ANTONIO
NAHUD
entrevista CLARISSA MACEDO
Ilustrações:
Ilustrações:
SUZANNE VALANDON
Licenciada em Letras Vernáculas, mestre em Literatura e
Diversidade Cultural e doutoranda em Literatura e Cultura, a poeta CLARISSA
MACEDO (Salvador, Bahia) é também revisora e professora de escrita criativa. Está
presente em diversas coletâneas. Autora de “O Trem Vermelho que Partiu das Cinzas”
e “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos” (Prêmio Nacional da Academia de Letras
da Bahia), ambos de 2014. Publica, regularmente, tanto em meios eletrônicos
como impressos. Sua poesia está traduzida para o espanhol. Desenvolve projetos
culturais. Participa de eventos literários Brasil afora. Edita o blog Essa Coisa que É o Eu: http://clarissammacedo.blogspot.com.br/. Confira a entrevista:
Pode
nos contar sobre o seu trajeto inicial como poeta? Como se deu esse encontro
com a literatura?
Nahud,
minha história em nada é extraordinária. Não nasci num ambiente artístico, embora
tenha tido livros à mão; não sou genial, fui/estou aprendendo conforme o tempo
passa. Mas tenho a impressão de que meu trajeto, de alguma maneira, “é” sempre.
Os primeiros olhares de que me recordo já se constituíam poesia. Posso dizer
que meu encontro com o texto literário escrito partiu de histórias infantis,
depois de clássicos, passando pela leitura de mundo – desencontrada, sinuosa –
histórias em quadrinho, roteiros de cinema, músicas que me chamavam pro verso.
Meus primeiros mestres foram Machado, Pessoa e Drummond. Ao mesmo tempo em que
lia, escrevia e dedilhava mais e mais a estante de casa. Nesse percurso, a
decisão de cursar letras foi espontânea, decisiva. Tudo foi se dando de modo
muito instintivo. No entanto, só aceitei a literatura como trabalho e postura de
vida, conscientemente, há pouco tempo. Eu tinha (ainda tenho) medo. É uma baita
responsabilidade ser chamada de poeta. Mas é isso que sou na vida. Minhas
decisões perpassam pelo crivo lírico. E uma de minhas maiores angústias é não
poder me dedicar exclusivamente a essa vocação.
Quais
são suas referências literárias? Os autores que realmente fizeram a sua cabeça
e que, de certa forma, influenciaram em sua produção.
Drummond
é o principal. Acima de tudo e todos. Minhas leituras são confusas, imbricadas.
Tenho o hábito de ler 10, 20 livros ao mesmo tempo; poesia, diariamente (“escapulário: No Pão de Açúcar / De
Cada Dia / Dai-nos
Senhor / A
Poesia De
Cada Dia”,
Oswald de Andrade). Posso citar uma longa lista... sempre faltará um nome, um
verso, um livro. Mas, sendo eu inacabada e promíscua, impossível não mencionar
Cecília, Bandeira, Ungaretti, Augusto dos Anjos, William Carlos Williams, e. e.
cummings, Zé Ramalho, Elomar, Juraci Dórea, Gullar, Salgado Maranhão, Quintana,
Joyce, García Márquez, Fitzgerald, Kafka... mais recentemente Angélica Freitas,
Verónica Aranda e Helena Kolody. Além de todos os poetas fantásticos com os
quais convivo virtualmente, como a Nydia Bonetti e o Nathan Sousa. Cada leitura
que fiz/faço deles é um sopro novo, uma descoberta, uma epifania. Sinto como se
apanhasse um trem na gare do infinito e trilhasse longe. O que posso dizer?
Ler, reler, tresler é fundamental para qualquer um, para qualquer escriba.
Falando,
então, desses autores que adoramos, como poetas muito distintos de você influem
no que escreve?
Interessante.
O jogo de/da alteridade é necessário. Creio que escritas distintas das que eu
pratico influenciam de modo ramificado, subversivo. Tudo influencia a escrita.
Se não for inspiração na tessitura, pode ir pelo caminho do não fazer. Há
certos excessos de experimentalismos com os quais não me identifico, que não
suscitam nada em mim. Mas é importante, também para mim, que existam. Afinal,
só percebo o que sou ao intuir o outro.
Como observa
a experiência cotidiana na poesia contemporânea?
Enquanto
tema e aproximação estética a experiência do dia a dia pode ter resultados
adoráveis, como os que vemos em Bandeira, com um lirismo cotidiano de grande
força. Tanto a poesia tida como rebuscada quanto a de envergadura mais
simplista são, em variados graus, do cotidiano, despertadas pelo acontecimento
mais trivial. O sublime é o cotidiano transfigurado pela matéria da palavra. O
Modernismo, saturado por escolas anteriores, privilegia o elemento do diário
como o mote lírico por excelência, abrindo a poesia para o caseiro, retirando-a
de uma aura mais formal. Isso é maravilhoso. A poesia contemporânea se aproxima
muitíssimo da moderna, como uma espécie de continuação. O perigo, sempre, é
cair numa falta de zelo com o verbo, retirar o verso do que pode ser chamado de
poesia a pretexto de retratar o cotidiano, como se este fosse simplório,
descuidado. Isso, porém, não tem que ver com o cotidiano, mas com uma postura
equivocada acerca do que seja literatura – a arte da linguagem, é necessário
mencionar.
Como lida
com a impossibilidade de nomear certas coisas e experiências, a iminência da
linguagem?
É uma
mescla de consciência e frustração. Há coisas que só a poesia pode falar ou que
só ela pode falar da maneira certa. Mas há coisas que ainda não alcancei;
coisas que só à poesia do silêncio cabem.
Atualmente,
qual indagação literária a assombra?
Essa
pergunta me chega como um presente, uma oportunidade de me abrir, de dizer
coisas sobre as quais ando pensando muito. Uma delas a de que me questiono se
vale a pena expor a minha literatura, que é uma maneira enviesada de mostrar a
mim mesma. Será que alguém quer me ler, escutar de verdade? Ao participar de
eventos, tenho a impressão de que o público se atrai mais por tônicas eróticas,
que despertem humor ou que sejam predominantemente performativas. Todo texto é
performance, mas encenar o texto, às vezes matando o ritmo, é outra demanda.
Fico me questionando se o leitor está interessado, de fato, na literatura. Que
poesia é essa a da contemporaneidade? Leio coisas insossas que são aclamadas e
me pergunto se a proposta da modernidade, as vanguardas não foram mal
interpretadas. Não sei quais são os limites do artístico, mas eles existem. A
linguagem muda, e deve mesmo mudar. Os anseios são outros – apesar de temas
universais. Há coisas que me soam anacrônicas, desnecessárias. Outras, não
comunicam, não tocam, por terem apenas um frescor de novidade. Daí me pergunto:
o conceito em detrimento da expressividade vale até que ponto? É necessário
termos em mente, a despeito de quaisquer teorias, que a literatura demanda
apelo estético, é forma. O tema não é o primordial, porque, e isso é
pleonasticamente básico, o que diferencia o literário de outras formas de
comunicação é sua relevância estética, seu modo de funcionamento. Parece,
todavia, que alguns artistas da palavra se esquecem disso, e usam a liberdade estabelecida
no Modernismo como desculpa para não cuidar do texto, desculpa algumas vezes para
a falta mesmo de aptidão.
Prosa
e verso caminhem lado a lado?
Caminham
por vias entrecruzadas, de ladrilho, que ora se bifurcam, ora dividem a mesma
calçada. Às vezes, a poesia sobe a ladeira enquanto a prosa entra num túnel.
Assim vão. Kafka é o meu poeta do absurdo. A poesia pode estar em tudo, assim
como a vida é inteiramente narrativa. Separá-las enquanto gênero e com
características distintas, como de fato possuem, não significa imaginar que não
se comunicam. Quanto mais aprofundamos nossa concepção sobre cada gênero, vemos
como peregrinam em diálogo.
Como
foi o processo de criação do seu livro mais recente, “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos”?
“Às
vezes, subitamente, a poesia te visita. / Pura. / Infinitamente pura. / Como
uma rosa. / Melhor ainda: / como a ideia de rosa. ”, Emílio Moura. Foi
engraçado. Lendo o livro, percebo que, conscientemente, não nasceu como um
livro. Fui compondo os textos como sempre: tomada por uma sensação mágica
seguida por árduo trabalho. Na semana em que o livro ficou pronto, havia 14
poemas que já havia separado para outros projetos, coisas esparsas. “Na Pata do
Cavalo há Sete Abismos” só tomou forma quando, numa jornada de uma única noite
escrevi 36 poemas, dos quais usei 34. Ao longo de dois dias, elaborei mais
dois, chegando à soma final de 50 poemas. Os cavalos compõem uma figuração que
circunda meu imaginário faz tempo, de modo que ditaram o andamento de todo o livro.
A ideia do conjunto, a ordem dos poemas, só tomou forma definitiva por conta do
prêmio. Na última semana, ou melhor, no último dia de envio, organizei tudo.
Estava pensando em outra formação, que aproveitarei futuramente, mas com outras
coisas. Os cavalos galoparam forte e se impuseram de maneira definitiva.
Por
que há sete abismos na pata do cavalo?
Todo
mundo me pergunta isso. Ao mesmo tempo em que tenho claro em mim o porquê, tudo
é muito misterioso. Esse título veio num estalo, num sonho que tive sem dormir.
Acho que os sete abismos se consumam na união da alegoria espiritual,
cabalística, encarnada neste numeral, à simbologia do cavalo: animal de
montaria, robusto e dócil, resistente, sensual. Nas patas que trotam no universo
de minha poesia, os cavalos voam libertos de qualquer arreio e montaria, recebendo
a revelação divina, tateando a finitude, a realidade da vida – matéria
reluzente, mas também licencioso palco para a letargia da morte. Em cada abismo
apocalíptico, a doçura e força de um cavalo que voa, que sonha. Isso só
compreendi depois. Na hora de intitular, senti a sonoridade, o enigma do verso.
A arquitetura do pensamento se deu posteriormente. Não sei dizer de outra
forma. Nessa contemporaneidade, talvez eu soe obsoleta.
Quais
são as maiores dificuldades durante o processo criativo?
“Todo autor deveria escrever seus livros como se
fosse ser decapitado no dia em que o terminasse.”, F. Scott Fitzgerald. Creio
que o mais difícil não seja o processo, mas o entorno para que esse processo
possa surgir. A dificuldade está em poder me dedicar também a leituras não
acadêmicas, ao silêncio que me é caro para criar, transcender, a trabalhar mais
o texto do que os ofícios do sustento. Penso que este é um drama vivido pela
maior parte dos escritores. O transe que ronda a decapitação de que fala
Fitzgerald, requer entrega. Esta requer tempo, e é aí onde reside minha maior
problemática.
Um
trecho de um livro que faça parte de sua vida e de seu relacionamento com a
literatura.
“E
assim é que, se pensarmos bem, a literatura viverá enquanto aquele que se
dispuser a escrever uma simples carta hesite por alguns instantes sobre o modo
de tornar verossímil o que nela pretende dizer. E, no pior dos casos, mesmo
supondo que as pessoas deixem de escrever cartas, a literatura não morrerá
enquanto os poetas, além de escrever, souberem ler. Ou seja, senhoras e
senhores: os poetas não morrerão, precisamente porque não morrem.”, Enrique
Vila-Matas.
Segundo
a teoria norte-americana New Sincerity,
nas últimas décadas parte da literatura e das demais artes desiste das
tendências pós-modernas de relações irônicas ou céticas com a tradição para
simplesmente se expressar de forma sincera. Você se identifica com essa novidade
frente à tradição?
“O
poeta busca o verso mágico – aquele cujo sentido seja a ele mesmo misterioso”,
Paul Valéry. Enquanto pensadora, até certa medida, sim, pois há, e deve haver,
espaço para distintas manifestações. Enquanto escritora, não. A verdade existe?
A verossimilhança, nomenclatura eleita pela crítica como solução para o drama
do real e do verdadeiro, necessita do jogo com o fingimento. E a sinceridade só
vale até o patamar em que não prejudica o estético. Buscar a verdade a goles
secos pode render numa não-literatura (e não defendo aqui um sentido
inalcançável, grandioso demais para ser apreendido. Mas, como a arte opera por
signos não imediatamente referenciáveis, vale o deslize, a dobra e, por que
não, a dúvida). Correntes literárias, como a Language, grosso modo,
privilegiaram o deslocamento sintático, no intuito de retratar o que o poeta
queria dizer. Há resultados interessantes, ondeados rítmicos e grandes poemas.
Mas nessa construção, acima dos projetos conceituais tutelando essas escritas, não
existe uma inversão de sentido? Enquanto a literatura existir, a verdade nunca
será estanque.
Quando
lembrei a um poeta potiguar sobre a liberdade de se escrever hoje, ele mencionou
ilusões, já que faz mais sentido tratar de temas antigos como, por exemplo,
culpa religiosa. Concorda?
Não
posso dizer que sei o que faz mais sentido ou não. Toda arte é política e
espiritual. O mundo muda. Lírico-politicamente, discursos como o feminino, o
homoafetivo e o étnico, por exemplo, têm se mostrado mais, têm sido mais lidos,
discutidos. Essa é uma configuração marcadamente contemporânea, reflexo da
década de 1960, dentre outras coisas. Outro caminho, que não exclui o citado
acima, marca o seguinte apelo: quem nunca se perguntou de onde veio e para onde
vai e ao fazê-lo por alguns instantes sentiu um frio na barriga? O que quero
dizer é que há inquietações que atravessam qualquer tempo, o que costumamos
chamar de temas universais, independentemente do lugar de fala, com variações
produtivas em cada cartografia geográfico-humana pela qual perpassa. Parece-me
que a liberdade maior está na forma. Afinal, temas que ainda configuram um
tabu, como o erótico, o corpo, vêm sendo poetizados desde os antigos. A propósito
do corpo, ocorre-me estes versos de Eduardo Galeano, falecido recentemente: “A
igreja afirma: O corpo é uma culpa. / A ciência afirma: O corpo é uma máquina.
/ A publicidade afirma: O corpo é um negócio. / O corpo confirma: Sou uma
festa.”. Em suma, o mundo é outro, com outras angústias, e por isso com
distintas nuances para serem poetizadas; todavia, questões como o amor, o tempo
e a morte, mesmo com diferenças profundas de uma época para outra, parecem ser
inesgotáveis. Pensemos, assim, na liberdade também pela via de um tratamento de
tema, e não somente na temática propriamente dita.
Quais
são os principais desafios e oportunidades de se escrever hoje? Não me refiro a
condições comerciais, mas históricas — escrever após Clarice Lispector,
Ferreira Gullar e, mais recentemente, Milton Hatoum.
Enquanto
mulher, tenho maior liberdade para tal. A fogueira na qual venho sendo queimada
é simbólica. As chamas ainda doem, mas ao menos não me punem irremediavelmente.
Para além dessa questão, posso transitar com mais facilidade, conviver com
colegas de ofício que moram longe etc. Não falando de mercado, escrever após
Clarice, por exemplo, é um duplo desafio: primeiro, o de pensar “o que escrever
após isso?”, parece que não sobra nada; depois, um gozo sombrio, em poder se
nutrir de diletantes e conexas leituras que, se bem apreendidas, podem
preencher espaços oníricos que se lançam no ato de escrever. Partindo de um
lugar contemporâneo, escrever após Clarice é trazê-la para perto, bem perto, e
depois transpassá-la.
Como
é escrever sabendo que será julgado por uma cultura que nem mesmo conhece
alguns dos poetas fundamentais com os quais seu trabalho pode se relacionar?
É um
saco. Penso no leitor na hora de publicar o texto. Crítica, só me importa
aquela que for construtiva, embasada. Tem-se a cultura de confundir autor com
personagem, autor com eu-lírico (não me refiro à autoficção, mas à confusão de
ideias mesmo); a cultura de envolver pessoalidades para além de um circuito
saudável. Muitos leem a primeira linha e já julgam a obra inteira. Falta apreciação,
percepção, apuro, respeito, desprendimento. Se o escritor se apega à crítica em
demasiado, tende a sucumbir.
Que
significa para sua obra o lançamento de “O Trem Vermelho que Partiu das Cinzas”
e de “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos” e em que caminhos acredita estar se
desviando para seus próximos trabalhos?
“O
Trem Vermelho” é meu primeiro livro. Tenho orgulho dele: uma plaquete charmosa,
de preço acessível, com capa de Juraci Dórea, publicada pela Pedra Palavra,
organizada por Iolanda Costa (luxo só). Marca um momento de transição. Antes do
ano passado, havia publicado em revistas literárias, sites, blogs e algumas
coletâneas. Com “O Trem”, passo a me
experimentar na página, nas mãos do leitor com algo que é só meu. Para um
escritor iniciante, esse é um dos maiores encantos da vida literária. “Na Pata
do Cavalo”, apesar de ter sido composto meio no susto, não deixa de ser um
trabalho mais maduro e, enquanto esquina de uma trajetória, mais pensado. Eu
mudaria pouca coisa. Considero-o um livro bem delineado, cheio de imagens que
me comovem. Outra alegria, é ser traduzida para outros idiomas. “Na Pata do
Cavalo” já está traduzido para o espanhol em duas versões diferentes, e outras
traduções estão acontecendo. Como as publicações são bem recentes (2014), tudo
ainda está muito incerto. Mas, como escrevo e escrevo e escrevo, tenho notado que
as composições de agora destoam em alguns aspectos de poemas anteriores; estão
mais carnais, experimentando(se) mais os desvios da linguagem. Ainda não me
livrei dos cavalos, mas o trote que ora se oferece é de outra ordem. As imagens
também têm variado. As preocupações são outras. Eu sou outra. As leituras vão
se ampliando. Não sei muito bem o que fazer com a minha poesia. Mas respeito o
nascimento de cada verso. Dou-lhes tempo de se impor ou de morrer, e sigo
acreditando na eficácia da palavra, em seu caráter atemporal e cosmogónico. E a
cada evento de que participo, fôlego novo surge em mim. Viajar pelo Brasil e
pra fora dele falando de literatura é uma grande realização.
Existe
algum livro de poesia mais ou menos recente que você acredita ter apresentado
uma solução interessante para a literatura e, no entanto, não recebeu
suficiente reconhecimento?
A
maior solução é a provocação. E a literatura, de modo geral, não recebe
reconhecimento suficiente de parte alguma. Há publicações recentes que são instigantes,
possuem uma identidade, algo que incita o leitor. Vou destacar dois autores que
têm mexido com meus paradigmas mais pelo conjunto do que por uma publicação
específica: Rita Santana e Douglas Diegues. Rita me lembra Chico Buarque. Não
pelo estilo, mas pela maneira única de condensar o mundo a partir de um tema
inicial; costurando signos, paisagens, emoções através do universo feminino,
por exemplo. Quando leio um poema como “Outono” (os três primeiros versos:“Venho
de umidades, mofos e orgias, / Labuto com demônios e demências. / Cansei-me de
ser.”) é a música de Chico que me cobre os
ouvidos. Mas não só. Há
outros sonidos nessa experiência, aqueles, inaugurais, que só um lirismo bem
posto e contornado como o de Rita sabe assobiar. Não há nada pronto, não há
maquiagem. A poética dela me vem de cara limpa. Diegues rompe, amalgama,
constrói. Mesclando diferentes idiomas num único poema, é por meio desses
cruzamentos linguísticos que a poesia se reveste e brinca, evocando outras
obras, subvertendo, “jugueteando” com o íntimo da palavra, com as
possibilidades de um mesmo sentido, com perplexas sonoridades. Quem sabe disso?
Quem se importa?
Vê a crítica social como um dos papéis da
literatura?
Umberto
Eco assinalou que a literatura “mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio
coletivo”, e, “contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade”.
Essas seriam maneiras de enxergar um papel da literatura no âmbito social. Em
se tratando de crítica, a literatura o é por suas inerentes feições. Mesmo no
mais deslavado poema de amor romântico a crítica está ali. Por essa razão, a
literatura não ocupa as tribunas da mídia, mas habita a rua, inventa um bairro
real para contar. Não se pode suportar a crítica presente na literatura. É uma
crítica indócil, que opera pela via do mágico e do denso. Como socializar as
demandas do espírito? Livros como “A Revolução dos Bichos” apontam direções.
Sem qualquer panfletarismo, o bestiário potente de Orwell marca uma denúncia,
uma relação opressor/oprimido que tanto foi pertinente na época em que foi
lançado quanto é hoje. Ainda: como não enxergar criticidade nos escritos de
Carolina de Jesus? Mesmo falando de um cotidiano inteiramente seu, Carolina expôs
a situação de várias pessoas; a situação da mulher negra e pobre; duma mulher
que não quis se casar pela paixão em escrever, que a cada novo dia vivia a
aventura dramática e violenta de conseguir sustentar-se. Como não perceber
entrelinhas e explorar significados? A literatura não é ingênua, nem alienada.
A literatura vai do doméstico ao globo numa só arrancada, até porque tais
instâncias, justamente por andarem tão juntas, são, simultaneamente, um todo de
disjunção. A literatura, essa clínica, como apontou Deleuze, sabe disso.
O
sonho é um elemento presente em sua literatura? Utiliza de seus próprios sonhos
quando escreve? Qual a ponte que o liga à literatura?
“Quem
contar / Um sonho que sonhou / Não conta tudo o que encontrou / Contar um sonho
é proibido”, Madredeus. Sim.
O sonho de sonhar todo um mundo em que não há desconcerto entre mim e o meio,
principalmente. Nos contos os sonhos estão mais presentes enquanto forma de
transcriação do que na poesia. Vários deles foram passados ao papel, nus e
crus. Creio que o elo que ata literatura e sonho é o fato de que tanto em um
quanto no outro as associações são feitas por rizoma, são não lineares, são
imprecisas e sedutoras, plenas de definição. O sonho é livre, sem comedimento.
Nós voamos no sonho, assim como fantasiamos o voo quando escrevemos, quando
lemos. As sensações oníricas são vividas pelo corpo. Assim como no texto. A
reação corporal durante a leitura e a escrita textual acompanha o ritmo das
palavras. Autor e leitor performatizam e utilizam o corpo como zona de
arremesso e gozo, de asco e desejo, de angústia e amor. Os olhos deslizam pelas
páginas, a alma e o intelecto desnudam os sentidos, o coração pulsa os agrupamentos
retóricos, imagéticos, e todo o resto, cabelos, nariz, joelhos, tetas, mãos,
toda a sorte de desesperos, sente, freme, inunda-se e lança longe a escrita, o
devir, o próprio sonho como forma elementar de vida.
Escreve
para também procurar sua identidade? Ou não para buscar, mas afirmá-la?
Vivo
me encontrando para desencontrar e me encontrar outra vez na escrita. Tenho
princípios. A minha multiplicidade é meu único registro. Eu, criatura singular
e faminta, sou muitas. Sou Eu e outras
poesias. Antes de monologar até o nada, permita-me um excerto de Cecília:
“[...]
E me
vejo somente
pequena
sombra
sem
tempo e nome,
nisto
perdida,
–
nisto que se buscara
pelas estrelas,
com febre e lágrimas,
e que era a vida”.
O
silêncio pode dizer mais do que as palavras?
De
maneira diversa das palavras... O silêncio diz o tempo todo. Dizer é
importante, porque até o silêncio fala e nesse processo de discursar é que o
silêncio parece ganhar maior vigor. A gente não para de dizer. Diz a toda hora
as coisas mais lindas e mais horrendas. Conversa consigo mesmo e com o cosmos,
com Deus e os homens, com as flores e os cavalos. E todos eles, cada um à sua
linguagem, não cessa de falar, com palavras, com o calar, com poemas. Os olhos
cantam ao corpo as cores. E no silêncio de contemplá-las, na incapacidade de
dizê-las todas, é que a cor se transfigura, suicida-se e nasce de novo. Toda
vez que a gente fala, remete ao silêncio, porque um namora o outro
freneticamente. Falar de falar é, em certo aspecto, falar de calar. Orides Fontela elaborou um poema/jogo sobre
dizer/silenciar:
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
Cresceu
numa casa habitada pela poesia e pelos livros?
Pelos
livros, sim (estavam na estante e logo passaram ao meu coração. Os primeiros,
pelas mãos fibrosas de minha mãe). Pela poesia, não.
É uma
peculiaridade ou há o cuidado de publicar somente o que julga melhor, com
vistas a um padrão uniforme de qualidade?
O
cuidado faz parte do ofício. Criar, experimentar, trabalhar e trabalhar. Nesse
sentido, sou uma discípula cabralina. O poema nasce do instinto e do flerte,
mas é no suor que ele vibra e permanece.
Sua
voz poética vigorosa, de corte denso, vem da experiência concreta da vida não
apenas experimentada, fruto de muita reflexão? São sempre necessários para o
poeta essa vivência e esse entendimento da tragicomédia humana, ora
estarrecedora, ora sublime, como fornecedores do instrumental temático?
Sem
dúvida. Um poeta é feito de leituras-vivências. Tive/tenho uma vida de
emboscadas, apertos, violências e prazer. Tudo foi e é muito forte na minha
vida – de rasteiras. Essas coisas me compuseram intensa, hedonista e reflexiva,
tangencialmente reflexiva. Penso muito sobre o que acontece, e isso deságua na
minha poesia. Ao conversar com outros poetas e ler biografias variadas de
artistas, constato que todos tiveram uma vida marcadamente pungente. A vida por si só é pungente. Não
exalto o sofrimento como material exclusivo da poesia. Esta vem de todas as
maneiras. Minha profissão de fé crê na intensidade e, sobretudo, na coragem de
se assumir; é daí que provém o literário genuíno. É necessário ter ânimo e
saber estancar o corte.
Qual
a sua receita de resistência literária?
O GESTO DA CRIAÇÃO
Na trama das melodias que calam
dos versos que fogem no bando
crava-se a flecha de um sintoma.
Ao romper signos, penetrar espantos,
longe de escrever as núpcias,
engasgo num rio de dúvidas
e pereço... só a palavra é cúmplice
do que enlouqueço.
Cite
alguns poetas baianos vivos que admira e os defina em poucas palavras.
Ruy
Espinheira Filho, Antonio Brasileiro, Sandro Ornellas, João Vanderlei de Moraes
Filho, Martha Galrão, Ângela Vilma, Lívia Natália, Florisvaldo Mattos, Iderval
Miranda, Alex Simões... ufa! Outros tantos que inda nem publicaram. A poesia
baiana é de forte traçado. Ruy é um mestre do sublime e do acabamento. Poucos
poetas me tocam tanto. Brasileiro me arrebata pelo apelo filosófico, pelo
ineditismo de seus arranjos. Poesia de alto calibre. Sandro compôs um dos
melhores poemas contemporâneos que já li. Antenado ao que lhe rodeia, consegue
unir o deslumbre da linguagem cotidiana e de outros mecanismos ao lirismo.
Poucos o fazem. João, um cantor de uma Cachoeira universal; ordenha o canto dos
pássaros e o espelho de mil águas. Martha é uma musa, rítmica e aquática.
Possui uma verve toda sua, alinhada com inovações na construção de cada imagem.
Lívia me seduz, inflama e me faz navegar com suas peças líricas de notável
relevo. Florisvaldo é um mago da poesia. Quantas vezes tive de voltar a vários
de seus poemas por não crer estar diante de tamanha beleza e apuro verbal...
Iderval Miranda me pega porque sabe dizer muito em tão pouco. A síntese poética
de força lírica nele chega a um cume. Alex Simões exerce uma poética
completamente distinta da minha poética de formação, mas é de uma personalidade
irresistível. Fui excessivamente profana nessas colocações, mas tinha de ser
rápida. Sou feliz porque abraço tudo o que posso.
Se
houvesse um rei/rainha da poesia brasileira. Quem seria ele (ou ela) e qual o
poema o/a definiria?
Ai,
que terror responder isso. Serei óbvia em mim mesma (e é preciso audácia para
sê-lo). Drummond com sua “Máquina do Mundo”. Assim certa, assim rápida! A minha
face coroaria ainda Cecília, Hilda, Marize, Carolina, Henriqueta, Francisca...
POEMAS DE CLARISSA MACEDO
ARROIO
Uma madeira seca
apunhala meu peito
Desaba como tronco
em selva vermelha.
Em meio a paus e pedras,
não é o peso do pó de serra
engessado pela lágrima do vento,
nem a serrania desengonçada
que abre e fecha
no tempo de matar e morrer
que me devastam.
São os preços da existência
que me maceram –
vergalhões de trinta marteladas
na serraria ardente de minhas veias.
(poema inédito)
TEOREMA
A vida é uma
mulher estéril
nomeando os
filhos
que nunca poderá ter.
FÁBULA
No teu aprisco imenso
sempre houve uma ovelha
pequena, cinzenta, desajeitada
aquela que frente ao cajado,
ao latido do cão também imenso,
fugia e não se guiava
aquela que diante do espelho d’água
não cria na imagem que se revelava
nem na eternidade de que ouvia
aquela que nua, de lã cortada,
sussurrava cantos às irmãs.
Uma ovelha, tal qual tantos bodes.
O GESTO DA
CRIAÇÃO
Na trama das
melodias que calam
dos versos
que fogem no bando
crava-se a
flecha de um sintoma.
Ao romper
signos, penetrar espantos,
longe de
escrever as núpcias,
engasgo num
rio de dúvidas
e pereço...
só a palavra é cúmplice
do que enlouqueço.
CONCERTO
PARA CAVALOS
Despidos de
crinas que não se reconhecem
Cravados de
marcas de ferro
Fugidos pela
palha que nega o que desejam
Mortos pelas
pirâmides que migraram
Surdos pela
sinfonia que não se nomeia
Loucos de
manadas de dragões que cospem estrelas
Vivos pelas
correntes que berram astros
... assim
são os cavalos do concerto de meu coração
crianças que
preparam o primeiro verso,
feras que não se sujeitam.
(In: “Na Pata do Cavalo há Sete Abismos”)
24 comentários:
Além de escrever bem é linda
As vezes me sinto assim natureza morta quando me batem a porta e eu nao posso ajudar
Muito boa a entrevista. O dizer de Clarissa é refletido e seguro, ela é uma poeta que vive o seu tempo sem hesitação.
Poesia enxuta.
Nas mãos de Clarissa há sete infinitos de encantos poéticos!
Parabéns à Clarissa, bela produção. Também ao Nahud. Este diálogo resultou numa boa entrevista.
Poesia cura.
Bela...
Menino, a pintura de Suzanne Valandon é de uma delicadeza... Vc me surpreende.
lindas as flores e lindo, belíssimo texto. Por favor, poesia!
Belas flores e linda poesia amigo!!! Abraços...
Magnífico blog, poesia, pinturas, parece Van Gogh, muito lindo, parabéns,
Maravillosas las flores y el texto !!!
Duas Feras Da Poesia Nordestina...
Menino esperto e inteligente!! Parabéns!! Abraços
Parabéns Clarissa Macedo. Bela trajetória!
Interessante: "O sublime é o cotidiano transfigurado pela matéria da palavra".
Bela escolha de imagens!
Profundamente feliz com a profundidade intelectual que Clarissa manifesta nessa entrevista. É uma escritora comprometida com a Literatura e com o seu fazer poético e atenta aos seus contemporâneos. Belíssima entrevista! Belíssima entrevista!Parabéns, Antônio! Parabéns, Clarissa amada!
Clarissa Macedo mostra-se uma intelectual madura e completamente imersa no universo literário, durante essa entrevista concedida ao escritor Antonio Nahud. Além da sua verve acadêmica de pesquisadora atenta, demonstra sensibilidade, sapiência e agudez de análise dos seus contemporâneos e dos canônicos. Sinto-me feliz, após a leitura dessa conversa, e cheia de reflexões em torno desse nosso ofício de escrever! Uma Poeta comprometida, talentosa e uma Intelecutal competente, arguta e com muitas experiências vivenciadas de leitura. É dessa forma que saio dessa aprendizagem! Vejo em Clarissa uma importante intelectual, pensadora e estudiosa desse universo da escrita em que transitamos! Uma escritora! É o que se revela luminosamente aqui! Bravo, Clarissa! Bravo, Clarissa!
Parabéns, meu amado! O visual também está belíssimo, e suas perguntas são desejáveis por qualquer um de nós! Há uma inteligência respeitosa e precisa em torno dessa conversa tão elegante, tão necessária! Amo Clarissa Macedo, mas silenciaria se não houvesse tanta força, tanta perspicácia, tanto brilho no que vocês dois construíram! Estou realmente com a alma alimentada, orgulhosa dessa bela jovem que eu tenho como amiga, como uma pessoa querida! Você, dessa forma, colabora para a divulgação de uma intelecutal muito jovem que crescerá e sempre nos surpeendeerá porque ela tem sede e corre atrás da fonte! beijos, Camaradas!
Ritinha, você me emociona muito. Sinto-me recompensada por muita coisa ao ler as suas palavras. Sobretudo porque, além de amiga, você é uma leitora que não se furta à minúcia, à dobra, ao escorregadio. Que diálogo bacana! Estou muito feliz. Nahud foi nos pontos certos e eu vibrei. Foi uma experiência de alimento mesmo. Abraços aos dois Emoticon heart
Uma das mais talentosas poetas da sua geração. Fiquem de olho!
Gostei muito da entrevista, queridos! As inquietações em torno do fazer poético serão sempre discutidas e dissolvidas nas palavras. Importa a forma, importa o enunciado elegante, a imensidão do verso. Há limites, sim, para essa modernidade toda. Confessionais ou em práxis, escrevendo o amor ou a morte, o negro ou a flor, a mulher ou a nuvem, façamos com elegância e novidade. Clarissa Macedo: um nome, uma referência, uma boa poeta. Que bom!
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