maio 06, 2015

.................................. “A VIDA POR si SÓ é PUNGENTE”



ANTONIO NAHUD 
entrevista CLARISSA MACEDO

Ilustrações:
SUZANNE VALANDON


Licenciada em Letras Vernáculas, mestre em Literatura e Diversidade Cultural e doutoranda em Literatura e Cultura, a poeta CLARISSA MACEDO (Salvador, Bahia) é também revisora e professora de escrita criativa. Está presente em diversas coletâneas. Autora de “O Trem Vermelho que Partiu das Cinzas” e “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos” (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia), ambos de 2014. Publica, regularmente, tanto em meios eletrônicos como impressos. Sua poesia está traduzida para o espanhol. Desenvolve projetos culturais. Participa de eventos literários Brasil afora. Edita o blog Essa Coisa que É o Eu: http://clarissammacedo.blogspot.com.br/. Confira a entrevista:

Pode nos contar sobre o seu trajeto inicial como poeta? Como se deu esse encontro com a literatura?

Nahud, minha história em nada é extraordinária. Não nasci num ambiente artístico, embora tenha tido livros à mão; não sou genial, fui/estou aprendendo conforme o tempo passa. Mas tenho a impressão de que meu trajeto, de alguma maneira, “é” sempre. Os primeiros olhares de que me recordo já se constituíam poesia. Posso dizer que meu encontro com o texto literário escrito partiu de histórias infantis, depois de clássicos, passando pela leitura de mundo – desencontrada, sinuosa – histórias em quadrinho, roteiros de cinema, músicas que me chamavam pro verso. Meus primeiros mestres foram Machado, Pessoa e Drummond. Ao mesmo tempo em que lia, escrevia e dedilhava mais e mais a estante de casa. Nesse percurso, a decisão de cursar letras foi espontânea, decisiva. Tudo foi se dando de modo muito instintivo. No entanto, só aceitei a literatura como trabalho e postura de vida, conscientemente, há pouco tempo. Eu tinha (ainda tenho) medo. É uma baita responsabilidade ser chamada de poeta. Mas é isso que sou na vida. Minhas decisões perpassam pelo crivo lírico. E uma de minhas maiores angústias é não poder me dedicar exclusivamente a essa vocação.

Quais são suas referências literárias? Os autores que realmente fizeram a sua cabeça e que, de certa forma, influenciaram em sua produção.

Drummond é o principal. Acima de tudo e todos. Minhas leituras são confusas, imbricadas. Tenho o hábito de ler 10, 20 livros ao mesmo tempo; poesia, diariamente (“escapulário: No Pão de Açúcar / De Cada Dia / Dai-nos Senhor / A Poesia De Cada Dia, Oswald de Andrade). Posso citar uma longa lista... sempre faltará um nome, um verso, um livro. Mas, sendo eu inacabada e promíscua, impossível não mencionar Cecília, Bandeira, Ungaretti, Augusto dos Anjos, William Carlos Williams, e. e. cummings, Zé Ramalho, Elomar, Juraci Dórea, Gullar, Salgado Maranhão, Quintana, Joyce, García Márquez, Fitzgerald, Kafka... mais recentemente Angélica Freitas, Verónica Aranda e Helena Kolody. Além de todos os poetas fantásticos com os quais convivo virtualmente, como a Nydia Bonetti e o Nathan Sousa. Cada leitura que fiz/faço deles é um sopro novo, uma descoberta, uma epifania. Sinto como se apanhasse um trem na gare do infinito e trilhasse longe. O que posso dizer? Ler, reler, tresler é fundamental para qualquer um, para qualquer escriba.

Falando, então, desses autores que adoramos, como poetas muito distintos de você influem no que escreve?

Interessante. O jogo de/da alteridade é necessário. Creio que escritas distintas das que eu pratico influenciam de modo ramificado, subversivo. Tudo influencia a escrita. Se não for inspiração na tessitura, pode ir pelo caminho do não fazer. Há certos excessos de experimentalismos com os quais não me identifico, que não suscitam nada em mim. Mas é importante, também para mim, que existam. Afinal, só percebo o que sou ao intuir o outro.

Como observa a experiência cotidiana na poesia contemporânea?

Enquanto tema e aproximação estética a experiência do dia a dia pode ter resultados adoráveis, como os que vemos em Bandeira, com um lirismo cotidiano de grande força. Tanto a poesia tida como rebuscada quanto a de envergadura mais simplista são, em variados graus, do cotidiano, despertadas pelo acontecimento mais trivial. O sublime é o cotidiano transfigurado pela matéria da palavra. O Modernismo, saturado por escolas anteriores, privilegia o elemento do diário como o mote lírico por excelência, abrindo a poesia para o caseiro, retirando-a de uma aura mais formal. Isso é maravilhoso. A poesia contemporânea se aproxima muitíssimo da moderna, como uma espécie de continuação. O perigo, sempre, é cair numa falta de zelo com o verbo, retirar o verso do que pode ser chamado de poesia a pretexto de retratar o cotidiano, como se este fosse simplório, descuidado. Isso, porém, não tem que ver com o cotidiano, mas com uma postura equivocada acerca do que seja literatura – a arte da linguagem, é necessário mencionar.

Como lida com a impossibilidade de nomear certas coisas e experiências, a iminência da linguagem?

É uma mescla de consciência e frustração. Há coisas que só a poesia pode falar ou que só ela pode falar da maneira certa. Mas há coisas que ainda não alcancei; coisas que só à poesia do silêncio cabem.

Atualmente, qual indagação literária a assombra?

Essa pergunta me chega como um presente, uma oportunidade de me abrir, de dizer coisas sobre as quais ando pensando muito. Uma delas a de que me questiono se vale a pena expor a minha literatura, que é uma maneira enviesada de mostrar a mim mesma. Será que alguém quer me ler, escutar de verdade? Ao participar de eventos, tenho a impressão de que o público se atrai mais por tônicas eróticas, que despertem humor ou que sejam predominantemente performativas. Todo texto é performance, mas encenar o texto, às vezes matando o ritmo, é outra demanda. Fico me questionando se o leitor está interessado, de fato, na literatura. Que poesia é essa a da contemporaneidade? Leio coisas insossas que são aclamadas e me pergunto se a proposta da modernidade, as vanguardas não foram mal interpretadas. Não sei quais são os limites do artístico, mas eles existem. A linguagem muda, e deve mesmo mudar. Os anseios são outros – apesar de temas universais. Há coisas que me soam anacrônicas, desnecessárias. Outras, não comunicam, não tocam, por terem apenas um frescor de novidade. Daí me pergunto: o conceito em detrimento da expressividade vale até que ponto? É necessário termos em mente, a despeito de quaisquer teorias, que a literatura demanda apelo estético, é forma. O tema não é o primordial, porque, e isso é pleonasticamente básico, o que diferencia o literário de outras formas de comunicação é sua relevância estética, seu modo de funcionamento. Parece, todavia, que alguns artistas da palavra se esquecem disso, e usam a liberdade estabelecida no Modernismo como desculpa para não cuidar do texto, desculpa algumas vezes para a falta mesmo de aptidão.

Prosa e verso caminhem lado a lado?

Caminham por vias entrecruzadas, de ladrilho, que ora se bifurcam, ora dividem a mesma calçada. Às vezes, a poesia sobe a ladeira enquanto a prosa entra num túnel. Assim vão. Kafka é o meu poeta do absurdo. A poesia pode estar em tudo, assim como a vida é inteiramente narrativa. Separá-las enquanto gênero e com características distintas, como de fato possuem, não significa imaginar que não se comunicam. Quanto mais aprofundamos nossa concepção sobre cada gênero, vemos como peregrinam em diálogo.

Como foi o processo de criação do seu livro mais recente, Na Pata do Cavalo há Sete Abismos?

“Às vezes, subitamente, a poesia te visita. / Pura. / Infinitamente pura. / Como uma rosa. / Melhor ainda: / como a ideia de rosa. ”, Emílio Moura. Foi engraçado. Lendo o livro, percebo que, conscientemente, não nasceu como um livro. Fui compondo os textos como sempre: tomada por uma sensação mágica seguida por árduo trabalho. Na semana em que o livro ficou pronto, havia 14 poemas que já havia separado para outros projetos, coisas esparsas. “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos” só tomou forma quando, numa jornada de uma única noite escrevi 36 poemas, dos quais usei 34. Ao longo de dois dias, elaborei mais dois, chegando à soma final de 50 poemas. Os cavalos compõem uma figuração que circunda meu imaginário faz tempo, de modo que ditaram o andamento de todo o livro. A ideia do conjunto, a ordem dos poemas, só tomou forma definitiva por conta do prêmio. Na última semana, ou melhor, no último dia de envio, organizei tudo. Estava pensando em outra formação, que aproveitarei futuramente, mas com outras coisas. Os cavalos galoparam forte e se impuseram de maneira definitiva.

Por que há sete abismos na pata do cavalo?

Todo mundo me pergunta isso. Ao mesmo tempo em que tenho claro em mim o porquê, tudo é muito misterioso. Esse título veio num estalo, num sonho que tive sem dormir. Acho que os sete abismos se consumam na união da alegoria espiritual, cabalística, encarnada neste numeral, à simbologia do cavalo: animal de montaria, robusto e dócil, resistente, sensual. Nas patas que trotam no universo de minha poesia, os cavalos voam libertos de qualquer arreio e montaria, recebendo a revelação divina, tateando a finitude, a realidade da vida – matéria reluzente, mas também licencioso palco para a letargia da morte. Em cada abismo apocalíptico, a doçura e força de um cavalo que voa, que sonha. Isso só compreendi depois. Na hora de intitular, senti a sonoridade, o enigma do verso. A arquitetura do pensamento se deu posteriormente. Não sei dizer de outra forma. Nessa contemporaneidade, talvez eu soe obsoleta. 

Quais são as maiores dificuldades durante o processo criativo?

“Todo autor deveria escrever seus livros como se fosse ser decapitado no dia em que o terminasse.”, F. Scott Fitzgerald. Creio que o mais difícil não seja o processo, mas o entorno para que esse processo possa surgir. A dificuldade está em poder me dedicar também a leituras não acadêmicas, ao silêncio que me é caro para criar, transcender, a trabalhar mais o texto do que os ofícios do sustento. Penso que este é um drama vivido pela maior parte dos escritores. O transe que ronda a decapitação de que fala Fitzgerald, requer entrega. Esta requer tempo, e é aí onde reside minha maior problemática.

Um trecho de um livro que faça parte de sua vida e de seu relacionamento com a literatura.

“E assim é que, se pensarmos bem, a literatura viverá enquanto aquele que se dispuser a escrever uma simples carta hesite por alguns instantes sobre o modo de tornar verossímil o que nela pretende dizer. E, no pior dos casos, mesmo supondo que as pessoas deixem de escrever cartas, a literatura não morrerá enquanto os poetas, além de escrever, souberem ler. Ou seja, senhoras e senhores: os poetas não morrerão, precisamente porque não morrem.”, Enrique Vila-Matas.

Segundo a teoria norte-americana New Sincerity, nas últimas décadas parte da literatura e das demais artes desiste das tendências pós-modernas de relações irônicas ou céticas com a tradição para simplesmente se expressar de forma sincera. Você se identifica com essa novidade frente à tradição?

“O poeta busca o verso mágico – aquele cujo sentido seja a ele mesmo misterioso”, Paul Valéry. Enquanto pensadora, até certa medida, sim, pois há, e deve haver, espaço para distintas manifestações. Enquanto escritora, não. A verdade existe? A verossimilhança, nomenclatura eleita pela crítica como solução para o drama do real e do verdadeiro, necessita do jogo com o fingimento. E a sinceridade só vale até o patamar em que não prejudica o estético. Buscar a verdade a goles secos pode render numa não-literatura (e não defendo aqui um sentido inalcançável, grandioso demais para ser apreendido. Mas, como a arte opera por signos não imediatamente referenciáveis, vale o deslize, a dobra e, por que não, a dúvida). Correntes literárias, como a Language, grosso modo, privilegiaram o deslocamento sintático, no intuito de retratar o que o poeta queria dizer. Há resultados interessantes, ondeados rítmicos e grandes poemas. Mas nessa construção, acima dos projetos conceituais tutelando essas escritas, não existe uma inversão de sentido? Enquanto a literatura existir, a verdade nunca será estanque.

Quando lembrei a um poeta potiguar sobre a liberdade de se escrever hoje, ele mencionou ilusões, já que faz mais sentido tratar de temas antigos como, por exemplo, culpa religiosa. Concorda?

Não posso dizer que sei o que faz mais sentido ou não. Toda arte é política e espiritual. O mundo muda. Lírico-politicamente, discursos como o feminino, o homoafetivo e o étnico, por exemplo, têm se mostrado mais, têm sido mais lidos, discutidos. Essa é uma configuração marcadamente contemporânea, reflexo da década de 1960, dentre outras coisas. Outro caminho, que não exclui o citado acima, marca o seguinte apelo: quem nunca se perguntou de onde veio e para onde vai e ao fazê-lo por alguns instantes sentiu um frio na barriga? O que quero dizer é que há inquietações que atravessam qualquer tempo, o que costumamos chamar de temas universais, independentemente do lugar de fala, com variações produtivas em cada cartografia geográfico-humana pela qual perpassa. Parece-me que a liberdade maior está na forma. Afinal, temas que ainda configuram um tabu, como o erótico, o corpo, vêm sendo poetizados desde os antigos. A propósito do corpo, ocorre-me estes versos de Eduardo Galeano, falecido recentemente: “A igreja afirma: O corpo é uma culpa. / A ciência afirma: O corpo é uma máquina. / A publicidade afirma: O corpo é um negócio. / O corpo confirma: Sou uma festa.”. Em suma, o mundo é outro, com outras angústias, e por isso com distintas nuances para serem poetizadas; todavia, questões como o amor, o tempo e a morte, mesmo com diferenças profundas de uma época para outra, parecem ser inesgotáveis. Pensemos, assim, na liberdade também pela via de um tratamento de tema, e não somente na temática propriamente dita.

Quais são os principais desafios e oportunidades de se escrever hoje? Não me refiro a condições comerciais, mas históricas — escrever após Clarice Lispector, Ferreira Gullar e, mais recentemente, Milton Hatoum.

Enquanto mulher, tenho maior liberdade para tal. A fogueira na qual venho sendo queimada é simbólica. As chamas ainda doem, mas ao menos não me punem irremediavelmente. Para além dessa questão, posso transitar com mais facilidade, conviver com colegas de ofício que moram longe etc. Não falando de mercado, escrever após Clarice, por exemplo, é um duplo desafio: primeiro, o de pensar “o que escrever após isso?”, parece que não sobra nada; depois, um gozo sombrio, em poder se nutrir de diletantes e conexas leituras que, se bem apreendidas, podem preencher espaços oníricos que se lançam no ato de escrever. Partindo de um lugar contemporâneo, escrever após Clarice é trazê-la para perto, bem perto, e depois transpassá-la.

Como é escrever sabendo que será julgado por uma cultura que nem mesmo conhece alguns dos poetas fundamentais com os quais seu trabalho pode se relacionar?

É um saco. Penso no leitor na hora de publicar o texto. Crítica, só me importa aquela que for construtiva, embasada. Tem-se a cultura de confundir autor com personagem, autor com eu-lírico (não me refiro à autoficção, mas à confusão de ideias mesmo); a cultura de envolver pessoalidades para além de um circuito saudável. Muitos leem a primeira linha e já julgam a obra inteira. Falta apreciação, percepção, apuro, respeito, desprendimento. Se o escritor se apega à crítica em demasiado, tende a sucumbir.


Que significa para sua obra o lançamento de “O Trem Vermelho que Partiu das Cinzas” e de “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos” e em que caminhos acredita estar se desviando para seus próximos trabalhos?

“O Trem Vermelho” é meu primeiro livro. Tenho orgulho dele: uma plaquete charmosa, de preço acessível, com capa de Juraci Dórea, publicada pela Pedra Palavra, organizada por Iolanda Costa (luxo só). Marca um momento de transição. Antes do ano passado, havia publicado em revistas literárias, sites, blogs e algumas coletâneas. Com “O Trem”, passo a me experimentar na página, nas mãos do leitor com algo que é só meu. Para um escritor iniciante, esse é um dos maiores encantos da vida literária. “Na Pata do Cavalo”, apesar de ter sido composto meio no susto, não deixa de ser um trabalho mais maduro e, enquanto esquina de uma trajetória, mais pensado. Eu mudaria pouca coisa. Considero-o um livro bem delineado, cheio de imagens que me comovem. Outra alegria, é ser traduzida para outros idiomas. “Na Pata do Cavalo” já está traduzido para o espanhol em duas versões diferentes, e outras traduções estão acontecendo. Como as publicações são bem recentes (2014), tudo ainda está muito incerto. Mas, como escrevo e escrevo e escrevo, tenho notado que as composições de agora destoam em alguns aspectos de poemas anteriores; estão mais carnais, experimentando(se) mais os desvios da linguagem. Ainda não me livrei dos cavalos, mas o trote que ora se oferece é de outra ordem. As imagens também têm variado. As preocupações são outras. Eu sou outra. As leituras vão se ampliando. Não sei muito bem o que fazer com a minha poesia. Mas respeito o nascimento de cada verso. Dou-lhes tempo de se impor ou de morrer, e sigo acreditando na eficácia da palavra, em seu caráter atemporal e cosmogónico. E a cada evento de que participo, fôlego novo surge em mim. Viajar pelo Brasil e pra fora dele falando de literatura é uma grande realização.

Existe algum livro de poesia mais ou menos recente que você acredita ter apresentado uma solução interessante para a literatura e, no entanto, não recebeu suficiente reconhecimento?

A maior solução é a provocação. E a literatura, de modo geral, não recebe reconhecimento suficiente de parte alguma. Há publicações recentes que são instigantes, possuem uma identidade, algo que incita o leitor. Vou destacar dois autores que têm mexido com meus paradigmas mais pelo conjunto do que por uma publicação específica: Rita Santana e Douglas Diegues. Rita me lembra Chico Buarque. Não pelo estilo, mas pela maneira única de condensar o mundo a partir de um tema inicial; costurando signos, paisagens, emoções através do universo feminino, por exemplo. Quando leio um poema como “Outono” (os três primeiros versos:“Venho de umidades, mofos e orgias, / Labuto com demônios e demências. / Cansei-me de ser.”é a música de Chico que me cobre os ouvidos. Mas não só. Há outros sonidos nessa experiência, aqueles, inaugurais, que só um lirismo bem posto e contornado como o de Rita sabe assobiar. Não há nada pronto, não há maquiagem. A poética dela me vem de cara limpa. Diegues rompe, amalgama, constrói. Mesclando diferentes idiomas num único poema, é por meio desses cruzamentos linguísticos que a poesia se reveste e brinca, evocando outras obras, subvertendo, “jugueteando” com o íntimo da palavra, com as possibilidades de um mesmo sentido, com perplexas sonoridades. Quem sabe disso? Quem se importa?

Vê a crítica social como um dos papéis da literatura?

Umberto Eco assinalou que a literatura “mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo”, e, “contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade”. Essas seriam maneiras de enxergar um papel da literatura no âmbito social. Em se tratando de crítica, a literatura o é por suas inerentes feições. Mesmo no mais deslavado poema de amor romântico a crítica está ali. Por essa razão, a literatura não ocupa as tribunas da mídia, mas habita a rua, inventa um bairro real para contar. Não se pode suportar a crítica presente na literatura. É uma crítica indócil, que opera pela via do mágico e do denso. Como socializar as demandas do espírito? Livros como “A Revolução dos Bichos” apontam direções. Sem qualquer panfletarismo, o bestiário potente de Orwell marca uma denúncia, uma relação opressor/oprimido que tanto foi pertinente na época em que foi lançado quanto é hoje. Ainda: como não enxergar criticidade nos escritos de Carolina de Jesus? Mesmo falando de um cotidiano inteiramente seu, Carolina expôs a situação de várias pessoas; a situação da mulher negra e pobre; duma mulher que não quis se casar pela paixão em escrever, que a cada novo dia vivia a aventura dramática e violenta de conseguir sustentar-se. Como não perceber entrelinhas e explorar significados? A literatura não é ingênua, nem alienada. A literatura vai do doméstico ao globo numa só arrancada, até porque tais instâncias, justamente por andarem tão juntas, são, simultaneamente, um todo de disjunção. A literatura, essa clínica, como apontou Deleuze, sabe disso.

O sonho é um elemento presente em sua literatura? Utiliza de seus próprios sonhos quando escreve? Qual a ponte que o liga à literatura?

Quem contar / Um sonho que sonhou / Não conta tudo o que encontrou / Contar um sonho é proibido”, Madredeus. Sim. O sonho de sonhar todo um mundo em que não há desconcerto entre mim e o meio, principalmente. Nos contos os sonhos estão mais presentes enquanto forma de transcriação do que na poesia. Vários deles foram passados ao papel, nus e crus. Creio que o elo que ata literatura e sonho é o fato de que tanto em um quanto no outro as associações são feitas por rizoma, são não lineares, são imprecisas e sedutoras, plenas de definição. O sonho é livre, sem comedimento. Nós voamos no sonho, assim como fantasiamos o voo quando escrevemos, quando lemos. As sensações oníricas são vividas pelo corpo. Assim como no texto. A reação corporal durante a leitura e a escrita textual acompanha o ritmo das palavras. Autor e leitor performatizam e utilizam o corpo como zona de arremesso e gozo, de asco e desejo, de angústia e amor. Os olhos deslizam pelas páginas, a alma e o intelecto desnudam os sentidos, o coração pulsa os agrupamentos retóricos, imagéticos, e todo o resto, cabelos, nariz, joelhos, tetas, mãos, toda a sorte de desesperos, sente, freme, inunda-se e lança longe a escrita, o devir, o próprio sonho como forma elementar de vida.

Escreve para também procurar sua identidade? Ou não para buscar, mas afirmá-la?

Vivo me encontrando para desencontrar e me encontrar outra vez na escrita. Tenho princípios. A minha multiplicidade é meu único registro. Eu, criatura singular e faminta, sou muitas. Sou Eu e outras poesias. Antes de monologar até o nada, permita-me um excerto de Cecília:


“[...]
E me vejo somente
pequena sombra
sem tempo e nome,

nisto perdida,
– nisto que se buscara
pelas estrelas,

com febre e lágrimas,

e que era a vida”.

O silêncio pode dizer mais do que as palavras?

De maneira diversa das palavras... O silêncio diz o tempo todo. Dizer é importante, porque até o silêncio fala e nesse processo de discursar é que o silêncio parece ganhar maior vigor. A gente não para de dizer. Diz a toda hora as coisas mais lindas e mais horrendas. Conversa consigo mesmo e com o cosmos, com Deus e os homens, com as flores e os cavalos. E todos eles, cada um à sua linguagem, não cessa de falar, com palavras, com o calar, com poemas. Os olhos cantam ao corpo as cores. E no silêncio de contemplá-las, na incapacidade de dizê-las todas, é que a cor se transfigura, suicida-se e nasce de novo. Toda vez que a gente fala, remete ao silêncio, porque um namora o outro freneticamente. Falar de falar é, em certo aspecto, falar de calar. Orides Fontela elaborou um poema/jogo sobre dizer/silenciar:

FALA


Tudo

será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)


Cresceu numa casa habitada pela poesia e pelos livros?

Pelos livros, sim (estavam na estante e logo passaram ao meu coração. Os primeiros, pelas mãos fibrosas de minha mãe). Pela poesia, não.

É uma peculiaridade ou há o cuidado de publicar somente o que julga melhor, com vistas a um padrão uniforme de qualidade?

O cuidado faz parte do ofício. Criar, experimentar, trabalhar e trabalhar. Nesse sentido, sou uma discípula cabralina. O poema nasce do instinto e do flerte, mas é no suor que ele vibra e permanece.

Sua voz poética vigorosa, de corte denso, vem da experiência concreta da vida não apenas experimentada, fruto de muita reflexão? São sempre necessários para o poeta essa vivência e esse entendimento da tragicomédia humana, ora estarrecedora, ora sublime, como fornecedores do instrumental temático?

Sem dúvida. Um poeta é feito de leituras-vivências. Tive/tenho uma vida de emboscadas, apertos, violências e prazer. Tudo foi e é muito forte na minha vida – de rasteiras. Essas coisas me compuseram intensa, hedonista e reflexiva, tangencialmente reflexiva. Penso muito sobre o que acontece, e isso deságua na minha poesia. Ao conversar com outros poetas e ler biografias variadas de artistas, constato que todos tiveram uma vida marcadamente pungente. A vida por si só é pungente. Não exalto o sofrimento como material exclusivo da poesia. Esta vem de todas as maneiras. Minha profissão de fé crê na intensidade e, sobretudo, na coragem de se assumir; é daí que provém o literário genuíno. É necessário ter ânimo e saber estancar o corte.

Qual a sua receita de resistência literária?

O GESTO DA CRIAÇÃO

Na trama das melodias que calam
dos versos que fogem no bando
crava-se a flecha de um sintoma.

Ao romper signos, penetrar espantos,
longe de escrever as núpcias,
engasgo num rio de dúvidas
e pereço... só a palavra é cúmplice
do que enlouqueço.

Cite alguns poetas baianos vivos que admira e os defina em poucas palavras.

Ruy Espinheira Filho, Antonio Brasileiro, Sandro Ornellas, João Vanderlei de Moraes Filho, Martha Galrão, Ângela Vilma, Lívia Natália, Florisvaldo Mattos, Iderval Miranda, Alex Simões... ufa! Outros tantos que inda nem publicaram. A poesia baiana é de forte traçado. Ruy é um mestre do sublime e do acabamento. Poucos poetas me tocam tanto. Brasileiro me arrebata pelo apelo filosófico, pelo ineditismo de seus arranjos. Poesia de alto calibre. Sandro compôs um dos melhores poemas contemporâneos que já li. Antenado ao que lhe rodeia, consegue unir o deslumbre da linguagem cotidiana e de outros mecanismos ao lirismo. Poucos o fazem. João, um cantor de uma Cachoeira universal; ordenha o canto dos pássaros e o espelho de mil águas. Martha é uma musa, rítmica e aquática. Possui uma verve toda sua, alinhada com inovações na construção de cada imagem. Lívia me seduz, inflama e me faz navegar com suas peças líricas de notável relevo. Florisvaldo é um mago da poesia. Quantas vezes tive de voltar a vários de seus poemas por não crer estar diante de tamanha beleza e apuro verbal... Iderval Miranda me pega porque sabe dizer muito em tão pouco. A síntese poética de força lírica nele chega a um cume. Alex Simões exerce uma poética completamente distinta da minha poética de formação, mas é de uma personalidade irresistível. Fui excessivamente profana nessas colocações, mas tinha de ser rápida. Sou feliz porque abraço tudo o que posso.

Se houvesse um rei/rainha da poesia brasileira. Quem seria ele (ou ela) e qual o poema o/a definiria?

Ai, que terror responder isso. Serei óbvia em mim mesma (e é preciso audácia para sê-lo). Drummond com sua “Máquina do Mundo”. Assim certa, assim rápida! A minha face coroaria ainda Cecília, Hilda, Marize, Carolina, Henriqueta, Francisca...



POEMAS DE CLARISSA MACEDO

ARROIO

Uma madeira seca
apunhala meu peito
Desaba como tronco
em selva vermelha.

Em meio a paus e pedras,
não é o peso do pó de serra
engessado pela lágrima do vento,
nem a serrania desengonçada
que abre e fecha
no tempo de matar e morrer
que me devastam.

São os preços da existência
que me maceram –
vergalhões de trinta marteladas
na serraria ardente de minhas veias.

(poema inédito)

TEOREMA

A vida é uma mulher estéril
nomeando os filhos
que nunca poderá ter.

FÁBULA

No teu aprisco imenso
sempre houve uma ovelha
pequena, cinzenta, desajeitada

aquela que frente ao cajado,
ao latido do cão também imenso,
fugia e não se guiava

aquela que diante do espelho d’água
não cria na imagem que se revelava
nem na eternidade de que ouvia

aquela que nua, de lã cortada,
sussurrava cantos às irmãs.

Uma ovelha, tal qual tantos bodes.


O GESTO DA CRIAÇÃO

Na trama das melodias que calam
dos versos que fogem no bando
crava-se a flecha de um sintoma.

Ao romper signos, penetrar espantos,
longe de escrever as núpcias,
engasgo num rio de dúvidas
e pereço... só a palavra é cúmplice
do que enlouqueço.

CONCERTO PARA CAVALOS

Despidos de crinas que não se reconhecem
Cravados de marcas de ferro
Fugidos pela palha que nega o que desejam
Mortos pelas pirâmides que migraram
Surdos pela sinfonia que não se nomeia
Loucos de manadas de dragões que cospem estrelas
Vivos pelas correntes que berram astros
... assim são os cavalos do concerto de meu coração
crianças que preparam o primeiro verso,
feras que não se sujeitam.

(In: Na Pata do Cavalo há Sete Abismos)


clarissa macedo

24 comentários:

Amosse Mucavele disse...

Além de escrever bem é linda

Lucia Veras disse...


As vezes me sinto assim natureza morta quando me batem a porta e eu nao posso ajudar

Gláucia Lemos disse...

Muito boa a entrevista. O dizer de Clarissa é refletido e seguro, ela é uma poeta que vive o seu tempo sem hesitação.

Dudu Galisa disse...

Poesia enxuta.

Carvalho Junior disse...

Nas mãos de Clarissa há sete infinitos de encantos poéticos!

Heitor Brasileiro disse...

Parabéns à Clarissa, bela produção. Também ao Nahud. Este diálogo resultou numa boa entrevista.

Maria Vilani Madeiro disse...

Poesia cura.

Maria Anita Barrios Motta disse...

Bela...

Diva Nina disse...

Menino, a pintura de Suzanne Valandon é de uma delicadeza... Vc me surpreende.

Izabel T. da Rosa disse...

lindas as flores e lindo, belíssimo texto. Por favor, poesia!

Mário Lúcio Ferreira Ferreira disse...

Belas flores e linda poesia amigo!!! Abraços...

Cristina Lebre disse...

Magnífico blog, poesia, pinturas, parece Van Gogh, muito lindo, parabéns,

Cielo Subiza disse...

Maravillosas las flores y el texto !!!

Nara Mendes disse...

Duas Feras Da Poesia Nordestina...

Gabriel Rosa disse...

Menino esperto e inteligente!! Parabéns!! Abraços

Vladimir Queiroz disse...

Parabéns Clarissa Macedo. Bela trajetória!

Rita Fava disse...

Interessante: "O sublime é o cotidiano transfigurado pela matéria da palavra".

Clarissa Macedo disse...

Bela escolha de imagens!

Rita Santana disse...

Profundamente feliz com a profundidade intelectual que Clarissa manifesta nessa entrevista. É uma escritora comprometida com a Literatura e com o seu fazer poético e atenta aos seus contemporâneos. Belíssima entrevista! Belíssima entrevista!Parabéns, Antônio! Parabéns, Clarissa amada!

RITA SANTANA disse...

Clarissa Macedo mostra-se uma intelectual madura e completamente imersa no universo literário, durante essa entrevista concedida ao escritor Antonio Nahud. Além da sua verve acadêmica de pesquisadora atenta, demonstra sensibilidade, sapiência e agudez de análise dos seus contemporâneos e dos canônicos. Sinto-me feliz, após a leitura dessa conversa, e cheia de reflexões em torno desse nosso ofício de escrever! Uma Poeta comprometida, talentosa e uma Intelecutal competente, arguta e com muitas experiências vivenciadas de leitura. É dessa forma que saio dessa aprendizagem! Vejo em Clarissa uma importante intelectual, pensadora e estudiosa desse universo da escrita em que transitamos! Uma escritora! É o que se revela luminosamente aqui! Bravo, Clarissa! Bravo, Clarissa!

Rita Santana disse...

Parabéns, meu amado! O visual também está belíssimo, e suas perguntas são desejáveis por qualquer um de nós! Há uma inteligência respeitosa e precisa em torno dessa conversa tão elegante, tão necessária! Amo Clarissa Macedo, mas silenciaria se não houvesse tanta força, tanta perspicácia, tanto brilho no que vocês dois construíram! Estou realmente com a alma alimentada, orgulhosa dessa bela jovem que eu tenho como amiga, como uma pessoa querida! Você, dessa forma, colabora para a divulgação de uma intelecutal muito jovem que crescerá e sempre nos surpeendeerá porque ela tem sede e corre atrás da fonte! beijos, Camaradas!

Clarissa Macedo disse...

Ritinha, você me emociona muito. Sinto-me recompensada por muita coisa ao ler as suas palavras. Sobretudo porque, além de amiga, você é uma leitora que não se furta à minúcia, à dobra, ao escorregadio. Que diálogo bacana! Estou muito feliz. Nahud foi nos pontos certos e eu vibrei. Foi uma experiência de alimento mesmo. Abraços aos dois Emoticon heart

José Salgado Maranhão disse...

Uma das mais talentosas poetas da sua geração. Fiquem de olho!

Iolanda Costa disse...

Gostei muito da entrevista, queridos! As inquietações em torno do fazer poético serão sempre discutidas e dissolvidas nas palavras. Importa a forma, importa o enunciado elegante, a imensidão do verso. Há limites, sim, para essa modernidade toda. Confessionais ou em práxis, escrevendo o amor ou a morte, o negro ou a flor, a mulher ou a nuvem, façamos com elegância e novidade. Clarissa Macedo: um nome, uma referência, uma boa poeta. Que bom!