“A carícia do olho sobre a pele
é de uma doçura extrema”
GEORGES BATAILLE
Imagens:
MORVAN FRANÇA
(1987. Belo Horizonte / Minas Gerais)
A fotografia enlaça olhares. O mineiro MORVAN FRANÇA, radicado em
Natal (RN), está enlaçado ao olhar fotográfico bem treinado e estimulante. Suas
imagens beiram o poético, dando mais importância à perspectiva e ao jogo de luz
e sombra do que ao objeto fotografado. Radiografam o mais íntimo da paisagem
tropical, valendo-se do estancamento da beleza, daquilo que passa por todos
nós, todos os dias, mas vemos sem enxergar. Num aproximado estranhamento, criam
uma atmosfera de realismo fantástico - talvez alquímico em seu mosaico de intenções
-, perseguindo uma finalidade estética única, profunda. O objetivo aparente é
documentar sua relação com a natureza, capturando inclusive sentimentos. Isso é muito
difícil, mas parece ser essa a meta, tornando visível a invisível
passagem do tempo. Afinal, lembrando o poeta gaúcho Mário Quintana, “Se as
coisas são inatingíveis ora, / Não é motivo para não quere-las / Que tristes os
caminhos se não fora / A mágica presença das estrelas!”. O resultado dessa persistência mostra a conexão homem-paisagem, vivência e ações, repulsa e cumplicidade. Ele deixa isso transparecer.
Com tato. E essa relação comovente que estabelece com seus sujeitos fotográficos
é a força da sua bonita fabulação pictórica.
Imagens emblemáticas. Mesmo estando, em sua maioria, solitárias e deixadas ora com foco em
algo distante, ora encarando com fúria quem as olha, as emoções mais
secretas estão vivas. O ‘eu’ do artista é puxado através do assunto clicado. Para
captar seus temas, que se repetem à exaustão em imagens, ora extremamente
elaboradas, ora apenas cotidianas, mas não menos levadas a sério, ele intervém com
miragens alquímicas, pinceladas meigas que conversam com o que foi retratado, mostrando,
evidentemente, a que veio o fotógrafo em sua arte. Tudo registrado em detalhes
tão íntimos, tão aproximados, que o fluxo existencial se ilumina. Uma coleção
de imagens ternas, melancólicas, sempre formosas.
Paisagens, folhagens, dunas, areia, vento, águas, luas doidas. Fotografias libertárias,
de prazer, dor, vida, morte, revolta.
O filósofo francês Gilles Deleuze disse que “A arte é a linguagem
das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras”.
Essa reflexão vibra na linguagem fotográfica despida e polêmica de MORVAN FRANÇA.
Torna-se impossível não ver sensibilidade, afeto, tristeza, solidão e vazio nas
suas narrativas visuais de estradas, mares, rios, lagoas, palmeiras, montanhas,
matas, espaços. Inclusive em retratos inusitados, por vezes sádicos, como a
série “A Face Oculta”, homenageando o pintor irlandês Francis Bacon. Suas fotos
de pessoas sugerem inquietude; suas fotos de paisagens sugerem inquietude; suas
fotos de árvores, rochas, praias, animais, tudo sugere inquietude. A leitura do olhar
fotográfico não é isolada. Ao olhar suas imagens é provável ver muitas facetas
e não apenas um retrato. Os retratos lembram coisas, as coisas remetem
ao delírio, o delírio aos sonhos e distanciamento. Há uma dor singular em cada
uma de suas fotos, mas não é uma dor individual, e sim partilhada com o fotógrafo
que retratou o que nossos olhos observam. Imagens que podem e devem ser lidas e
traduzidas livremente pela composição multilinguística, luz, papel, cor, adereços,
memórias e olhares do autor, memórias e olhares do público.
Em alguns casos, os artistas revelam-se em suas fotografias, sem
limites, num ato confessional. Por outro lado, há aqueles que se debruçam sobre
a intimidade alheia, utilizando estratégias esquivas para capturarem imagens que
por alguma razão subjetiva os interessa. Nesse sentido, tomam pra si o papel do
voyeur, buscando na relação entre olho e câmera, uma maneira de invadir a
privacidade anônima. A linguagem fotográfica carrega de alguma forma a essência
do voyeurismo. O ato de fotografar permite uma ativação do olhar, que passa a
observar o mundo por uma pequena fresta, em que o “objeto” observado por mais
próximo que esteja diante de nós, permanece ainda distante, mediado por um
aparelho técnico. Segundo
Susan Sontag “ter uma câmera transformou uma pessoa em algo ativo, um voyeur
(…) tirar fotos estabeleceu uma relação voyeurística crônica com o mundo, que
nivela o significado de todos os
acontecimentos.”. A crítica de arte atribui ainda a ação cometida pelo
voyeur ao olhar do fotógrafo, pois através da câmera o olhar se desloca de uma
condição contemplativa e passiva de percepção para uma forma ativa e
investigativa de ver o mundo.
Na arte contemporânea, sobretudo na produção fotográfica,
observa-se um crescente interesse pelo experimentalismo. Tal manifestação está evidente nas
nove fotografias da obra “Orbitorium”, de MORVAN FRANÇA, de viés
contemplativo, onde o autor faz lúdica investida em conchas, raízes, folhas
secas, areia. Forma um mosaico de fabulário particular, capturando imagens
com a astúcia e técnica de um detetive ou mesmo de um paparazzi, atividades
onde a fotografia é utilizada de forma esquiva, mas ao mesmo tempo invasiva. Oferece
uma visão panorâmica, revelando um caráter de subversão, baseado
no deslocamento do impessoal para um domínio privado e afetivo. Despojado
de formalismos, o artista vive a obsessão dos tempos modernos de produzir e
consumir imagens. Na sua arte, a fotografia nasce na granulação,
luz baixa, flash estourado, interferências, banalismo documental, alta definição, conceitual, bucólica, histórias pessoais.
A maior parte dos registros fotográficos de vida selvagem reforça
a percepção nostálgica de uma natureza exótica, estimulando uma visão ingênua e
edulcorada. Tais fotografias alimentam uma cultura visual que desenha a relação
romântica que mantemos com esse mundo distante. A bela cena aguça o interesse
pela natureza pitoresca, sendo explorada à exaustão e com competência técnica.
Essa imagística agrada ao consumidor do exótico estampado em
folhas de papel, satisfazendo o prazer de reconhecer o “selvagem” em poses
previsíveis que reavivam o desejo por aventuras. Contudo, encontra-se em alguns
fotógrafos a preocupação de desestabilizar a imagem estereotipada do selvagem e
suscitar um pensamento sobre a relação entre os seres humanos e as outras
formas de vida. A fotografia de MORVAN FRANÇA não faz parte dessas convenções habituais, propondo outras formas de ver a questão das espécies ameaçadas de
extinção e da ação devastadora do homem sobre os lugares que elas habitam. Ele
busca invenções, por meio das quais pretende se diferenciar. Chamando a atenção
para situações que a maioria das pessoas não vê, fotografa como quem
atira dardos, alheio aos pactos recorrentes e mergulhando num
mundo próprio, que desconcerta.
Explorando aproximações entre elementos díspares, sugere conexões entre luz e sombra, volume e superfície, repetição da mesma figura em
diferentes composições. Esses procedimentos suscitam analogias e tornam sua
fotografia virtuosa. Talentoso, crítico e polêmico, o fotógrafo MORVAN FRANÇA ironiza a
sociedade em seu experimentalismo, realizando uma arte significante, de
referência, que merece um longo percurso. Finalizo lembrando mais uma vez Gilles Deleuze: “Escreve-se
sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para
traçar linhas de fuga”. Assim parece compreender o autor de “A Face Oculta”.
MORVAN
FRANÇA – Breve Biografia
Rendeu-se ao mundo da fotografia desde sempre. Tem imagens publicadas em
blogues e jornais do Rio Grande do Norte. Diretor fotográfico da
revista “Ícone – Turismo e Cultura no Nordeste”, teve participação especial na
exposição “Cartografia dos Afetos”, no Museu de Cultura Popular Djalma Maranhão
(Natal). Sua exposição “A Face Oculta” recebeu Troféu Cultura de Melhor
Exposição de 2013 no RN.