outubro 09, 2016

........................................................ MISHIMA: HARAKIRI de NARCISO

yukio mishima como são sebastião

jornal A Tarde / Cultural (BA)
para Moisés Ribeiro Filho

“O que amamos não passa de aparência”
FRIEDRICH HÖLDERLIN
(1770 – 1843. Lauffen / Alemanha)

Ilustrações:
ANGUS WILSON
(1913 – 1991. Bexhill-on-Sea / Reino Unido)



Ando fascinado com a literatura japonesa, pouco valorizada por mim nos últimos anos. O livro “Cores Proibidas / Kinjiki” (1953), visto como menor dentro da extraordinária produção do autor, tem me instigado a escrever e pensar questões sexuais e literárias que geraram uma obra tão intensa e delicada. Notável! Com a vida noturna de Tóquio no pós-guerra como pano de fundo, YUKIO MISHIMA (1925 - 1970. Yotsuya-ku / Japão) confronta um escritor senil, ferino e misógino, a jovem homossexual apaixonado pela própria imagem. Fazendo-se mentor do rapaz, dono de beleza rara, ele vinga-se da própria feiura e da série de fracassos amorosos que marcou sua vida. Mas o rapaz manipulado vai se tornando a encarnação viva dos ideais estéticos do escritor, e o desenlace é trágico.

Estamos diante de uma trama sádica, complexa e variada, estilizada e simbólica. Numa narrativa não-realista, um pacto do gênero Mefistófeles/Fausto. Desafiando a desvendar as intenções mais profundas dos personagens, foi publicado originalmente em capítulos em um jornal japonês, entre 1951 e 1953, e sugere uma forte intenção biográfica. Para a figura do velho escritor, MISHIMA se espelhou em Yasunari Kawabata (1899 - 1972), autor do clássico “O País das Neves / Yukiguni” (1947).

Considerado o mais importante escritor japonês do século XX, o polêmico YUKIO MISHIMA escreveu dezenas de romances, poesias, peças e ensaios políticos e filosóficos. Nasceu em Tóquio, filho de um oficial do governo. Seu nome verdadeiro é Hiraoka Kimitake. Indicado três vezes ao prêmio Nobel de Literatura, era um personagem controverso. Tinha um lado extremamente nacionalista e nutria grande interesse pelo Japão imperial e o passado dos guerreiros samurais (apesar de viver e usufruir dos benefícios do mundo ocidental). Definido pela “Life” como o “Hemingway japonês”. Christopher Isherwood comparava-o a André Gide. Angus Wilson disse se tratar de um “escritor de dimensão balzaquiana e verdade flauberiana”.

Projetou-se na literatura recorrendo a temas como morte, erotismo, a esterilidade da vida moderna e o culto a beleza. Publicou em 1944 o seu primeiro livro, “O Bosque em Flor / Hanazakari no Mori”. Chamou a atenção dos leitores cinco anos após com “Confissões de uma Máscara / Kamen no Kokuhaku” (1949), romance autobiográfico tratado com franqueza e centrado no despertar da sexualidade homoerótica. Identificado com “O Coração / Kokoro” (1914), de Natsume Soseki, último romance de um dos criadores da moderna literatura japonesa. Um livro que pulsa entre vários mundos: o particular dos personagens principais e o da sociedade à sua volta; o da cultura tradicional.

Escrito na primeira pessoa, “Confissões de uma Máscara” conta a história da infância, adolescência e juventude de Kochan - máscara do próprio YUKIO MISHIMA. As datas, fatos históricos, e outros dados biográficos do personagem são os mesmos de escritor. Com um estilo poético retrata o universo de pensamentos, sentimentos e visões do mundo de um jovem que descobre sua homossexualidade, descrevendo seus conflitos internos, suas tentativas de adequação e dificuldades de conciliar o amor com desejo sexual. O livro narra um período da vida do autor que começa no seu nascimento, passando pela Segunda Guerra Mundial, as bombas atômicas, até o momento em que foi escrito.


O homossexualismo teve papel decisivo na vida e obra do escritor japonês, mesmo casado com Yoko Sugiyama, filha de um famoso pintor, e pai de dois filhos, Noriko e Iichiro. De personalidade complexa, seu ponto literário mais alto é a tetralogia “O Mar da Fertilidade” (1968 - 1970), desenhando o Japão do século 20, simbolicamente, a partir de 1912. No primeiro romance, “Neve da Primavera”, o protagonista, Honda, vive amizade ambígua com Kiyoaki, que se prolonga em supostas reencarnações. Ele termina percebendo que as suas experiências mais intensas e decisivas, como tudo na vida, são esquecidas. Nesta obra-prima, paixão e poder, morte e reencarnação conduzem o leitor a uma bela e apaixonante literatura, rica e densa.

De uma geração que viveu o delirante triunfo imperial, a humilhação da derrota na Segunda Guerra Mundial e a assombrosa recuperação do Japão pós-guerra, YUKIO MISHIMA foi educado na tradição conservadora, preservando os costumes milenares, mas desde jovem recebeu influência de narrativas ocidentais, especialmente de André Gide, Thomas Mann e Oscar Wilde. Ele procurou ser tradicional e vanguarda, incluindo no pacote contraditório um narcisismo com rasgos de masoquismo, evidente em fotografias famosas, como aquelas em que encarna São Sebastião amarrado e atravessado por flechas.

mishima e seu amante morita
Viajando, fazendo cinema (trabalhou como ator em cinco filmes e dirigiu o curta de 30 minutos, “Rito de Amor e de Morte / Yukoku”, de 1966), exercícios físicos e marketing pessoal, bancou o intelectual moderno, mas não foi de todo bem sucedido. Estudante de direito na Universidade de Tóquio, pela fragilidade física não conseguiu combater na Segunda Guerra. Fascinado por sangue, morte e rituais antigos, conta em um dos seus textos a sua primeira ejaculação ao contemplar uma reprodução barroca do São Sebastião, de Guido Reni, em um dos numerosos livros da biblioteca paterna.

Não teve no Japão o reconhecimento que necessitava para saciar seu enorme ego, precisamente pelo exibicionismo que fere a sensibilidade oriental fincada na sobriedade. Fora do seu país, tornou-se um escritor para escritores, apreciado pelos especialistas literários, culminando com um magistral ensaio de Marguerite Yourcenar, “Mishima ou a Visão do Vazio / Mishima on la Notion du Vide” (1980). A genial escritora belga iluminou uma das mentes literárias que mais a fascinavam, colocando seu talento literário a serviço dessa aventura humana, pela qual ela experimentou, de modo simultâneo e paradoxal, familiaridade e estranhamento. Sua análise se articula sobre alguns momentos da vida e da obra de Mishima. Assim, dentro de um modelo de estudo crítico, uma grande escritora do Ocidente investigou os mecanismos da psicologia de um grande escritor do Oriente, expondo as ambições, os triunfos, as fraquezas e a coragem de uma figura emblemática das artes japonesas.
 
Entre os principais livros de YUKIO MISHIMA, “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar / Gogo no Eiko” (1963), editado no Brasil pela Rocco, choca pela perversidade. Fala de triângulo amoroso mãe-filho-padrasto, contado num clima de sinistra conspiração. A fascinação do escritor pela cultura francesa, dos surrealistas aos existencialistas, resultou em obras teatrais como “Madame de Sade / Sado Kôshaku Fujin” (1965), revelando o Marquês de Sade do ponto de vista feminino. A fé na tradição japonesa aparece em “O Templo do Pavilhão Dourado / Kinkakuyi” (1956), onde um monge incendeia o precioso templo dos jardins de Kyoto, episódio transformado em imagens no admirável filme de Paul Schrader, “Mishima – Uma Vida em Quatro Tempos / Mishima” (1984), com Ken Ogata como Mishima. Escritor refinado, angustiado, pessimista, sarcástico e excêntrico, YUKIO MISHIMA procurou driblar os limites da sua rígida educação, vivendo em cima do muro, numa impossível contradição. Várias vezes indicado ao prêmio Nobel, perdeu-o em 1968 para o mestre Yasunari Kawabata, que disse: Não compreendo como me deram o Nobel existindo Mishima. A humanidade só produz um gênio literário como ele a cada dois ou três séculos”.


Em 1968 YUKIO MISHIMA fundou um exército privado com ideais fascistas: o Tatenokai (Sociedade do Escudo), com aproximadamente 100 jovens, que tinha como objetivo ressuscitar o Bushido - código de honra samurai - e proteger o imperador. No dia 25 de novembro de 1970, ele entregou aos seus editores as páginas finais da obra-prima “O Mar da Fertilidade”. Depois, invadiu com seus soldados o Ministério da Defesa, em Tóquio, tomando o general Mashita como refém e fazendo um discurso de protesto pelo desaparecimento das tradições japonesas e pela situação de impotência em que se encontrava o exército imperial desde a derrota na Segunda Guerra.

A ideologia arcaica de espírito “haga kure” (o caminho do samurai), fincadas num nacionalismo austero e heroico, provocou risadas. Sua tentativa de golpe fracassou. Vendo-se ridicularizado pelos militares, indignado, o escritor cometeu harakiri/seppuku (suicídio ritualístico), rasgando seu ventre com sua espada diante de seus soldados. Morita, seu amante, o decapitou em seguida. Morte a um só tempo terrível e exemplar, pois o uniu com profundidade ao vazio metafísico que o fascinou desde a juventude. A notícia deu a volta ao mundo, mas seu suicídio terminou por ser considerado uma excentricidade a mais do escritor, não tendo o êxito planejado, porque ele e seus seguidores estavam de um lado e o resto do Japão, do outro. YUKIO MISHIMA foi vítima de uma personalidade sensível, caprichosa e narcisista, mas que também foi fundamental para sua arte literária, dando-lhe a glória em todo o mundo.


SÃO SEBASTIÃO por YUKIO MISHIMA

Trecho do livro “Confissões de uma Máscara”, inspirado em uma reprodução do quadro São Sebastião, de Guido Reni (séc XVII), do Museo Palazzo Rosso de Gênova.

“Contam os anais do martírio que, nos anos seguintes à posse de Diocleciano, quando ele sonhava com o poder sem limites, desobstruído como o voo de um pássaro por céu aberto, um jovem capitão da Guarda Pretoriana foi acusado e preso por ter adorado um deus proibido. Seu corpo maleável lembrava o de um famoso escravo do Oriente por quem o imperador Adriano se apaixonara, e seu olhar era tal qual o de um conspirador, despido de emoções feito o mar. Era de uma arrogância encantadora. Levava no elmo um lírio branco, oferecido todas as manhãs pelas donzelas da cidade. Enquanto descansava de intensos treinamentos, a flor acompanhava as curvas de seus cabelos viris, e a forma graciosa como pendia lembrava a nuca de um cisne.

Não havia uma só pessoa que soubesse seu local de nascimento, de onde viera. Mas todos pressentiam algo. Que aquele jovem com um físico de escravo e feições de príncipe estava ali de passagem. Que aquele Endimião era um pastor de ovelhas. Que ele, mais do que ninguém, fora escolhido como guardador de rebanhos do mais verde dos pastos, de que não havia igual.

Por outro lado, algumas donzelas acalentavam a certeza de que ele viera do mar. Porque de seu peito podia-se ouvir o bramido das ondas. Porque em seus olhos pairava o horizonte misterioso e inextinguível que o oceano deixa como lembrança no fundo das pupilas daqueles que nasceram na costa e de lá precisaram partir. Porque seu hálito era quente como a brisa do mar no auge do verão, e exalava o odor das algas lançadas à praia.

A beleza que exibia Sebastião, o jovem capitão da Guarda Pretoriana, não estaria destinada à morte? E as robustas mulheres de Roma, com seus cinco sentidos aguçados pelo sabor da boa bebida, de estremecer os ossos, e pelo gosto da carne gotejante de sangue, não teriam elas logo percebido seu malfadado destino, que ele próprio ignorava, não o teriam amado por causa disso? O sangue corria no interior daquele corpo alvo com fúria e velocidade ainda maiores, espreitando a fenda por onde jorraria tão logo dilacerada a carne. Como poderiam as mulheres deixar de ouvir desejos tão intensos de um tal sangue?

Não se tratava de uma vida frágil. Não era, de modo algum, um destino lastimável. Era, antes, insolente e trágico. A ponto de se poder chamá-lo resplandescente.

É provável que, mesmo em meio a doces beijos, a agonia da morte em vida se tenha prenunciado no franzir das sobrancelhas.”


OBRA de YUKIO MISHIMA

O BOSQUE EM FLOR (1944)

CONFISSÕES de uma MÁSCARA (1949)

SEDE de AMOR (1950)

AO NO JIDAI (1950)

KINJIKI (1951)

MANATSU NO SHI (1952)

HIGYO (1953)

CORES PROIBIDAS (1953)

  FUGUSHU (1954)

O TUMULTO das ONDAS (1954)

SHIZUMERU TAKI (1955)

O TEMPLO do PAVILHÃO DOURADO (1956)

SHIROARI NO SU (1956)

SHI WO KAKU SHONEN (1956)

BITOKU NO YOROMEKI (1957)

BARA TO KAIZOKU (1958)

A CASA de KYOKO (1959)

RATAI TO ISHO (1959)

 
DEPOIS do BANQUETE (1960)

  PATRIOTISMO (1960)

YOROBOSHI (1960)

  KEMO NO TAWAMURE (1961)

  UTSUKUSHII HOSHI (1962)

  O MARINHEIRO que PERDEU as GRAÇAS do MAR (1963)

KEN (1963)

WATAKUSHI NO HENREKI JODAI (1964)

  SEDA e VISÃO (1964)

ATOS de ADORAÇÃO (1965)

O CAMINHO do SAMURAI (1967)

YOROBOSHI (1968)

  SOL e AÇO (1968)

MEU AMIGO HITLER (1969)

BUNKA BOEI RON (1969)

O MAR DA FERTILIDADE (“Neve da Primavera”, 1968; “Cavalos em Fuga”, 1969; “O Templo da Aurora” 1970; e “A Queda do Anjo”, 1970) (1968 – 1970)


PEÇAS TEATRAIS

KINDAI NOGAKU SHU (1956)

ROKUMEI KAN (1956)

TOKA NO KIKU (1961)

MADAME de SADE (1965)

SUSAKU-KE NO METSUBO (1967)


Um comentário:

Danilo Cavalcante disse...

Mishima eh fooodaaa !!!