O poeta em suas imagens
nos diz algo sobre o mundo
e sobre nós mesmos, e esse algo,
ainda que pareça um disparate,
nos revela de fato o que somos.
OCTAVIO PAZ
(1914 – 1998. Cidade do México / México)
nos diz algo sobre o mundo
e sobre nós mesmos, e esse algo,
ainda que pareça um disparate,
nos revela de fato o que somos.
OCTAVIO PAZ
(1914 – 1998. Cidade do México / México)
Todo poeta é uma flor
que permanece
Espada aérea e franca
Contra a morte. Todo poeta é uma cor que permanece
No olhar sobrevivente
E na luz das manhãs que voltam sempre
RENATA PALLOTTINI
(1931 – 2021. São Paulo / SP)
Espada aérea e franca
Contra a morte. Todo poeta é uma cor que permanece
No olhar sobrevivente
E na luz das manhãs que voltam sempre
RENATA PALLOTTINI
(1931 – 2021. São Paulo / SP)
Ilustrações:
SARAH JARRETT
(Norfolk / Reino Unido)
SARAH JARRETT
(Norfolk / Reino Unido)
A minha relação com a poesia surgiu cedo. Por volta dos meus nove anos, quando frequentava a escola primária, encontrei ao acaso, para maravilhamento meu, um poema de Manuel Bandeira, “Trem de Ferro”, cuja musicalidade me fascinou. Entre os meus onze e os meus vinte e um anos, li muito poesia, dos antigos gregos aos sonetos de William Shakespeare, John Donne, Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke, Federico García Lorca, Charles Beaudelaire, Paul Valéry, Vladimir Maiakovski, Henri Michaux, Paul Celan etc. Celebrei magníficos nomes da poesia universal, que merecem cultivo, reverência e honras. Na idade da inocência, descobri na poesia de língua portuguesa uma vitalidade e uma inigualável sageza. O impacto perturbador de “Poema Sujo” (1976) de Ferreira Gullar ou os poemas secos de João Cabral de Melo Neto. Devorava livros poéticos de uma só vez. Entre sensações, me impressionei com Fernando Pessoa e outros poetas de Portugal. Ainda garoto garimpei os versos de Castro Alves, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes.
Ao trabalhar na Editora Siciliano, em 1989 e 1990, em São Paulo, como leitor de originais inéditos, alguma poesia passou pelas minhas mãos, terminando por me reunir profissionalmente com Adélia Prado, Roberto Piva, Glauco Mattoso e Bruna Lombardi. Inclusive, meu patrão era poeta, embora não muito bom, mas culto e apaixonado por poesia: Pedro Paulo de Senna Madureira, autor de “Rumor de Facas” (1989). Na trajetória cigana, conheci ao vivo – alguns com intimidade – renomados poetas, muitos prestigiados no Brasil e fora dele. Criaturas de instigante inspiração. Hilda Hilst, Vicente Franz Cecim, Waly Salomão, Maria Gabriela Llansol, Al Berto, Telmo Padilha, Paul Bowles, Lawrence Ferlinghetti, António Carlos Cortez, Mia Couto, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Jorge Telles de Menezes, Antônio Cícero, Ana Virgínia Santiago, entre outros. Domadores de palavras, amantes da língua, de seu mistério e de seu encanto. Também me relacionei socialmente com poetas vazios, piegas, doidos pela fama. A verdade é que muitos escrevem poesia, mas raros são os eleitos.
Fascinado, tentei ser poeta achando que seria fácil. Publiquei “O Aprendiz do Amor” (1993), “Ficar Aqui Sem Ser Ouvido por Ninguém” (1998), “Suave é o Coração Enamorado” (2006), “Livro de Imagens” (2009) e “Confissões” (2014). Tenho inédito “Na Teia do Destino Azul”. Embora tímido, participei de saraus de poesia. A primeira vez no Palácio Sotto Mayor, em Figueira da Foz, Portugal, em 1996. No ano seguinte, na “Festa da Língua Portuguesa”, no Palácio Valenças, em Sintra. No “First International Festival Naked Poets in London”, em 1998; recitais em Barcelona, Toulouse, Edimburgo, Cádiz e Gijón; no “Poesia na Boca da Noite”, em Salvador, 2006, coordenado por José Inácio Vieira de Melo e ao lado da carioca Helena Ortiz; na Casa da Ribeira, em Natal, e em João Pessoa etc. Com o passar dos anos, abandonei a poesia ou quiçá fui abandonado por ela. Concluí que jamais seria um poeta iluminado. Atualmente raramente leio poesia. Como o tempo é curto e a vida se aproxima do fim, dedico as horas de leituras a crônicas, filosofia, um ou outro romance.
O termo poesia vem do grego poíesis e indica a ideia de criar. Segundo Aristóteles, a poesia seria o “impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos”. A atividade poética foi sempre marcada por uma forte relação com a religião e com a filosofia, sendo que a maioria dos textos sagrados e reflexivos possuem linguagem poética. Há uma simbologia misteriosa na permanência da poesia ao longo dos séculos. Sua importância é inegável. Há poesia que arranca lágrimas. Outras cospem indignação social ou produzem risos. Os poemas líricos e idílicos provocam suspiros. Em síntese, a poesia habita mentes e corações. Por incrível que pareça, mesmo com a televisão e a internet, a poesia não morreu. Em alguns nichos ela continua presente. Clubes de poesia, blogs, casas de poetas, grupos nas redes sociais. Primeiro, porque a beleza ainda tem lugar no espírito dos homens. Segundo, porque é um jorro incessante e insuscetível de maravilhas, desde que surja numa alma soberana acima de qualquer suspeita. Se possível, emocionada.
Movimentos poéticos congregam abnegados que escrevem e declamam e publicam. E não se recusam a prestigiar espaços onde a poesia é bem recebida e pode se abrigar na cultura local. Na há dúvida de que precisamos de poetas. Um mundo poético ganha colorido, é mais terno e afetuoso. Faz falta a popularidade da poesia, faz falta a poesia no dia a dia, até a sentimental ou confessional, a ruim mesmo. Faz falta a poesia Romântica, Épica, Erótica, Folclórica, Histórica, Política, Étnica. Ou poesia sem qualificação. Mera poesia. Poesia e nada mais. O mundo precisa de mais poesia e de menos incompreensão. De esperança, não de desalento. A poesia é remédio para o mal-estar social que angustia e que dá a sensação de que a humanidade regrediu e menospreza o grau civilizatório que tanto demorou a conquistar. Poesia é essencial para a sociedade consumista, cuja rotina robotizada e impessoal rouba os raros instantes de sensibilidade e nos faz escravos da burocracia, da agenda woke; da maldade, das mentiras e do desespero autoritário da ideologia de esquerda.
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eu e o poeta claudius portugal |
Escrever um poema é uma afirmação de liberdade. Escapa ao definido propondo invenções em que o efêmero possa viajar sem destino. Contra toda a lógica, em nome de uma literatura construída segundo mecanismos insólitos e tendo como horizonte um universo improvável. No verso se recolhe a diferença e o poema toma a estrada da solidão, da deambulação que rarefaz a significação. Poetar é um dos mais antigos ofícios do mundo. Como guardiões da história, os poetas gozavam, nos tempos antigos, de uma posição particularmente elevada. Muitas sociedades, como a Grécia Antiga, cultuavam poetas, tais quais Homero, como figuras mitológicas, e muitos governos, como o Império Romano, homenageavam e patrocinavam poetas nativos, como aconteceu com Virgílio e Horácio. Tal como a própria poesia, considerada patrimônio de monges e filósofos, reis e profetas. Durante a era imperial do Japão, versejar fazia parte integrante da vida na corte. A reputação de um nobre podia subir ou cair devido a um simples improviso poético – era um índice do seu valor.
É natural que o poeta, como aqueles que escrevem em prosa, utilize o enredo e a cronologia. Enquanto o prosador se confina geralmente a frases, parágrafos e capítulos, o poeta utiliza outras combinações de sons e sentidos, sempre com o objetivo de intensificar o material de que dispõe sua verdade lírica. Para Samuel Taylor Coleridge, notável poeta romântico britânico, do século XVIII, nessa capacidade reside a glória do poder poético. Existem muitos métodos de exaltação e muitas maneiras de a despertar e de a exprimir através da linguagem. A humanidade leva milhares de anos explorando os idiomas sem esgotá-los. Essa busca desenvolveu o melhor que o vocabulário tem para oferecer, e os poetas acumularam meios-padrão de uma temática convencional. Ao longo desse processo, a poesia foi-se tornando cada vez mais sofisticada; e de tal modo que, por vezes, acaba por se distanciar do alcance do leitor comum. Na atualidade, talvez seja sobretudo entretenimento da indústria cultural.
Os poetas sabem que as regras de poesia são meramente convencionais e recorrem com frequência a curiosos artifícios, na esperança de encontrarem novas maneiras de alargarem as potencialidades da linguagem. Inventam recursos que tiram partido das possibilidades de rima e intensificam as repetições gramaticais. Christopher Smart, singular poeta do século XVIII, escreveu uma composição de 73 versos sobre o seu gato, começando cada verso com a mesma palavra. A construção produz efeito, mas serviu apenas para esse poema. Nos anos 70 do século passado, os concretistas criaram a expressão pós-tudo, buscando com engenhosidade afirmar uma impressão de que nada mais de novo havia a fazer ou dizer na poesia, depois das mais variadas experimentações. Assim, tirando partido do fato de a poesia ser mais lida do que ouvida, criaram figuras visuais que conferem ao poema um sentido excêntrico. Escreveram poesias sobre um cone de sorvete, um edifício, uma árvore, um animal, cuja configuração é a do próprio tema, em complexos e, segundo minha opinião, infantis jogos de sons e espaços.
O interesse pelo que os poetas podem dizer sobre a vida e sobre nós próprios leva o leitor a procurar aspectos mais vastos de poesia, semelhantes a certas composições em prosa. Percebe-se que os poetas continuam criando e transmitindo significado a diversas finalidades, inclusive com repetições e associações de maior intensidade. Afinal o verso pode variar no tipo, na extensão, no número de sílabas e na acentuação, nas repetições e combinações de som. A configuração mais popular de poesia no Ocidente foi a epopeia. Seguiram-se, em popularidade, aquelas que subordinavam a narrativa aos comentários do autor: poesia meditativa, poesia visionária e poesia satírica, por exemplo. E temos, por último, uma outra tão popular que quase eclipsa as anteriores: a composição musical. No geral, nenhum desses gêneros se confina a regras estritas. O que não tem qualquer inconveniente, exceto aos olhos de teóricos que gostariam de classificar e rotular todo o universo.
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eu e hilda hilst na casa do sol |
A poesia é a linguagem da imaginação e das paixões. Relaciona-se com o que causa prazer imediato, ou reflexão, à mente. Atinge a sensibilidade, porque apenas o que nos afeta da maneira mais íntima deve ser um tema de poesia. A poesia é a linguagem universal que o coração conecta à natureza e a si próprio. Ela não é uma simples distração frívola de uns quantos leitores desocupados, constitui a tradução e deleite da humanidade em quase todas as épocas, representando os objetos, não como são propriamente, mas tal como são traduzidos por pensamentos e sentimentos, numa infinita variedade de combinações de energia cósmica. Na sua capacidade de iluminar, o poema talvez seja ao nível do humano a proximidade do absoluto, o vislumbre do impensável na sua sensibilidade infinita. Quanto a mim, um suspeito escritor de plantão, só posso dizer que recomendo a leitura e a escrita da poesia. Faz enorme bem para a alma.
prefácio ATUALIZADO em abril de 2025
escrito para o livro “Poemas Dispersos”, de
2006
organizado por Elenilson Nascimento
organizado por Elenilson Nascimento
CECÍLIA MEIRELES
CANÇÃO EXCÊNTRICA
FONTES
“ABC da Literatura” (1934)
de Ezra Pound
“O Arco e a Lira” (1956)
de Octavio Paz
“A Criação Literária: Poesia” (1967)
de Massaud Moisés
“De Poesia e Poetas” (1943)
de T. S. Eliot
“Nos Passos da Poesia – A Pedagogia do Texto Lírico” (2005)
de António Carlos Cortez
“O que é Poesia?” (2014)
de Souza Dias
DEZ POETAS e DEZ POEMAS
(por data de nascimento)
“ABC da Literatura” (1934)
de Ezra Pound
“O Arco e a Lira” (1956)
de Octavio Paz
“A Criação Literária: Poesia” (1967)
de Massaud Moisés
“De Poesia e Poetas” (1943)
de T. S. Eliot
“Nos Passos da Poesia – A Pedagogia do Texto Lírico” (2005)
de António Carlos Cortez
“O que é Poesia?” (2014)
de Souza Dias
DEZ POETAS e DEZ POEMAS
(por data de nascimento)
01
WILLIAM BLAKE
(1757 – 1827. Londres / Reino Unido)
O JARDIM do AMOR
Eu fui ao Jardim do Amor,
E vi algo jamais avistado:
No centro havia uma Capela,
Onde eu brincava no relvado.
Tinha os portões fechados, e “Proibido”
Era a legenda sobre a porta escrita.
Voltei-me então para o Jardim do Amor,
Que outrora dera tanta flor bonita,
E vi que estava cheio de sepulcros,
E muitas lápides em vez de flores;
E em negras vestes hediondas os Padres faziam rondas,
E atavam com nó espinhoso meus desejos e meu gozo.
(1757 – 1827. Londres / Reino Unido)
O JARDIM do AMOR
Eu fui ao Jardim do Amor,
E vi algo jamais avistado:
No centro havia uma Capela,
Onde eu brincava no relvado.
Tinha os portões fechados, e “Proibido”
Era a legenda sobre a porta escrita.
Voltei-me então para o Jardim do Amor,
Que outrora dera tanta flor bonita,
E vi que estava cheio de sepulcros,
E muitas lápides em vez de flores;
E em negras vestes hediondas os Padres faziam rondas,
E atavam com nó espinhoso meus desejos e meu gozo.
02
KONSTANTINOS KAVÁFIS
(1863 – 1933. Alexandria / Egito)
MAR MATUTINO
Parar aqui. Mirar um pouco a natureza.
Lampeja o azul-turquesa. Praias amarelas.
Tudo, à luz, se embeleza, à grande luz que alumbra.
Parar aqui. Mirá-la assim, quase miragem
(se me antepôs deveras, só por breve instante).
E estando aqui, não relembrar só meus fantasmas:
anamnese, ilusões – esses ícones do êxtase.
(1863 – 1933. Alexandria / Egito)
MAR MATUTINO
Parar aqui. Mirar um pouco a natureza.
Lampeja o azul-turquesa. Praias amarelas.
Tudo, à luz, se embeleza, à grande luz que alumbra.
Parar aqui. Mirá-la assim, quase miragem
(se me antepôs deveras, só por breve instante).
E estando aqui, não relembrar só meus fantasmas:
anamnese, ilusões – esses ícones do êxtase.
03
RAINER MARIA RILKE
(1875 – 1926. Praga / Tchéquia)
SOLIDÃO
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
então, a solidão vai com os rios…
(1875 – 1926. Praga / Tchéquia)
SOLIDÃO
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
então, a solidão vai com os rios…
04
VLADIMIR MAIAKOVSKI
(1893 – 1930. Baghdati / Geórgia)
O AMOR
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo; a mãe,
pelo menos a Terra.
(1893 – 1930. Baghdati / Geórgia)
O AMOR
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo; a mãe,
pelo menos a Terra.
05
W. H. AUDEN
(1907 – 1973. York / Reino Unido)
BLUES FÚNEBRE
Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.
Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.
Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.
(1907 – 1973. York / Reino Unido)
BLUES FÚNEBRE
Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.
Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.
Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.
06
ARSENY TARKOVSKI
(1907 – 1989. Elisavetgrad, / Império Russo
- atualmente Kropyvnytskyi / Ucrânia)
Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e me conduzias
por entre lilases úmidos, até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.
Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.
(1907 – 1989. Elisavetgrad, / Império Russo
- atualmente Kropyvnytskyi / Ucrânia)
Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e me conduzias
por entre lilases úmidos, até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.
Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.
07
HILDA HILST
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)
II – DEZ CHAMAMENTOS ao AMIGO
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)
II – DEZ CHAMAMENTOS ao AMIGO
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.
08
FERREIRA GULLAR
(1930 – 2016. São Luís / Maranhão)
SUBVERSIVA
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça
E promete incendiar o país
(1930 – 2016. São Luís / Maranhão)
SUBVERSIVA
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça
E promete incendiar o país
09
PAULO LEMINSKI
(1944 – 1989. Curitiba / Paraná)
RAZÃO de SER
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(1944 – 1989. Curitiba / Paraná)
RAZÃO de SER
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
10
VICENTE FRANZ CECIM
(1946 – 2021. Belém / Pará)
PARA ADORMECER AQUELE que VELA
Há montanhas em sonhos
tão antigas,
onde sonham
os grãos da areia que te sonha
O que sobrevive na hora
que apaga a última claridade?
De quem faz a Noite a vontade?
Dia ou homem,
uma túnica de rancor é o que eles vestem,
e as montanhas vêm rugir
Caladas
Se veio o Tempo,
é que é tempo de colher sob as estrelas
o centeio negro com mãos mais brancas, caiadas
(1946 – 2021. Belém / Pará)
PARA ADORMECER AQUELE que VELA
Há montanhas em sonhos
tão antigas,
onde sonham
os grãos da areia que te sonha
O que sobrevive na hora
que apaga a última claridade?
De quem faz a Noite a vontade?
Dia ou homem,
uma túnica de rancor é o que eles vestem,
e as montanhas vêm rugir
Caladas
Se veio o Tempo,
é que é tempo de colher sob as estrelas
o centeio negro com mãos mais brancas, caiadas
COMO BROTA um VERSO
Rainer Maria Rilke
Rainer Maria Rilke
Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo?! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e, se possível, durante uma longa vida — e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como imaginam as pessoas, simples sentimentos… Eles são experiências. Para escrever uma única linha, um simples verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitas pessoas e muitas coisas; é preciso conhecer os animais, sentir como os pássaros voam nos céus e perceber o movimento de uma flor que se abre pela manhã. É preciso evocar caminhos por regiões desconhecidas, em encontros inesperados e separações longamente previstas; em dias da infância ainda não esclarecidos; nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro); em doenças de infância que começam de maneira tão estranha, com tantas transformações profundas; em dias passados em quartos calmos e em manhãs à beira-mar;
no próprio mar, em mares, em noites
de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros — e ainda
não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de
amor, das quais nenhuma foi igual a outra; de gritos de mulheres no parto e de
parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso
ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado junto a um morto numa casa
de amplas janelas abertas e aos ruídos que vinham por acessos. Mas não basta
ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso
revestir-nos de paciência infinita até que regressem à mente. Pois essas mesmas
recordações ainda não são tudo de que é preciso. E só quando chegarem a fazer
parte de nossas entranhas, quando se converterem em aspectos e gestos de nosso
ser, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos — só então é
que pode suceder que, numa hora muito rara e estranha, façam surgir a primeira
palavra dum verso que brota.
“Se as portas da percepção
estivessem livres,
tudo se mostraria ao homem como é, infinito.”
WILLIAM BLAKE
O Casamento do Céu e do Inferno (1793)
tudo se mostraria ao homem como é, infinito.”
WILLIAM BLAKE
O Casamento do Céu e do Inferno (1793)
EU e os POETAS