yukio mishima como são sebastião |
jornal A Tarde / Cultural (BA)
para Moisés Ribeiro Filho
para Moisés Ribeiro Filho
“O que amamos não passa de
aparência”
FRIEDRICH HÖLDERLIN
(1770 – 1843. Lauffen / Alemanha)
ANGUS WILSON
(1913 – 1991. Bexhill-on-Sea / Reino Unido)
Ando fascinado com a literatura japonesa, pouco valorizada por mim
nos últimos anos. O livro “Cores Proibidas / Kinjiki” (1953), visto como menor
dentro da extraordinária produção do autor, tem me instigado a escrever e
pensar questões sexuais e literárias que geraram uma obra tão intensa e
delicada. Notável! Com a vida noturna de Tóquio no pós-guerra como pano de fundo, YUKIO
MISHIMA (1925 - 1970. Yotsuya-ku
/ Japão) confronta um escritor senil, ferino e misógino, a jovem
homossexual apaixonado pela própria imagem. Fazendo-se mentor do rapaz, dono de
beleza rara, ele vinga-se da própria feiura e da série de fracassos amorosos
que marcou sua vida. Mas o rapaz manipulado vai se tornando a encarnação viva
dos ideais estéticos do escritor, e o desenlace é trágico.
Estamos diante de uma trama sádica, complexa e
variada, estilizada e simbólica. Numa narrativa não-realista, um pacto do
gênero Mefistófeles/Fausto. Desafiando a desvendar as intenções
mais profundas dos personagens, foi publicado originalmente em
capítulos em um jornal japonês, entre 1951 e 1953, e sugere uma forte intenção
biográfica. Para a figura do velho escritor, MISHIMA se espelhou em Yasunari
Kawabata (1899 - 1972), autor do clássico “O País das Neves / Yukiguni” (1947).
Considerado o mais importante
escritor japonês do século XX, o polêmico YUKIO MISHIMA escreveu dezenas de
romances, poesias, peças e ensaios políticos e filosóficos. Nasceu em Tóquio,
filho de um oficial do governo. Seu nome verdadeiro é Hiraoka Kimitake. Indicado
três vezes ao prêmio Nobel de Literatura, era um personagem controverso.
Tinha um lado extremamente nacionalista e nutria grande interesse pelo Japão
imperial e o passado dos guerreiros samurais (apesar de viver e usufruir dos
benefícios do mundo ocidental). Definido pela “Life” como o “Hemingway
japonês”. Christopher Isherwood comparava-o a André Gide. Angus Wilson disse se
tratar de um “escritor de dimensão balzaquiana e verdade flauberiana”.
Projetou-se na literatura recorrendo a temas como morte, erotismo,
a esterilidade da vida moderna e o culto a beleza. Publicou em 1944 o seu
primeiro livro, “O Bosque em Flor / Hanazakari no Mori”. Chamou
a atenção dos leitores cinco anos após com “Confissões de uma Máscara / Kamen
no Kokuhaku” (1949), romance autobiográfico tratado com franqueza e centrado no
despertar da sexualidade homoerótica. Identificado com “O Coração / Kokoro” (1914), de Natsume
Soseki, último romance de um dos criadores da moderna
literatura japonesa. Um livro que pulsa entre vários
mundos: o particular dos personagens principais e o da sociedade à
sua volta; o da cultura tradicional.
Escrito na primeira pessoa, “Confissões
de uma Máscara” conta a história da infância, adolescência e juventude de Kochan
- máscara do próprio YUKIO MISHIMA. As datas, fatos históricos, e outros dados
biográficos do personagem são os mesmos de escritor. Com um estilo poético retrata o universo de pensamentos, sentimentos e visões do mundo de um jovem
que descobre sua homossexualidade, descrevendo seus conflitos internos, suas
tentativas de adequação e dificuldades de conciliar o amor com
desejo sexual. O livro narra um período da vida do autor que começa no seu
nascimento, passando pela
Segunda Guerra Mundial, as bombas atômicas, até o momento em que foi
escrito.
O homossexualismo teve papel decisivo na vida e obra do escritor japonês,
mesmo casado com Yoko Sugiyama, filha de um famoso pintor, e pai de dois filhos,
Noriko e Iichiro. De personalidade complexa, seu ponto literário mais alto é a
tetralogia “O Mar da Fertilidade” (1968 - 1970), desenhando o Japão do século 20, simbolicamente,
a partir de 1912. No primeiro romance, “Neve da Primavera”, o protagonista, Honda, vive amizade
ambígua com Kiyoaki, que se prolonga em supostas reencarnações. Ele termina percebendo
que as suas experiências mais intensas e decisivas, como tudo na vida, são
esquecidas. Nesta obra-prima, paixão e poder, morte e
reencarnação conduzem o leitor a uma bela e apaixonante literatura, rica e densa.
De uma geração que viveu o delirante triunfo imperial, a
humilhação da derrota na Segunda Guerra Mundial e a assombrosa recuperação do
Japão pós-guerra, YUKIO MISHIMA foi educado na tradição conservadora,
preservando os costumes milenares, mas desde jovem recebeu influência de
narrativas ocidentais, especialmente de André Gide, Thomas Mann e Oscar Wilde.
Ele procurou ser tradicional e vanguarda, incluindo no pacote contraditório um
narcisismo com rasgos de masoquismo, evidente em fotografias famosas, como aquelas
em que encarna São Sebastião amarrado e atravessado por flechas.
Viajando, fazendo cinema (trabalhou como ator em cinco filmes e
dirigiu o curta de 30 minutos, “Rito de Amor e de Morte / Yukoku”, de 1966),
exercícios físicos e marketing
pessoal, bancou o intelectual moderno, mas não foi de todo bem sucedido. Estudante
de direito na Universidade de Tóquio, pela fragilidade física não conseguiu combater
na Segunda Guerra. Fascinado por sangue, morte e rituais antigos, conta em um dos seus textos a sua primeira ejaculação ao contemplar uma reprodução barroca
do “São Sebastião”, de Guido Reni, em um dos numerosos livros da
biblioteca paterna.
Não teve no Japão o reconhecimento que necessitava para saciar seu
enorme ego, precisamente pelo exibicionismo que fere a sensibilidade oriental fincada
na sobriedade. Fora do seu país, tornou-se um escritor para escritores,
apreciado pelos especialistas literários, culminando com um magistral ensaio de
Marguerite Yourcenar, “Mishima ou a Visão do Vazio / Mishima on la Notion du
Vide” (1980). A genial escritora belga iluminou uma das mentes
literárias que mais a fascinavam, colocando seu talento literário a serviço
dessa aventura humana, pela qual ela experimentou, de modo simultâneo e
paradoxal, familiaridade e estranhamento. Sua análise se articula sobre alguns
momentos da vida e da obra de Mishima. Assim, dentro de um modelo de estudo
crítico, uma grande escritora do Ocidente investigou os
mecanismos da psicologia de um grande escritor do Oriente, expondo as ambições,
os triunfos, as fraquezas e a coragem de
uma figura emblemática das artes japonesas.
Entre os principais livros de YUKIO MISHIMA, “O Marinheiro que
Perdeu as Graças do Mar / Gogo no Eiko” (1963), editado no Brasil pela Rocco, choca
pela perversidade. Fala de triângulo amoroso mãe-filho-padrasto, contado num
clima de sinistra conspiração. A fascinação do escritor pela cultura francesa, dos surrealistas
aos existencialistas, resultou em obras teatrais como “Madame de Sade / Sado
Kôshaku Fujin” (1965), revelando o Marquês de Sade do ponto de vista feminino. A
fé na tradição japonesa aparece em “O Templo do Pavilhão Dourado / Kinkakuyi” (1956), onde um monge incendeia o precioso templo dos jardins de Kyoto,
episódio transformado em imagens no admirável filme de Paul Schrader, “Mishima
– Uma Vida em Quatro Tempos / Mishima” (1984), com Ken Ogata como Mishima. Escritor refinado, angustiado, pessimista, sarcástico
e excêntrico, YUKIO MISHIMA procurou driblar os limites da sua rígida educação,
vivendo em cima do muro, numa impossível contradição. Várias vezes indicado ao
prêmio Nobel, perdeu-o em 1968 para o mestre Yasunari Kawabata, que disse:
“Não compreendo como me deram o Nobel existindo Mishima. A humanidade só produz
um gênio literário como ele a cada dois ou três séculos”.
Em 1968 YUKIO MISHIMA fundou um
exército privado com ideais fascistas: o Tatenokai
(Sociedade do Escudo), com aproximadamente 100 jovens, que tinha como objetivo
ressuscitar o Bushido - código de honra samurai - e proteger o imperador. No
dia 25 de novembro de 1970, ele entregou aos seus editores as páginas finais da obra-prima “O Mar da Fertilidade”. Depois, invadiu com seus soldados o Ministério
da Defesa, em Tóquio, tomando o general Mashita como refém e fazendo um
discurso de protesto pelo desaparecimento das tradições japonesas e pela
situação de impotência em que se encontrava o exército imperial desde a derrota
na Segunda Guerra.
A ideologia arcaica de espírito
“haga kure” (o caminho do samurai), fincadas num nacionalismo austero e
heroico, provocou risadas. Sua tentativa de golpe fracassou. Vendo-se ridicularizado
pelos militares, indignado, o escritor cometeu harakiri/seppuku
(suicídio ritualístico), rasgando seu ventre com sua espada diante de seus
soldados. Morita, seu amante, o decapitou em seguida. Morte a um só tempo terrível e
exemplar, pois o uniu com profundidade ao vazio metafísico que o fascinou desde
a juventude. A notícia deu a volta ao mundo, mas seu suicídio terminou por ser
considerado uma excentricidade a mais do escritor, não tendo o êxito planejado,
porque ele e seus seguidores estavam de um lado e o resto do Japão, do outro. YUKIO MISHIMA foi vítima de uma personalidade sensível, caprichosa e narcisista, mas que
também foi fundamental para sua arte literária, dando-lhe a glória em todo o
mundo.
SÃO SEBASTIÃO por YUKIO MISHIMA
Trecho do livro “Confissões de uma Máscara”, inspirado em uma reprodução
do quadro “São Sebastião”, de Guido Reni (séc XVII), do Museo Palazzo Rosso de
Gênova.
“Contam os anais do martírio que, nos anos seguintes à posse de Diocleciano, quando ele sonhava com o poder sem limites, desobstruído como o voo de um pássaro por céu aberto, um jovem capitão da Guarda Pretoriana foi acusado e preso por ter adorado um deus proibido. Seu corpo maleável lembrava o de um famoso escravo do Oriente por quem o imperador Adriano se apaixonara, e seu olhar era tal qual o de um conspirador, despido de emoções feito o mar. Era de uma arrogância encantadora. Levava no elmo um lírio branco, oferecido todas as manhãs pelas donzelas da cidade. Enquanto descansava de intensos treinamentos, a flor acompanhava as curvas de seus cabelos viris, e a forma graciosa como pendia lembrava a nuca de um cisne.
“Contam os anais do martírio que, nos anos seguintes à posse de Diocleciano, quando ele sonhava com o poder sem limites, desobstruído como o voo de um pássaro por céu aberto, um jovem capitão da Guarda Pretoriana foi acusado e preso por ter adorado um deus proibido. Seu corpo maleável lembrava o de um famoso escravo do Oriente por quem o imperador Adriano se apaixonara, e seu olhar era tal qual o de um conspirador, despido de emoções feito o mar. Era de uma arrogância encantadora. Levava no elmo um lírio branco, oferecido todas as manhãs pelas donzelas da cidade. Enquanto descansava de intensos treinamentos, a flor acompanhava as curvas de seus cabelos viris, e a forma graciosa como pendia lembrava a nuca de um cisne.
Não havia uma só pessoa que soubesse seu local de nascimento, de
onde viera. Mas todos pressentiam algo. Que aquele jovem com um físico de
escravo e feições de príncipe estava ali de passagem. Que aquele Endimião era
um pastor de ovelhas. Que ele, mais do que ninguém, fora escolhido como
guardador de rebanhos do mais verde dos pastos, de que não havia igual.
Por outro lado, algumas donzelas acalentavam a certeza de que ele
viera do mar. Porque de seu peito podia-se ouvir o bramido das ondas. Porque em
seus olhos pairava o horizonte misterioso e inextinguível que o oceano deixa
como lembrança no fundo das pupilas daqueles que nasceram na costa e de lá
precisaram partir. Porque seu hálito era quente como a brisa do mar no auge do
verão, e exalava o odor das algas lançadas à praia.
A beleza que exibia Sebastião, o jovem capitão da Guarda
Pretoriana, não estaria destinada à morte? E as robustas mulheres de Roma, com
seus cinco sentidos aguçados pelo sabor da boa bebida, de estremecer os ossos,
e pelo gosto da carne gotejante de sangue, não teriam elas logo percebido seu
malfadado destino, que ele próprio ignorava, não o teriam amado por causa
disso? O sangue corria no interior daquele corpo alvo com fúria e velocidade
ainda maiores, espreitando a fenda por onde jorraria tão logo dilacerada a
carne. Como poderiam as mulheres deixar de ouvir desejos tão intensos de um tal
sangue?
Não se tratava de uma vida frágil. Não era, de modo algum, um
destino lastimável. Era, antes, insolente e trágico. A ponto de se poder
chamá-lo resplandescente.
É provável que, mesmo em meio a doces beijos, a agonia da morte em
vida se tenha prenunciado no franzir das sobrancelhas.”
OBRA de YUKIO MISHIMA
O BOSQUE EM FLOR (1944)
CONFISSÕES de uma MÁSCARA (1949)
SEDE de AMOR (1950)
AO NO JIDAI (1950)
KINJIKI ( 1951)
MANATSU NO SHI (1952)
HIGYO (1953)
CORES PROIBIDAS (1953)
FUGUSHU (1954)
O TUMULTO das ONDAS (1954)
SHIZUMERU TAKI (1955)
O TEMPLO do PAVILHÃO DOURADO (1956)
SHIROARI NO SU (1956)
SHI WO KAKU SHONEN (1956)
BITOKU NO YOROMEKI (1957)
BARA TO KAIZOKU (1958)
A CASA de KYOKO (1959)
DEPOIS do BANQUETE (1960)
PATRIOTISMO (1960)
YOROBOSHI (1960)
KEMO NO TAWAMURE (1961)
UTSUKUSHII HOSHI (1962)
O MARINHEIRO que PERDEU as GRAÇAS do MAR (1963)
KEN (1963)
WATAKUSHI NO HENREKI JODAI (1964)
SEDA e VISÃO (1964)
ATOS de ADORAÇÃO (1965)
O CAMINHO do SAMURAI ( 1967)
YOROBOSHI (1968)
SOL e AÇO (1968)
MEU AMIGO HITLER (1969)
BUNKA BOEI RON (1969)
O MAR DA FERTILIDADE (“Neve da Primavera”, 1968; “Cavalos
em Fuga”, 1969; “O Templo da Aurora” 1970; e “A Queda do Anjo”, 1970) (1968 – 1970)
PEÇAS TEATRAIS
KINDAI NOGAKU
SHU (1956)
ROKUMEI KAN (1956)
TOKA NO KIKU (1961)
MADAME de SADE (1965)
SUSAKU-KE NO METSUBO (1967)
Um comentário:
Mishima eh fooodaaa !!!
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