maio 03, 2012

........................................ APRECIAÇÃO CRÍTICA: RUY PÓVOAS


 
 
Ilustrações:
ADOLPHE-WILLIAM BOUGUEREAU
(1825 - 1905. La Rochelle / França)
 
 
“A escrita mente, é um refúgio e a presença em combustão da inexistência.” É justamente isso que pensa um dos muitos personagens destas PEQUENAS HISTÓRIAS do DELÍRIO PECULIAR HUMANO narradas por Antonio Nahud. Não sigo seus caminhos, mas participo de várias de suas crenças. De fato: a escrita é um refúgio, pois quem “vive” não tem tempo para escrever. As histórias de Antonio são realmente pequenas, como são pequenas as histórias da maioria esmagadora dos humanos. Algumas são muito pequenas mesmo. Exemplo disso: “O Inocente”, “Paisagem ao Longo da Estrada”, “O Vicioso”, “O Jardim do Achado e Perdido. Nem por isso, menos densas que as demais. Aliás, a densidade das “Pequenas Histórias...” chega a ser esmagadora. O autor crê nisso, seu texto revela-nos isso. Faz parte de sua escritura. Para além da densidade do texto, os personagens são submetidos a uma espécie de tomografia computadorizada que lhes revela as mazelas do corpo, da mente e do espírito, gestoras de delírios. E delírio é tomado na acepção de estado de obnubilação da consciência, com ilusões ou alucinações e nunca como êxtase espiritual. É isso: para os personagens deste livro, a existência é uma moléstia que produz delírios. E para compor o desfile dos delirantes, Antonio não teme pôr em palco os personagens em plena crise de delírio. O resultado disso é que vem a público aquilo que só é narrado nos confessionários católicos, nos consultórios dos terapeutas e psiquiatras, nos quarto-de-consulta de terreiros, tendas e centros afro-brasileiros, nos quartos de dormir de muitas casas: o lado sombrio do humano, sua rede de treva, que a maioria teima em negar ou ignorar.

Na urdidura das PEQUENAS HISTÓRIAS do DELÍRIO PECULIAR HUMANO, muitas vezes o autor intercala uma frase única que faz o leitor entender que o narrador é de outra estirpe. E isso é o suficiente para que o leitor tenha certeza: aquele personagem nada tem a ver com o seu autor, embora o autor obrigue seu personagem a se expor: um belo jogo de esconde-esconde. Há uma espécie de foco especial na personalidade masculina: “Os homens não deveriam ter nomes, são tão parecidos uns aos outros”; “Os homens são formados numa única e tradicional escola de cinismo”; “É preciso entender as entrelinhas hipócritas do universo masculino”. O banal da personalidade masculina chega até aos antropônimos. Eles são “Petrônio”, “Eustáquio”, “Bernardo”. Ora, prefaciar uma obra é tentar traçar um roteiro para uma possível leitura, apontar marcos, frisar conotações. Antonio Nahud, no entanto, se interpõe: “Não preciso explicar os meus versos. Escrever é uma emoção intelectual particular”. Aí, arma-se um dilema para o exercício da crítica: se não explicar, fazer o quê? É justamente isso que o crítico, antes de tudo, precisa aprender: não explicar, pois a arte não se explica. É isso: esses contos são para serem sentidos. Apenas, através do sentimento, é possível alcançar um mínimo de compreensão para com aqueles que deliram. A eles, já basta o fardo do delírio de viver aquilo que os santos afastam, as igrejas condenam, as religiões chamam de escuridão.

Às vezes, Antonio se esquece de sua juventude e assume, na condição de expositor das chagas humanas, o papel de um idoso senhor. Chega, mesmo, a usar vocábulos pertinentes àquela faixa etária: “urzes”, “rutilâncias”, “plátanos”. Depois, dá um salto e aborda as fileiras de cocaína, os cigarros de maconha, a obsessão pelos prazeres sexuais, digamos, não convencionais. Justamente, nesse salto, as chagas são reveladas e os mais conservadores estremecerão. A solidão, a sozinhez, a perdedeira fazem parte do caldo de cultura que alimenta a dor e instala o delírio. Isso ocorre, no entanto, como fatalidade. As pessoas nunca querem ser sós, são vítimas de uma impositura: elas mesmas. Quanto mais desejam companhia, quanto mais buscam parcerias, mais se enredam em si mesmas, tornando-se companhias insuportáveis. E quando o universo providencia alguém que lhes acompanhe, elas fogem, correm como loucas, para a solidão, outra vez. É a partilha que fica impossível de ser realizada, pois não basta dividir o ambiente, o salário, os objetos. Quem não sabe partilhar sentimentos e ideias vai compor a procissão dos que desfilam nas PEQUENAS HISTÓRIAS do DELÍRIO PECULIAR HUMANO. É justamente por não compreender isso que um dos personagens termina perguntando a si mesmo: “Mandam-me a alguma missão secreta ou pago pecados?”. Em tal situação, falta a aceitação do sentimento que dissolveria as causas do delírio, porque falta fraternidade entre os humanos. Ainda somos, até hoje, muito ignorantes para aceitarmos o conselho: “Confessai-vos uns aos outros.” E por não aceitarmos o conselho em sua verdade simples e cristalina, uns transformaram a confissão em sacramento; outros, em material para o ganha-pão.

A densidade necessária para que a narrativa seja curta sem perder a sua essência faz com que certos enfoques tenham nitidez exacerbada. Por isso mesmo, Antonio Nahud Júnior chega ao nível do hiperbólico: “As sereias de Homero nadam no seu sangue, levadas por correntes violentas.” Aliás, a hipérbole faz parte do universo do escritor. Seus ódios e amores podem ser facilmente convertidos um no outro: o mesmo traço de personalidade de um personagem, embora deletério, quase um elogio, é punido severamente em um outro. No desfile que ele obriga seus personagens a realizar, virtude e pecado são apenas resultantes da alternância do ângulo de observação. Por isso mesmo, nem o amor é um valor absoluto: “O amor é um belo delírio condenado à incerteza. O amor renasce incessantemente. O amor é aquilo que, ao mesmo tempo, nos cega e nos ilumina”. Nas PEQUENAS HISTÓRIAS do DELÍRIO PECULIAR HUMANO, ocorre uma procissão de juventude. Parece até que os velhos estão imunes ao delírio. Isso acontece porque, depois que se vive a juventude, os desejos são amainados, os ódios são aplacados e os estandartes provisórios são abandonados nos desvãos da estrada do existir. Isso, no entanto, não chega a ser um bem: “velhice é um erro, um mal-entendido entre o corpo e o espírito, uma traição do tempo”. Se a velhice é um erro e a mocidade é a fase do delírio, o que restaria ao humano, então? Escrever, talvez. No entanto, “a escrita mente e é um refúgio, a presença em combustão de um mundo inexistente”. Resta, portanto, a cada um de nós, pessoas ou personagens, apenas viver. Viver na plenitude do sentimento, para que o delírio não nos assuma e venhamos a compor o desfile trágico-cômico e, por isso mesmo doloroso, das pequenas histórias.

RUY do CARMO PÓVOAS
Poeta, mestre em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-professor titular de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).


10 comentários:

Neda Doria Morillo disse...

Desejo a melhor sorte para seu livro. Minha mae era louca por voce e tinha por voce uma adimiracao enorme. Felicidades.
Neda Doria Morillo

Marcel Santos disse...

Antonio, parabéns, sucesso no lançamento.

Marcel Santos

Maria da Conceição Paranhos disse...

Mais uma vez, poeta, parabéns!
Que a musa da poesia continue abençoando você!
Abraço de,
Maria da Conceição Paranhos

Jorge Telles de Menezes disse...

Querido Antonio, muitos e muitos parabéns! sobretudo porque estive já a ler cheio de curiosidade, e gosto muito do que você escreve e do género de micronarrativas! Adoro narrativas curtas, stories, como diria um poeta, os meus poemas são stories... Claro que vou ajudar, escrever sobre, divulgar. Mande depois a foto da capa para divulgarmos. Vi que tem textos acontecidos em Portugal, que bom seria fazer uma leitura desses textos em sintra... Talvez até você possa colocar aqui alguns exemplares à venda...

Neuzamaria Kerner disse...

Antonio Jr, querido. desejo que seu novo livro caminhe muito ao encontro dos olhos do mundo.

um grande abraço.

www.neuzamariakerner.blogspot.com

EM disse...

Muito bem. Parabéns pelo sucesso

FAHDA MARON disse...

Meu Friendzinho Querido,

PARABÉNS por mais esta conquista. Não esqueça de separar meu exemplar, rsrsrsrs.

Quando você vem lançar aqui?

Muitas Saudades,

Beijos

JORGE DE SOUZA ARAÚJO disse...

Caro Antonio:

Fico feliz e espero receber o exemplar para que eu o integre ao meu projeto de História da Literatura Baiana.

Abraço


Jorge Araújo

Tcharly Magalhães Briglia disse...

Ótimo texto do querido Ruy Póvoas. Despertou total curiosidade de ler seu livro, amigo. Parabéns e sucesso sempre! Abração!

Tásia Medeiros disse...

Amigo querido, tudo em você é arrebatador, e este será mais um grande sucesso. Tenho muito orgulho da sua amizade, estaremos lá, com certeza. Bjus para o meu baiano preferido.