar o que não funciona. Ensinar é uma importante missão. Todavia, um componente essencial para que tudo dê certo é o espírito da pessoa. Nossa era é pródiga em males d‘alma. Há muita gente deprimida, estressada e estafada. Concluindo, ser grato, tolerante e amar intensamente a vida é uma receita que só tem um custo: domesticar esse animal insatisfeito que é a mente. Fique com Deus, caríssimo leitor.
 


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