agosto 12, 2024

......................... NELSON RODRIGUES: um ESCRITOR de DIREITA

 

 
“A China e Cuba são nações que assassinaram todas as liberdades, 
todos os direitos humanos, que desumanizaram o homem 
e o transformaram no anti-homem, na antipessoa. 
A história socialista é um gigantesco mural de sangue e excremento.” 
NELSON RODRIGUES
 
“Não há ninguém mais bobo do que um esquerdista sincero. Ele não sabe nada. 
Apenas aceita o que meia dúzia de imbecis lhe dão para dizer.”
NELSON RODRIGUES
 
 
Ilustrações:
PAULA REGO
(1933 – 2022. Lisboa / Portugal)

 
 
Crítico ferrenho da esquerda e dos comunistas, ele inventou o teatro moderno brasileiro em 1943, com a peça “Vestido de Noiva”, considerada um marco. Idolatrado e odiado, politicamente conservador, apoiou o regime militar. NELSON RODRIGUES (1912 - 1980. Recife / Pernambuco) ganhou seu nome em homenagem ao almirante inglês Lord Nelson, vencedor da batalha de Trafalgar, em 1805. Quinto filho de uma família de catorze irmãos, ainda na infância se mudou para o Rio de Janeiro. Um leitor voraz, amou o romance clássico “Crime e Castigo” (1866), do russo Fiódor Dostoiévski, que leu, em folhetim, aos 13 anos. A escola ele largou em 1927. Aprendeu tudo sozinho, como autodidata. Aos 14 anos, criou seu próprio jornal, o “Alma Infantil”, com quatro páginas. Terminou por se transformar em um dos dramaturgos brasileiros mais conhecidos do século XX. Também publicou romances, crônicas e contos. Escritor aclamado, destacou-se também como jornalista e cronista dos costumes. Autor de frases famosas e conhecido pelas opiniões polêmicas, nem sempre foi bem compreendido pela sociedade da época em que viveu. Escreveu 17 peças, centenas de contos e nove romances. Para o cinema, foram 23 adaptações de sua obra. Além disso,
trabalhou nos grandes jornais do Rio de Janeiro e, fanático torcedor do Fluminense, foi um dos maiores cronistas esportivos de todos os tempos.
 
Impressionava pela capacidade de criar histórias sobre os fatos mais corriqueiros. Suas obras, de modo geral, apresentam linguagem coloquial e gírias, o que dá um caráter mais popular. Em sua crítica de costumes à sociedade carioca, é perceptível a ironia, além de imagens grotescas, evidenciando um cotidiano de adultérios, atitudes hipócritas e outras condutas ditas imorais. O autor preferiu como espaço da ação o subúrbio do Rio de Janeiro, onde ocorrem histórias de amor, sexo, crime e morte. Ele não se restringiu aos acontecimentos, pois também realizava a análise psicológica de seus personagens e fazia críticas à classe abastada. Tudo começou em 1927, aos 15 anos, trabalhando como repórter policial no “A Manhã”, periódico do seu pai. Quando Mario Rodrigues perdeu o jornal para o sócio, fundou “Crítica” e levou o filho para a redação. Após uma reportagem sensacionalista na publicação, uma senhora ofendida, acusada de adultério, desesperada, correu ao local do jornal para matar Mário. Só encontrou o belo Roberto, seu filho. Matou-o. Com um tiro no abdômen. NELSON RODRIGUES estava na redação na hora do crime. Roberto recebeu a moça e fechou a porta da sala. Foi o tempo para ela sacar o revólver de dentro da bolsa e atirar. Ele ficou três dias entre a vida e a morte. O assassinato marcou profundamente a trajetória da família. Mário, inconformado por seu filho ter sido morto em seu lugar, passou a exagerar na bebida e, em poucos meses morreu, com 44 anos, de trombose cerebral.
 
Com a vitória de Getúlio Vargas na Revolução de 30, “Crítica” foi fechado por ordens do governo. Começou, assim, o período da fome. Até 1935, quando a situação começou a melhorar, os Rodrigues experimentaram a miséria. O saldo do período foram as duas tuberculoses do escritor, que chegou a ser internado, e a morte de Joffre, aos 21 anos, também devido à tuberculose. Joffre era o seu irmão mais próximo, ele dizia que era como se fossem gêmeos. Anos antes, em 1925, Irineu Marinho fundou “O Globo, porém, 21 dias depois morreu de infarto na banheira. Roberto Marinho, com 21 anos, herdou o jornal e contratou NELSON RODRIGUES em 1932, que chamava seu chefe, por trás, de “analfabeto”. Trabalhava também em “O Tempo”. Era tão pobre que só tinha um terno, todo puído. Andava de sapatos sem meias, porque não tinha meias, e usava a mesma camisa três ou quatro dias. Em 1940, ele se casou com Elza Bretanha, escondidos da família dela. Em 1941, escreveu sua primeira peça, “A Mulher sem Pecado”. Ninguém queria encená-la. Carlos Drummond de Andrade, então chefe de gabinete do ministro da Educação de Getúlio Vargas, disse, lacônico: “Interessante. Muito interessante”. Em 1942, foi finalmente encenada com direção de Rodolfo Meyer. No entanto, com sua segunda peça, “Vestido de Noiva
, em 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, é que veio a consagração como dramaturgo.
 
Dirigida pelo polonês Ziembinski, surpreendeu tanto pela linguagem dos personagens trazida do cotidiano da classe média carioca, quanto pela inovação cênica. A peça conta a história de Alaíde, que está num hospital após um atropelamento e tem lembranças de seu passado misturadas ao de uma prostituta do começo do século XX. Os planos cênicos eram o da alucinação, o da memória e o da realidade. O poeta Manuel Bandeira adorou “Vestido de Noiva”, escrevendo, em “A Manhã”: “Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. ‘Vestido de Noiva’, em outro meio, consagraria um autor. Que será aqui?”. A peça foi um sucesso. Para ganhar uns trocados a mais, NELSON RODRIGUES começou a escrever um folhetim, “Meu Destino é Pecar”, sob o pseudônimo de Suzana Flag, para “O Jornal”. Teve êxito. Uma curiosidade. Ele escrevia com apenas dois dedos, os indicadores. A essa altura, teve sua peça “Álbum de Família” censurada em 1946, sob a alegação de que preconizava o incesto e incitava ao crime. Em janeiro de 1948 a peça “Senhora dos Afogados” foi interditada. De caso com Nonoca Bruno, mãe de Nicette, escreveu, para ela, “Doroteia”, em 1949. Foi um fracasso. Voltou a trabalhar em 1951, no jornal “Última Hora”, de Samuel Wainer, onde estreou a coluna “A Vida como Ela é”, um grande sucesso. A narrativa era forte, deliciosa e prendia a atenção do leitor.
 
Ele pôs a classe média no centro de suas histórias e não tratava o pobre como o “ser perfeito” inventado pela esquerda. Pelo contrário, para o autor, homens de todas as classes sociais têm comportamentos parecidos no que se refere a amor, ciúme, violência. O dramaturgo e cronista não era populista e não procurava agradar. Escreveu “A Vida como Ela é” até 1961. Trazem temáticas relacionadas ao casamento, ao adultério e a outros temas morais. A série de contos, talvez a mais famosa da sua carreira literária, virou minissérie de TV nos anos 1990. Maitê Proença, Guilherme Fontes, Cláudia Abreu e José Mayer interpretavam as cenas de traição, desejo e lascívia. Em 1953, escreveu a tragédia “A Falecida”. Em 1954, o público vaia “Senhora dos Afogados”. “Perdoa-me por me Traíres”, de 1957, teve o próprio autor como um dos atores. “Os Sete Gatinhos”, de 1958, deu lucro. E ganhou elogios de Paulo Mendes Campos, poeta e cronista: “Acho sua melhor peça e um dos trabalhos mais belos, mais fortes e mais impressionantes do teatro mundial contemporâneo”. No romance “Asfalto Selvagem” (1959) pôs amigos e inimigos como personagens. “O Beijo no Asfalto”, de 1960, com Fernanda Montenegro, ficou sete meses em cartaz. Em 1962, escreveu “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária”. Em 1966, mais uma vez uma de suas obras foi censurada: o romance “O Casamento”
 
“vestido de noiva” em 1943
Em 1967, passou a escrever crônicas de caráter memorialístico para o “Correio da Manhã” e, em seguida, para “O Globo”. Fumando cigarros compulsivamente, se revelaria como um conservador, ou nas palavras dele, um reacionário. Incompreendido, brigava com a esquerda e arrumou mais um amor, Lúcia Cruz Lima, com quem teve uma menina doente, Daniela, cega, surda e muda. Foi cruel e destruiu o relacionamento com a amante. A partir de 1963, o cinema descobre NELSON RODRIGUES. “Bonitinha, mas Ordinária”, de 1963, foi visto por 2 milhões de espectadores. “A Falecida”, de 1965, fracassou comercialmente. A peça “Toda Nudez Será Castigada”, solicitada por Fernanda Montenegro, terminou recusada por ela mesma. Nessa época, várias pessoas foram beneficiadas pela generosidade do dramaturgo e, sobretudo, por sua amizade com militares de proa. Quando Hélio Pellegrino e Zuenir Ventura foram presos pelo regime militar, ele conseguiu a libertação de ambos. Seu filho Nelsinho, de esquerda, envolvido na luta armada, que vivia na clandestinidade e praticava ações armadas com o grupo MR-8, foi preso em 1972. Ao visitá-lo, o pai viu que ele estava machucado. Então, passou o resto da década pedindo, em cartas e artigos, por uma anistia ampla. Desde sempre, tinha se posicionado, de maneira pontual, contrário à censura da imprensa e à prisão de personalidades do meio cultural. Para o presidente João Figueiredo, escreveu, em junho de 1979, no “Última Hora”:
 
“Escuta aqui, Figueiredo. Muitos presidentes realizaram obras maravilhosas, faraônicas. Construíram estradas, acabaram com a inflação – o diabo. Mas nenhum deles teve a chance que você tem. A bondade está acima das leis. A generosidade, a clemência, a misericórdia são os mais belos sentimentos que um ser humano pode ter. Deixe o petróleo pra lá. A inflação que se dane. Um país não pode viver dividido. Você estendeu a mão. Como podem apertá-la os brasileiros que estão detidos? Solte esses rapazes, Figueiredo. Meia-dúzia de obras gigantescas não colocam um presidente na História. Você é o único brasileiro que tem essa oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo, solte meu filho.”
 
Nelsinho seria libertado em 1979. Ao tratar de temas como amores proibidos e desejos sexuais, ao mesmo tempo em que fazia sucesso, ele era alvo de protestos, censura e críticas. A sua matéria-prima era o ser humano, soube como poucos apresentar um texto sofisticado para massas. Com sua experiência como jornalista, tornava a narrativa acessível, com uma linguagem popular e ao mesmo tempo culta, tratando dos dramas cotidianos e desconstruindo clichês. Ele estimulava a polêmica e se divertia com isso. Com uma capacidade de trabalho invejável, também fez história na televisão brasileira. Participou de mesas-redondas; e conduziu “A Cabra Vadia, entre 1966 e 1967, quadro que fazia parte do programa “Noite de Gala”, entrevistando famosos com a presença, no estúdio, de uma cabra viva. Pioneiro na teledramaturgia brasileira, escreveu, para a TV Rio, a telenovela “A Morta Sem Espelho” (1963). Enquanto esteve vivo, acompanhou a adaptação de sua obra para o cinema e chegou a colaborar com o roteiro de “A Dama do Lotação” (1978), de Neville D’Almeida; “Bonitinha, mas Ordinária (1981) e “Álbum de Família” (1981), de Braz Chediak. Escreveu, também, os diálogos para dois filmes: “Somos Dois” (1950), de Milton Rodrigues, e “Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva” (1971), de J. B. Tanko. No final da vida, estava debilitado e sofria muito. Depois de um aneurisma na aorta, foi operado três vezes. Morreu aos 68 anos, de trombose e insuficiência cardíaca respiratória. Deixou seis filhos: Jofre, Nelson, Maria Lucia, Paulo César, Sonia e Daniela.
 
NELSON RODRIGUES permanece insuperável. Um dramaturgo e cronista do primeiro time. Ele morreu há mais de quatro décadas, mas sua obra continua viva no teatro, cinema e na literatura.
 

FONTES
O ANJO PORNOGRÁFICO (1992)
de Ruy Castro
DOSSIÊ RODRIGUES - a GENEALOGIA (1900-1934) (2023)
de Caco Coelho
MEMÓRIAS: a MENINA SEM ESTRELA (1992)
de Nelson Rodrigues
NELSON RODRIGUES POR ELE MESMO (2012)
de Sonia Rodrigues
O ÓBVIO ULULANTE – PRIMEIRAS CONFISSÕES (1968)
de Nelson Rodrigues
TEATRO da OBSESSÃO: NELSON RODRIGUES (2004)
de Sábato Magaldi

 

OBRAS de NELSON RODRIGUES
 
A MULHER sem PECADO (1941)
peça teatral
 
VESTIDO de NOIVA (1943)
peça teatral
 
MEU DESTINO é PECAR (1944)
romance
 
ESCRAVAS do AMOR (1944)
romance
 
MINHA VIDA (1944)
romance
 
ÁLBUM de FAMÍLIA (1946)
peça teatral
 
ANJO NEGRO (1947)
peça teatral
 
SENHORA dos AFOGADOS (1947)
peça teatral
 
NÚPCIAS de FOGO (1948)
romance
 
A MULHER que AMOU DEMAIS (1949)
romance
 

DOROTEIA (1949)
peça teatral
 
VALSA NÚMERO 6 (1951)
peça teatral
 
A FALECIDA (1953)
teatral
 
A MENTIRA (1953)
 romance
 
PERDOA-ME POR me TRAÍRES (1957)
peça teatral
 
VIÚVA, PORÉM HONESTA (1957)
peça teatral
 
Os SETE GATINHOS (1958)
peça teatral
 
BOCA de OURO (1959)
peça teatral
 
O HOMEM PROIBIDO (1959)
romance
 
ASFALTO SELVAGEM: ENGRAÇADINHA, seus PECADOS e SEUS AMORES (1959)
romance
 
 
O BEIJO no ASFALTO (1960)
peça teatral
 
BONITINHA, mas ORDINÁRIA (1962)
peça teatral
 
TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA (1965)
peça teatral
 
O CASAMENTO (1966)
romance
 
O ÓBVIO ULULANTE: PRIMEIRAS CONFISSÕES (1968)
crônicas.
 
A CABRA VADIA (1970)
crônicas
 
CEM CONTOS ESCOLHIDOS: a VIDA COMO ELA é (1972)
contos
 
ANTI-NELSON RODRIGUES (1974)
peça teatral
 
ELAS GOSTAM de APANHAR (1974)
contos
 
O REACIONÁRIO: MEMÓRIAS e CONFISSÕES (1977)
crônicas
 

A SERPENTE (1978)
peça teatral
 
FLA-FLU... e as MULTIDÕES DESPERTARAM (1987)
crônicas
 
MEMÓRIAS: a MENINA SEM ESTRELA (1992)
romance
 
A VIDA COMO ELA É...: O HOMEM FIEL e OUTROS CONTOS (1992)
contos
 
A DAMA do LOTAÇÃO e OUTROS CONTOS e CRÔNICAS (1992)
contos e crônicas
 
A COROA de ORQUÍDEAS (1992)
 contos
 
O REMADOR de BEN-HUR (1992)
 crônicas
 
A CABRA VADIA: NOVAS CONFISSÕES (1992)
 crônicas
 
À SOMBRA das CHUTEIRAS IMORTAIS: CRÔNICAS de FUTEBOL (1992)
crônicas
 
A MULHER do PRÓXIMO (1992)
crônicas
 
POUCO AMOR NÃO é AMOR (2002)
 contos
 
O PROFETA TRICOLOR (2002)
crônicas
 
NÃO se PODE AMAR e SER FELIZ ao MESMO TEMPO (2002)
crônicas
 
O BERRO IMPRESSO das MANCHETES (2007)
crônicas
 
A PÁTRIA de CHUTEIRAS (2012)
crônicas
 
BRASIL em CAMPO (2018)
crônicas

 

A DAMA do LOTAÇÃO
 
Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi ba­ter na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? — perguntou o dono da casa.
Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vi­dro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas… E ela não é a mesma, mu­dou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!
 
A SUSPEITA
 
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposenta­doria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange ha­via de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era “um amor”; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: “É um doce-de-coco”. Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qual­quer coisa de extraterreno. O velho e diabético general pode­ria pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia… Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acon­tece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, ape­nas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conver­sa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco. Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desaba­fo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com es­sas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obses­são, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traía! Vê se é possível?!
 
A CERTEZA
 
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada.
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabi­nete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; dis­se à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carli­nhos fechou a porta, à chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo!
E ela, encostada à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus pas­sos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do cana­lha. Só no fim, apanhando o revólver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!
 
A DAMA do LOTAÇÃO
 
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saía de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez — foi até interessante — coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adian­te. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aven­tura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem dei­xar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano… Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”. Em voz alta, fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse ape­nas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, em­barcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimen­tos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!”. E, de fato, ha­via, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — “Sem calça! Deu ago­ra para andar sem calça, sua égua!”. Empurrou-a com um pala­vrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na por­ta, para dizer:
— Morri para o mundo.
 
O DEFUNTO
 
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e mu­da, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela última vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à emprega­da que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em ca­sa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela pró­pria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tar­de, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas de­pois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.


4 comentários:

Felipe Andrei Fazuelle disse...


Não sabia que Nelson Rodrigues era de direita. Sempre gostei bastante da obra dele, especialmente daquela série da Globosta A Vida Como Ela É.

Soares Feitosa disse...


Excelente!

Afonso Luiz Frederico Raimundo disse...


Tricolor de coração

Emilio Jose Oliveira disse...


Nelson Rodrigues sábio e visionário no que afirmava