abril 06, 2025

................................................................................ Em NOME da POESIA

josé inácio vieira de melo, civone medeiros e eu

 
O poeta em suas imagens
nos diz algo sobre o mundo
e sobre nós mesmos, e esse algo,
ainda que pareça um disparate,
nos revela de fato o que somos.
OCTAVIO PAZ
(1914 – 1998. Cidade do México / México)
 
Todo poeta é uma flor que permanece
Espada aérea e franca
Contra a morte. Todo poeta é uma cor que permanece
No olhar sobrevivente
E na luz das manhãs que voltam sempre
RENATA PALLOTTINI
(1931 – 2021. São Paulo / SP)
 
Ilustrações:
SARAH JARRETT
(Norfolk / Reino Unido)
 
 
A minha relação com a poesia surgiu cedo. Por volta dos meus nove anos, quando frequentava a escola primária, encontrei ao acaso, para maravilhamento meu, um poema de Manuel Bandeira, “Trem de Ferro”, cuja musicalidade me fascinou. Entre os meus onze e os meus vinte e um anos, li muito poesia, dos antigos gregos aos sonetos de William Shakespeare, John Donne, Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke, Federico García Lorca, Charles Beaudelaire, Paul Valéry, Vladimir Maiakovski, Henri Michaux, Paul Celan etc. Celebrei magníficos nomes da poesia universal, que merecem cultivo, reverência e honras. Na idade da inocência, descobri na poesia de língua portuguesa uma vitalidade e uma inigualável sageza. O impacto perturbador de “Poema Sujo” (1976) de Ferreira Gullar ou os poemas secos de João Cabral de Melo Neto. Devorava livros poéticos de uma só vez. Entre sensações, me impressionei com Fernando Pessoa e outros poetas de Portugal. Ainda garoto garimpei os versos de Castro Alves, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes.
 
Ao trabalhar na Editora Siciliano, em 1989 e 1990, em São Paulo, como leitor de originais inéditos, alguma poesia passou pelas minhas mãos, terminando por me reunir profissionalmente com Adélia Prado, Roberto Piva, Glauco Mattoso e Bruna Lombardi. Inclusive, meu patrão era poeta, embora não muito bom, mas culto e apaixonado por poesia: Pedro Paulo de Senna Madureira, autor de “Rumor de Facas” (1989). Na trajetória cigana, conheci ao vivo – alguns com intimidade – renomados poetas, muitos prestigiados no Brasil e fora dele. Criaturas de instigante inspiração. Hilda Hilst, Vicente Franz Cecim, Waly Salomão, Maria Gabriela Llansol, Al Berto, Telmo Padilha, Paul Bowles, Lawrence Ferlinghetti, António Carlos Cortez, Mia Couto, Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Jorge Telles de Menezes, Antônio Cícero, Ana Virgínia Santiago, entre outros. Domadores de palavras, amantes da língua, de seu mistério e de seu encanto. Também me relacionei socialmente com poetas vazios, piegas, doidos pela fama. A verdade é que muitos escrevem poesia, mas raros são os eleitos.
 
Fascinado, tentei ser poeta achando que seria fácil. Publiquei “O Aprendiz do Amor” (1993), “Ficar Aqui Sem Ser Ouvido por Ninguém” (1998), “Suave é o Coração Enamorado” (2006), “Livro de Imagens” (2009) e “Confissões” (2014). Tenho inédito “Na Teia do Destino Azul”. Embora tímido, participei de saraus de poesia. A primeira vez no Palácio Sotto Mayor, em Figueira da Foz, Portugal, em 1996. No ano seguinte, na “Festa da Língua Portuguesa”, no Palácio Valenças, em Sintra. No “First International Festival Naked Poets in London”, em 1998; recitais em Barcelona, Toulouse, Edimburgo, Cádiz e Gijón; no “Poesia na Boca da Noite”, em Salvador, 2006, coordenado por José Inácio Vieira de Melo e ao lado da carioca Helena Ortiz; na Casa da Ribeira, em Natal, e em João Pessoa etc. Com o passar dos anos, abandonei a poesia ou quiçá fui abandonado por ela. Concluí que jamais seria um poeta iluminado. Atualmente raramente leio poesia. Como o tempo é curto e a vida se aproxima do fim, dedico as horas de leituras a crônicas, filosofia, um ou outro romance.
 
O termo poesia vem do grego poíesis e indica a ideia de criar. Segundo Aristóteles, a poesia seria o “impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos”. A atividade poética foi sempre marcada por uma forte relação com a religião e com a filosofia, sendo que a maioria dos textos sagrados e reflexivos possuem linguagem poética. Há uma simbologia misteriosa na permanência da poesia ao longo dos séculos. Sua importância é inegável. Há poesia que arranca lágrimas. Outras cospem indignação social ou produzem risos. Os poemas líricos e idílicos provocam suspiros. Em síntese, a poesia habita mentes e corações. Por incrível que pareça, mesmo com a televisão e a internet, a poesia não morreu. Em alguns nichos ela continua presente. Clubes de poesia, blogs, casas de poetas, grupos nas redes sociais. Primeiro, porque a beleza ainda tem lugar no espírito dos homens. Segundo, porque é um jorro incessante e insuscetível de maravilhas, desde que surja numa alma soberana acima de qualquer suspeita. Se possível, emocionada.  
 
Movimentos poéticos congregam abnegados que escrevem e declamam e publicam. E não se recusam a prestigiar espaços onde a poesia é bem recebida e pode se abrigar na cultura local. Na há dúvida de que precisamos de poetas. Um mundo poético ganha colorido, é mais terno e afetuoso. Faz falta a popularidade da poesia, faz falta a poesia no dia a dia, até a sentimental ou confessional, a ruim mesmo. Faz falta a poesia Romântica, Épica, Erótica, Folclórica, Histórica, Política, Étnica. Ou poesia sem qualificação. Mera poesia. Poesia e nada mais. O mundo precisa de mais poesia e de menos incompreensão. De esperança, não de desalento. A poesia é remédio para o mal-estar social que angustia e que dá a sensação de que a humanidade regrediu e menospreza o grau civilizatório que tanto demorou a conquistar. Poesia é essencial para a sociedade consumista, cuja rotina robotizada e impessoal rouba os raros instantes de sensibilidade e nos faz escravos da burocracia, da agenda woke; da maldade, das mentiras e do desespero autoritário da ideologia de esquerda. 
 
eu e o poeta claudius portugal
O poeta está noutra dimensão, enxerga enigmas no cotidiano. O poema é um peixe inquieto em um imenso rio. Ele às vezes desce ao fundo para repousar entre pedras. Há nele uma sabedoria que vem do obscuro antigo. Um saber alquimista que se constrói pela audácia inventiva – difícil, cuidadosa, apaixonada. Há na poesia um pressentimento, uma significação enamorada entre os ritmos, determinadas metáforas e o mais íntimo, semelhante ao que parece existir entre certas palavras e o que elas traduzem. O poema verdadeiro não persegue o extraordinário. Corresponde a uma energia intimista. Sua expressividade é uma questão de convicção. Ou de emoção. Abre-se um caminho no pensamento, conquistando a possibilidade do poema. Um caminho de interrogação, ética e intelecto, em consonância com o misterioso. Através do oculto, que é a causa e consequência do poema, se traduz pensamentos e imagens que são, paradoxalmente, o que nos protege, nos paralisa e nos lança no afastamento de nós mesmos.
 
Escrever um poema é uma afirmação de liberdade. Escapa ao definido propondo invenções em que o efêmero possa viajar sem destino. Contra toda a lógica, em nome de uma literatura construída segundo mecanismos insólitos e tendo como horizonte um universo improvável. No verso se recolhe a diferença e o poema toma a estrada da solidão, da deambulação que rarefaz a significação. Poetar é um dos mais antigos ofícios do mundo. Como guardiões da história, os poetas gozavam, nos tempos antigos, de uma posição particularmente elevada. Muitas sociedades, como a Grécia Antiga, cultuavam poetas, tais quais Homero, como figuras mitológicas, e muitos governos, como o Império Romano, homenageavam e patrocinavam poetas nativos, como aconteceu com Virgílio e Horácio. Tal como a própria poesia, considerada patrimônio de monges e filósofos, reis e profetas. Durante a era imperial do Japão, versejar fazia parte integrante da vida na corte. A reputação de um nobre podia subir ou cair devido a um simples improviso poético – era um índice do seu valor.
 
É natural que o poeta, como aqueles que escrevem em prosa, utilize o enredo e a cronologia. Enquanto o prosador se confina geralmente a frases, parágrafos e capítulos, o poeta utiliza outras combinações de sons e sentidos, sempre com o objetivo de intensificar o material de que dispõe sua verdade lírica. Para Samuel Taylor Coleridge, notável poeta romântico britânico, do século XVIII, nessa capacidade reside a glória do poder poético. Existem muitos métodos de exaltação e muitas maneiras de a despertar e de a exprimir através da linguagem. A humanidade leva milhares de anos explorando os idiomas sem esgotá-los. Essa busca desenvolveu o melhor que o vocabulário tem para oferecer, e os poetas acumularam meios-padrão de uma temática convencional. Ao longo desse processo, a poesia foi-se tornando cada vez mais sofisticada; e de tal modo que, por vezes, acaba por se distanciar do alcance do leitor comum. Na atualidade, talvez seja sobretudo entretenimento da indústria cultural.
 
Os poetas sabem que as regras de poesia são meramente convencionais e recorrem com frequência a curiosos artifícios, na esperança de encontrarem novas maneiras de alargarem as potencialidades da linguagem. Inventam recursos que tiram partido das possibilidades de rima e intensificam as repetições gramaticais. Christopher Smart, singular poeta do século XVIII, escreveu uma composição de 73 versos sobre o seu gato, começando cada verso com a mesma palavra. A construção produz efeito, mas serviu apenas para esse poema. Nos anos 70 do século passado, os concretistas criaram a expressão pós-tudo, buscando com engenhosidade afirmar uma impressão de que nada mais de novo havia a fazer ou dizer na poesia, depois das mais variadas experimentações. Assim, tirando partido do fato de a poesia ser mais lida do que ouvida, criaram figuras visuais que conferem ao poema um sentido excêntrico. Escreveram poesias sobre um cone de sorvete, um edifício, uma árvore, um animal, cuja configuração é a do próprio tema, em complexos e, segundo minha opinião, infantis jogos de sons e espaços.
 
O interesse pelo que os poetas podem dizer sobre a vida e sobre nós próprios leva o leitor a procurar aspectos mais vastos de poesia, semelhantes a certas composições em prosa. Percebe-se que os poetas continuam criando e transmitindo significado a diversas finalidades, inclusive com repetições e associações de maior intensidade. Afinal o verso pode variar no tipo, na extensão, no número de sílabas e na acentuação, nas repetições e combinações de som. A configuração mais popular de poesia no Ocidente foi a epopeia. Seguiram-se, em popularidade, aquelas que subordinavam a narrativa aos comentários do autor: poesia meditativa, poesia visionária e poesia satírica, por exemplo. E temos, por último, uma outra tão popular que quase eclipsa as anteriores: a composição musical. No geral, nenhum desses gêneros se confina a regras estritas. O que não tem qualquer inconveniente, exceto aos olhos de teóricos que gostariam de classificar e rotular todo o universo.
 
eu e hilda hilst na casa do sol
Tal como o romance, que escapa constantemente a qualquer definição, também a poesia não merece ser estigmatiza em métricas e elementos fixos. Para a maior parte dos leitores, essa liberdade encoraja uma equivalente abertura de espírito a todas as possibilidades de expressão literária. A poesia não está necessariamente ligada a modelos específicos de verso. Na verdade, pode não ser escrita em verso, e nem tudo o que é escrito em verso é poesia.  Apesar da ausência de métrica e rima, esta frase de Franz Kafka é poesia: “Os cães de caça brincam no pátio, mas a lebre não lhes escapará, embora ainda neste momento corra veloz pela floresta”. Poesia é um termo honorífico, usamo-lo para exaltar uma determinada escrita de fundamental expressividade. Mas também o empregamos para descrever os efeitos dessa significância sobre nós próprios, e para identificar as imagens e temas do mundo exterior que parecem estimular efeitos emocionais profundos. Na linguagem popular das redes sociais, é comum o emprego das palavras poesia e poético como sinônimos de beleza, inspiração e elevação de ideias para filmes ou fotografias.
 
A poesia é a linguagem da imaginação e das paixões. Relaciona-se com o que causa prazer imediato, ou reflexão, à mente. Atinge a sensibilidade, porque apenas o que nos afeta da maneira mais íntima deve ser um tema de poesia. A poesia é a linguagem universal que o coração conecta à natureza e a si próprio. Ela não é uma simples distração frívola de uns quantos leitores desocupados, constitui a tradução e deleite da humanidade em quase todas as épocas, representando os objetos, não como são propriamente, mas tal como são traduzidos por pensamentos e sentimentos, numa infinita variedade de combinações de energia cósmica. Na sua capacidade de iluminar, o poema talvez seja ao nível do humano a proximidade do absoluto, o vislumbre do impensável na sua sensibilidade infinita. Quanto a mim, um suspeito escritor de plantão, só posso dizer que recomendo a leitura e a escrita da poesia. Faz enorme bem para a alma.
 
prefácio ATUALIZADO em abril de 2025
escrito para o livro “Poemas Dispersos”, de 2006
organizado por Elenilson Nascimento
 
CECÍLIA MEIRELES
CANÇÃO EXCÊNTRICA
FONTES
“ABC da Literatura” (1934)
de Ezra Pound
 
“O Arco e a Lira”
(1956)
de Octavio Paz
 
“A Criação Literária: Poesia”
(1967)
de Massaud Moisés
 
“De Poesia e Poetas”
(1943)
de T. S. Eliot
 
“Nos Passos da Poesia – A Pedagogia do Texto Lírico”
(2005)
de António Carlos Cortez
 
“O que é Poesia?”
(2014)
de Souza Dias

 

DEZ POETAS e DEZ POEMAS
(por data de nascimento)
 
01
WILLIAM BLAKE
(1757 – 1827. Londres / Reino Unido)
 
O JARDIM do AMOR
Eu fui ao Jardim do Amor,
E vi algo jamais avistado:
No centro havia uma Capela,
Onde eu brincava no relvado.
 
Tinha os portões fechados, e “Proibido”
Era a legenda sobre a porta escrita.
Voltei-me então para o Jardim do Amor,
Que outrora dera tanta flor bonita,
 
E vi que estava cheio de sepulcros,
E muitas lápides em vez de flores;
E em negras vestes hediondas os Padres faziam rondas,
E atavam com nó espinhoso meus desejos e meu gozo.
 

02
KONSTANTINOS KAVÁFIS
(1863 – 1933. Alexandria / Egito)
 
MAR MATUTINO
Parar aqui. Mirar um pouco a natureza.
Lampeja o azul-turquesa. Praias amarelas.
Tudo, à luz, se embeleza, à grande luz que alumbra.
 
Parar aqui. Mirá-la assim, quase miragem
(se me antepôs deveras, só por breve instante).
E estando aqui, não relembrar só meus fantasmas:
anamnese, ilusões – esses ícones do êxtase.
 
 

03
RAINER MARIA RILKE
(1875 – 1926. Praga / Tchéquia)
 
SOLIDÃO
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.
 
Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:
 
então, a solidão vai com os rios…
 
 

04
VLADIMIR MAIAKOVSKI
(1893 – 1930. Baghdati / Geórgia)
 
O AMOR
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo; a mãe,
pelo menos a Terra.
 
 

05
W. H. AUDEN
(1907 – 1973. York / Reino Unido)
 
BLUES FÚNEBRE
Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.
 
Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.
 
Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.
 
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.
 
 

06
ARSENY TARKOVSKI
(1907 – 1989. Elisavetgrad, / Império Russo
- atualmente Kropyvnytskyi / Ucrânia)
 
Todo o instante que passávamos juntos
era uma celebração, como uma epifania,
no mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um pássaro,
estonteante como uma vertigem, corrias escada abaixo
dois degraus de cada vez, e me conduzias
por entre lilases úmidos, até ao teu domínio,
no outro lado, para além do espelho.
 
Éramos conduzidos, sem saber para onde;
como miragens, diante de nós recuavam
cidades construídas por milagre,
havia hortelã silvestre sob os nossos pés,
pássaros faziam a mesma rota que nós
e no rio peixes nadavam correnteza acima
e o céu desenrolava-se diante dos nossos olhos.
Enquanto isso o destino seguia os nossos passos
como um louco de navalha na mão.
 
 

07
HILDA HILST
(1930 – 2004. Jaú / São Paulo)
 
II – DEZ CHAMAMENTOS ao AMIGO
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
 
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.
 

08
FERREIRA GULLAR
(1930 – 2016. São Luís / Maranhão)
 

SUBVERSIVA
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
 
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça
 
E promete incendiar o país
 

09
PAULO LEMINSKI
(1944 – 1989. Curitiba / Paraná)
 
RAZÃO de SER
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
 
 

10
VICENTE FRANZ CECIM
(1946 – 2021. Belém / Pará)
 
PARA ADORMECER AQUELE que VELA
Há montanhas em sonhos
tão antigas,
onde sonham
os grãos da areia que te sonha
O que sobrevive na hora
que apaga a última claridade?
De quem faz a Noite a vontade?
Dia ou homem,
uma túnica de rancor é o que eles vestem,
e as montanhas vêm rugir
Caladas
Se veio o Tempo,
é que é tempo de colher sob as estrelas
o centeio negro com mãos mais brancas, caiadas
 

COMO BROTA um VERSO
 
Rainer Maria Rilke
 
Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo?! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e, se possível, durante uma longa vida — e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como imaginam as pessoas, simples sentimentos… Eles são experiências. Para escrever uma única linha, um simples verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitas pessoas e muitas coisas; é preciso conhecer os animais, sentir como os pássaros voam nos céus e perceber o movimento de uma flor que se abre pela manhã. É preciso evocar caminhos por regiões desconhecidas, em encontros inesperados e separações longamente previstas; em dias da infância ainda não esclarecidos; nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro); em doenças de infância que começam de maneira tão estranha, com tantas transformações profundas; em dias passados em quartos calmos e em manhãs à beira-mar; 
 
no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros — e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra; de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado junto a um morto numa casa de amplas janelas abertas e aos ruídos que vinham por acessos. Mas não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso revestir-nos de paciência infinita até que regressem à mente. Pois essas mesmas recordações ainda não são tudo de que é preciso. E só quando chegarem a fazer parte de nossas entranhas, quando se converterem em aspectos e gestos de nosso ser, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos — só então é que pode suceder que, numa hora muito rara e estranha, façam surgir a primeira palavra dum verso que brota.
 
 
“Se as portas da percepção estivessem livres,
tudo se mostraria ao homem como é, infinito.”
WILLIAM BLAKE
O Casamento do Céu e do Inferno (1793)
 
  EU e os POETAS
 
com telmo padilha
com diogenes da cunha lima
com josé inácio vieira de melo
com paulo de tarso correia de melo
com helena ortiz
com myriam fraga
com rita santana
com neuzamaria kerner
com ramon vane
com urânia azeredo bittencourt


março 23, 2025

............................ Os MANUSCRITOS do IMPERADOR FILÓSOFO

 

 

Ilustrações: 
MICHELANGELO BUONARROTI
(1475 – 1564. Caprese Michelangelo / Itália)


 
Morto há mais de 1.800 anos, o romano MARCO AURÉLIO (121 d.C. – 180 d.C. Roma / Itália), lembrado como o “Imperador Filósofo”, é uma presença erudita importante no discurso cultural do século XXI. Devo ao seu pensamento uma reviravolta na minha vida, transformando uma existência mundana em um convívio discreto e intimista. Sou grato! Ele é um dos expoentes mais célebres do estoicismo, corrente filosófica de berço grego que despontou em tempos romanos e cravou suas marcas no pensamento ocidental desde então. Viveu uma época de pestes e guerras, registrando suas ideias em um diário que o acompanhava nos acampamentos de batalha. Morreu, provavelmente, da peste, aos 58 anos. Sua obra clássica, MEDITAÇÕES, investiga temas como a razão, a virtude, o autocontrole e a busca por paz em um mundo turbulento. Imperador desde 161 até sua morte em 17 de março de 180, durante expedição em Vindobona (atual Viena, Áustria), as suas cinzas foram trazidas para Roma e depositadas no mausoléu de Adriano. Último dos chamados “Cinco Bons Imperadores”, MARCO AURÉLIO enfrentou turbulência social na capital, assim como revoltas nas fronteiras, ameaças de traição e golpes palacianos. Havia um fluxo constante de conspirações e conflitos políticos. 
 
Ele casou-se com Faustina, a Jovem, em 145. Geraram 13 filhos, mas perderam oito deles na infância. Entre os filhos, o sádico Cômodo, que se tornou seu sucessor. Atraído pela natureza selvagem, o imperador passava a maior parte do tempo longe do império, evitando os prazeres de Roma, a tentação e o conforto. Nem as inúmeras calamidades no Império, nem as constantes lutas contra os bárbaros que incessantemente tentavam invadir Roma, nem as desgraças familiares debilitaram a inteligência e a sensatez de MARCO AURÉLIO. Ele manteve sua honra, sua bondade e seu senso de justiça. Além disso, escrevia suas reflexões pessoais para si mesmo, repletas dos mais altos códigos morais, como uma fonte para sua própria orientação e para se melhorar como pessoa. Resultou em uma obra que exerce até hoje uma atração magnética.
 
Possivelmente, ele não teve a intenção de publicar seus escritos estoicos, cujo título inicial foi “Solilóquios”, depois “A Mim Mesmo”. Só muitos séculos depois da morte do autor é que foram nomeados de MEDITAÇÕES. De uma escola de pensamento influente na filosofia ocidental, o estoicismo surgiu com Zenão de Cítio, na Grécia do século 4 a.C. Esta corrente filosófica prega que a busca desmedida pelos prazeres materiais impede o homem de encontrar a felicidade verdadeira, que reside na virtude moral. Um dos principais representantes do estoicismo foi o autor romano Sêneca, no século 1º d.C. Em “A Vida Feliz”, ele descreve como a busca pela felicidade nos deleites materiais é uma ilusão. As agruras da vida, sejam elas quais forem, não devem ser capazes de abalar a força moral interior. “Um homem deve ser imparcial e não ser conquistado por coisas externas: ele deve se admirar, sentir confiança em seu próprio espírito e, assim, ordenar sua vida de modo a estar pronto para a boa ou para a má fortuna”, escreveu. Uma das mais célebres obras da humanidade, escrita entre 170 e 180 d.C, em MEDITAÇÕES deparamos com princípios éticos e políticos que não envelhecem, confrontos com crenças e crendices, orientações para não sucumbir diante da ansiedade e da depressão.
 
Esses escritos nasceram essencialmente como um exercício privado para fortalecer a visão estoica de mundo de MARCO AURÉLIO. Por cerca de 800 anos, a coleção de pensamentos pareceu estar perdida, ou pelo menos relegada ao obscurantismo.
Reapareceu no Império Bizantino, a milhares de quilômetros de Roma. De lá, desapareceu e depois surgiu na Biblioteca do Vaticano por volta de 1300. Na época da Reforma, cópias de MEDITAÇÕES circularam entre humanistas da Floresta Negra, botânicos suíços, alquimistas e cortes reais da Europa. A partir de sua publicação impressa influenciou os tempos vindouros, com filósofos, escritores, magnatas e presidentes exaltando sua visão. No seu libelo, o imperador dialoga consigo mesmo, iluminando temas que concernem à humanidade como um todo, como a vida plena, a fraternidade humana, a morte e o lugar do humano no Cosmos. É também um livro sobre a guerra, escrito em territórios disputados, cercado por tribos guerreiras ocasionalmente apaziguadas com tréguas inseguras. Em boa parte do texto, a morte é uma referência que demonstra a fragilidade da vida e do corpo humano. 
 
Parte desta atmosfera sombria veio do fato de que MEDITAÇÕES também são um livro sobre a epidemia que matou o co-imperador e meio-irmão de MARCO AURÉLIO, Lúcio Vero, e outras cinco milhões de pessoas (incluindo ele próprio). A vida era precária. A filosofia do Pórtico (como é conhecido o estoicismo) jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos, exortando seus seguidores a ações que concorram para o bem comum. Para MARCO AURÉLIO, o humano só pode alcançar seu ideal, sua plenitude e sua realização agindo de forma comunitária. Em suma, um livro de máximas escrito para a tranquilidade de espírito e a salvação da alma. Parte do deleite dele se deve à natureza da prosa, clara e contundente. Uma pessoa real está lá, entre os aforismos, em momentos vitais. A vastidão da vida do “Imperador Filósofo” em um passado distante, mas seus manuscritos nos levam até ele. Assim, se a civilização está em colapso, a melhor resposta é se refugiar na força moral. Quanto aos maus políticos e os péssimos ministros do Sinistro Tribunal Federal (STF), o conselho é simples: pagar com o mal é deixar que o inimigo vença. “A melhor maneira de se vingar é não se tornar como o malfeitor”, ensina o sábio MARCO AURÉLIO.
 
FONTES
“Marco Aurélio – o Imperador Filósofo” (1991)
de Pierre Grimal
 
“Marcus Aurelius: a Life”
(2009)
de Frank McLynn
 
“Meditações”
(170 a 180 d.C.)
de Marco Aurélio
 
“The Roman Emperors: a Biographical Guide
to the Rulers of Imperial Rome, 31 BC - AD 476”
(1997)
de Michael Grant

 
 
MEDITAÇÕES: 33 AFORISMOS
um MANUAL para a ADVERSIDADE
 
LIVRO III
09
Venera a faculdade intelectual. Nela radica tudo, 
para que não se encontre jamais em teu guia interior 
uma opinião inconsequente com a natureza 
e com a disposição do ser racional. Essa faculdade 
garante a ausência de precipitação, 
a familiaridade com os homens 
e a conformidade com os deuses.
 
LIVRO IV
17
Não ajas na ideia de que viverás dez mil anos. 
A necessidade inevitável paira sobre ti. 
Enquanto vives, enquanto é possível, sê virtuoso.
 
22
Não te deixes arrastar. Pelo contrário, 
em todo impulso, corresponde com o justo, 
e em toda fantasia, conserva a faculdade 
de compreender.
 
26
Viste aquilo? Vê também isso. Não te espantes. 
Mostra-te simples. Erra alguém? Erra consigo mesmo. 
Aconteceu algo contigo? Está bem. 
Tudo o que te sucede estava determinado 
pelo conjunto desde o princípio. 
Em resumo, breve é a vida. Devemos aproveitar 
o presente com justiça. Sê sóbrio ao relaxar-te.
 
31
Ama, admite o pequeno ofício que aprendeste, 
e passa o resto de tua vida como uma pessoa 
que confiou, com toda a sua alma, 
todas as suas coisas aos deuses, 
sem tornar-te um tirano nem um escravo 
de nenhum homem.
 
35
Tudo é efêmero: a lembrança 
e o objeto lembrado.
 
43
O tempo é um rio e uma corrente impetuosa 
de acontecimentos. Mal se deixa ver cada coisa, 
é arrastada; aparece outra, e esta também 
será arrastada.
 
44
Tudo o que acontece é tão habitual e bem conhecido
como a rosa na primavera e os frutos no verão; 
algo parecido ocorre com a enfermidade, 
a morte, a difamação, a conspiração 
e tudo quanto alegra ou aflige os ignorantes.
 

LIVRO V
21
Respeite o melhor que há no mundo; 
e isso é o que cuida de tudo. 
E estime o melhor que reside em ti; 
e isso é do mesmo gênero que aquilo. 
E em ti o que aproveita aos demais é isso 
e isso é o que governa tua vida.
 
34
Podes viver bem a tua vida, 
se és capaz de caminhar pelo bom caminho, 
se és capaz de pensar e agir com método. 
Essas duas coisas são comuns à alma de Deus, 
à alma do homem e à alma de todo ser racional: 
o não ser impedido por outro, o buscar o bem 
em uma disposição e atuação justa 
e o colocar fim a tua aspiração aqui.
 
LIVRO VI
06
A melhor maneira de defender-te 
é não te assemelhar a eles.
 
28
A morte é o descanso da reação sensitiva, 
do impulso instintivo que nos move 
como fantoches, da evolução do pensamento, 
do tributo que nos impõe a carne.
 
LIVRO VII
06
Quantos homens, que foram muito celebrados, 
caíram já no esquecimento! E quantos homens 
que os celebraram já há tempos partiram?
 
21
Próximo está seu esquecimento de tudo, 
próximo também o esquecimento de tudo 
em relação a ti.
 
28
Recolha-te em ti mesmo. O guia interior racional 
pode, por natureza, bastar-se a sim mesmo 
praticando a justiça e, segundo essa prática, 
conservando a calma.
 
31
Faça resplandecer em ti a simplicidade, 
o pudor e a indiferença no relativo ao que é 
intermediário entre a virtude e o vício. 
Ame o gênero humano. Siga a Deus.
 
42
“O bem e a justiça estão comigo”.
 
59
Cave em teu interior. 
Dentro se encontra a fonte do bem, 
e é uma fonte capaz de brotar continuamente, 
se não deixas de escavar.
 
61
A arte de viver assemelha-se mais à luta 
que à dança no que se refere a estar firmemente 
disposto a fazer frente aos acidentes, 
inclusive imprevistos.
 
69
A perfeição moral consiste nisso: 
em passar cada dia como se fosse o último, 
sem convulsões, sem entorpecimentos, sem hipocrisias.
 
71
É ridículo não tentar evitar tua maldade, 
o que é possível, e, em troca, tentar evitar 
a dos demais, o que é impossível.
 

LIVRO VIII
25
Tudo é efêmero, o tempo morreu. 
Alguns não perduraram na lembrança 
sequer um instante; outros passaram a lenda, 
e outros inclusive desapareceram das lendas.
 
33
Receber sem orgulho, desprender-se sem apego.
 
LIVRO IX
04
Quem transgride a lei, fere a si mesmo; 
quem comete uma injustiça, comete contra si mesmo, 
e a si mesmo se torna mau.
 
05
Tanto na omissão quanto na ação 
pode-se constituir uma injustiça.
 
07
Possuir comportamento íntegro, conter o instinto, 
apagar o desejo, conservar em ti o guia interior.
 
12
Não te esforce como um desventurado, 
nem como quem quer ser compadecido 
ou admirado; que antes seja teu único desejo 
agir de acordo com justiça em função do Todo.
 
LIVRO X
25
Quem foge do seu senhor é um desertor. 
A lei é nosso senhor, e quem a transgride 
é um desertor. E de uma vez, também quem se aflige, 
irrita ou teme, e não aceita o que tenha 
lhe acontecido pela lei, também é um desertor.
 

LIVRO XI
04
Realizei algo útil à comunidade? 
Ou só a mim mesmo servi? 
Sempre reflita sobre estas duas ideias 
para te ajudar a perseverar no bem.
 
05
Qual é teu ofício? Ser um homem de bem. 
E como se consegue sê-lo, a não ser 
mediante as reflexões, umas sobre a natureza 
do conjunto universal, e outras, sobre 
a constituição peculiar do homem?
 
10
Quem não for indiferente às coisas sem importância, 
quem se deixar levar pelas aparências, 
quem for precipitado ou leviano 
em seus julgamentos, não pode ser considerado justo.
 
15
O homem bom e virtuoso é percebido 
assim que se aproxima, quer queira ou não. 
Mas a afetação da simplicidade 
é uma arma de duplo fio. Nada é mais abominável 
que a amizade do lobo. Acima de tudo evita isso. 
O homem bom, singelo e benévolo 
tem estas qualidades nos olhos e não as ocultam.
 
LIVRO XII
17
Se algo não é justo, não o faz; 
se não for verdade, não o diga; 
provenha de ti este impulso.