E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E
vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos
poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos.
Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.
HILDA HILST
Ilustrações:
BERNARD BUFFET
(1928 - 1999)
De acordo com o escritor mato-grossense Ricardo Guilherme
Dicke, é na literatura que reside “o esplendor da linguagem. Um povo sem
literatura é um povo sem alma, sem história, sem memória.” Infelizmente, a maioria dos escritores não permanece, não resiste ao tempo,
isso é óbvio. Não é o caso do gaúcho CAIO
FERNANDO ABREU (1948 – 1996), vinte anos após sua morte, o autor de “Morangos
Mofados” (1982) continua sendo lembrado. Considerado
um dos principais contistas do Brasil, sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos,
evidenciando uma temática própria, juntamente com uma linguagem fora dos
padrões.
Conheci CAIO FERNANDO ABREU pessoalmente, fomos
amigos. No inverno de 1989, ao chegar a Registro, pequena cidade no interior de
São Paulo, soube que eu dividiria quarto de hotel com ele, o homenageado de um
encontro de literatura marginal, coordenado
por Leila Miccolis e Urhacy Faustino. Como um dos escritores convidados, passamos
três dias numa correria de palestras, entrevistas, leituras poéticas, restaurantes
e bares, sem tempo para conversa mais profunda. Ele, ferino e resmungão, não
parecia feliz.
Sombrio, magreza excessiva e grandes olhos de desalento davam ao escritor um aspecto vampiresco. Muito jovem, fiquei assustado com a
sua dor travada, evitando estar ao seu lado o máximo que podia. Na última
noite, após bebedeira em um restaurante, conversamos sobre literatura e cinema.
Ele se empolgou ao recordar a atriz Odete Lara, um dos seus ícones, e me tratou
com aspereza ao ouvir que eu só lera uma única obra sua, o citado “Morangos
Mofados”, talvez seu único sucesso, deixando evidente a fome de reconhecimento.
Caminhamos pela cidade deserta, fomos barrados num clube suburbano proibido
para brancos e houve um momento, num curto espaço de tempo, em que ele me deu
sua mão, e andamos assim, íntimos.
No ano seguinte, em São Paulo , nos
reencontramos duas vezes numa mesma semana: nas residências de Lygia Fagundes
Telles e Hilda Hilst. Eu trabalhava na Editora Siciliano, braço direito de
Pedro Paulo de Senna Madureira, e costumava visitar escritores por exigência
profissional. No apartamento da autora de “Horas Nuas”, um Caio gentil lembrou
Registro com ironia e fez uma comparação inusitada: “Antonio parece galã de
cinema dos anos 50. Algo entre John Gavin e James Garner”. Nunca mais deixou de me chamar Gavin ou
Garner, dependia do entusiasmo.
Na Chácara do Sol de
Hilda Hilst, em Campinas, o clima fechou, tempestuoso. Temperamentais, rancorosos,
eles haviam cortado relações há alguns anos e Caio tentava recuperar o tempo
perdido de uma antiga amizade iniciada em 1968, em plena ditadura militar, quando foi perseguido pelo DOPS (Departamento de
Ordem Política e Social), refugiando-se no sítio da escritora. Não deu certo, a poeta, dura, abriu a boca sem
piedade e ele partiu soltando fogo pelas ventas. Situação tensa e mal resolvida,
aparentemente sem cura.
CAIO FERNANDO ABREU adorava escrever cartas,
assinando muitas vezes como Caio F. - o primo brasileiro da alemã “Christiane
F. Drogada e Prostituída”. Ele se dava alcunhas. Em suas cartas, numa espécie
de voyeurismo literário, tomamos parte da intimidade do escritor, sabendo de peripécias
angustiadas. Demonstrando enorme disposição para o diálogo e a troca, ele
escrevia para amigos e também para se apresentar a escritores que não conhecia,
expressando admiração. Assim fez amizade com Hilda, Clarice Lispector, Nélida
Piñon, entre outros. Morando em diferentes cidades, escrevia loucamente, em um
ritmo alucinante, alimentando-se intelectualmente com esse hábito, em um tempo
em que não existia e-mail nem facebook e as cartas tardavam dias para chegar. No fundo, entre o fuxico e o desabafo, suas cartas
tinham função terapêutica.
Nascido em Santiago
do Boqueirão (RS), jovem ainda mudou-se para Porto
Alegre, onde publicou seus primeiros contos. Cursou Letras na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, depois Artes Dramáticas, mas abandonou para
dedicar-se ao trabalho jornalístico. Em 1973, deixando tudo para trás, viajou
para a Europa, lavando pratos, fazendo traduções e se virando. Andou
pela Espanha, Estocolmo, Amsterdã, Londres e Paris. Retornou a Porto Alegre em
fins de 1974, com os cabelos pintados de vermelho, usando brincos e se vestindo
com batas de veludo cobertas de espelhos. Em 1983 transferiu-se para o Rio de
Janeiro e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo. Dedicou-se ao
jornalismo em revistas como “Pop”, “Nova”, “Veja” e “Manchete”. Foi editor de
“Leia Livros” e colaborou nos jornais “Correio do Povo”, “Zero Hora”, “O Estado
de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo”.
Vivemos uma estranha,
amarga e comovente amizade. Criatura de mistérios e pânicos, telefonava altas
horas da noite, deprimido, bêbado, desabafando num monólogo duro. Algumas vezes
estive no seu apartamento na Haddock Lobo e, vez ou outra, saímos pelos bares
sórdidos do centro da cidade. Era uma amizade fadada ao fracasso, sem confiança
ou afeto, talvez somente por minha conexão com Hilda. Terrivelmente inseguro em
relação a sua literatura, o escritor duvidava do seu talento e maldizia os
deuses por não escrever como Clarice Lispector ou a própria Hilda Hilst.
Eu temia suas
palavras perversas, tristeza absoluta, descrença, críticas ácidas. Na época,
ainda inédito em livro, fiquei muito feliz ao receber algumas linhas escritas
por ele sobre meus contos: “A literatura de Antonio Nahud submerge o leitor num
mundo intrépido de terror e tremor, de beleza indescritível e de uma fascinante
prospecção filosófica sobre o tempo, a morte, o amor, o horror, o sexo, a
busca”.
Hoje consigo dizer, fazia
o possível para evitá-lo. Emocionalmente instável, hiper-sensível, frágil e infeliz, nesse período CAIO FERNANDO ABREU sofria demais. Ele tinha explosões
repentinas de cólera, seguidas de um silêncio assustador. Via nos otimistas seres imperfeitos e indignos de contar com sua amizade. Abominava a esperança. Numa
madrugada, no Sujinho, chorou sem motivo aparente, finalmente lamentando não
ser levado a sério como escritor. “Como não, Caio? Muita gente admira Morangos
Mofados”, apaziguei. “Porque falo de drogas e sexo. Somente por isso”. Foi o
nosso último encontro cúmplice.
Voltei a vê-lo mais duas
ou três vezes, rapidamente, na redação da revista Interview e em vernissages
nos Jardins. Ele dizia: “Como vai, Gavin?”, e nem ao menos esperava resposta. Portador do vírus HIV, seu aspecto debilitado
evidenciava a tragédia, mas nunca conversamos a respeito da doença que o
consumia. Era um tempo difícil para os portadores dessa enfermidade. Tinham
pouco tempo de vida, em geral às voltas com tratamentos penosos. O coquetel
veio depois. Alguns biógrafos dizem que ele descobriu-se portador do vírus da AIDS
na França em 1994. Não é verdade. Em 1990, muito abalada, Hilda conversou
comigo à respeito.
Debochado
e louco por sexo, Caio se rotulava como devasso. À vontade com sua condição
homossexual, numa época de intolerância militar, brincava dizendo que escreveria
um gigantesco livro chamado “Os Homens que Eu Tive”, versão gay de “Mulheres”, de
Bukowski. Ele é um bom contista. Retrata a cultura pop, entre o bom humor e a
tragédia, mas sempre permeado por afeto. Econômica e pessoal, apresenta uma visão exacerbada do
mundo urbano moderno. Escreveu, entre outros: “Ovo Apunhalado” (1975), “O Triângulo das Águas” (1984, Prêmio Jabuti), “Onde Andará Dulce Veiga?” (1990, filmado em 2008 por
Guilherme de Almeida Prado, com Maitê Proença)
e “Ovelhas Negras” (1996).
Sem despedidas, em 1994, CAIO FERNANDO ABREU partiu
para a derradeira temporada europeia, a convite da Casa dos Escritores
Estrangeiros, escrevendo de lá bonitas crônicas para o jornal “O Estado de S.
Paulo”. Em 1992, Hilda rompeu bruscamente comigo, motivada por um ensaio que
escrevi sobre sua vida e obra. De volta a Bahia, nada mais soube sobre o
dramático e infeliz amigo. Em 1996, quando morreu, aos 47 anos, eu vivia longe,
em Madri. Ele passou os últimos meses de vida na casa dos pais, cuidando de
roseiras e canteiros de arruda, alecrim e manjericão.
Uma das
suas maiores aflições era a falta de dinheiro. Ganhou prêmios, foi traduzido para
vários idiomas, mas não conseguiu resolver os problemas financeiros, vivendo
modestamente. Reclamava frequentemente, dizia estar apertado, torcia para um dia
ficar rico. Pensou muitas vezes em desistir da literatura. “Não desisto de
teimosia meio-burra”, disse-me. Felizmente foi teimoso até o fim, deixando uma
obra marcante, farta de sensibilidade.
INVENTÁRIO
DO IRREMEDIÁVEL
(1970)
(1970)
LIMITE
BRANCO
(1971)
(1971)
O OVO
APUNHALADO
(1975)
(1975)
PEDRAS
DE CALCUTÁ
(1977)
(1977)
MORANGOS
MOFADOS
(1982)
(1982)
TRIÂNGULO
DAS ÁGUAS
(1983)
(1983)
OS
DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO
(1988)
(1988)
AS
FRANGAS
(1988)
(1988)
A
MALDIÇÃO DO VALE NEGRO
(co-autor, Luiz Arthur Nunes, 1988)
(co-autor, Luiz Arthur Nunes, 1988)
ONDE
ANDARÁ DULCE VEIGA?
(1990)
(1990)
OVELHAS
NEGRAS
(1995)
(1995)
ESTRANHOS
ESTRANGEIROS
(1996)
(1996)
PEQUENAS
EPIFANIAS
(1996)
(1996)
GIRASSÓIS
(1997)
(1997)
FRAGMENTOS:
8 HISTÓRIAS E UM CONTO INÉDITO
(2000)
(2000)
A VIDA
GRITANDO NOS CANTOS
(2012)
(2012)
POESIAS
NUNCA PUBLICADAS DE CAIO FERNANDO ABREU
(2012)
(2012)
CAIO
FERNANDO ABREU: DE A A Z
(2013)
(2013)
DOIS OU
TRÊS ALMOÇOS, UNS SILÊNCIOS.
Fragmentos
Disso que Chamamos de “Minha Vida”
CAIO
FERNANDO ABREU
Há
alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —,
enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que
chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me
refiro.
Antes
que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer
ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me
entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente
imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns
silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de
"minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De
repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de
vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons
rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por
trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me
sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se
armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha
certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os
olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e
suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah
você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois.
Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca
mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair
daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma
face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia
atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto
de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto:
"Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com
sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no
encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão
basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham.
Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais
a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir
vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que
soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem
perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só
compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em
pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias
encravadas no dia-a-dia.
Era
isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha
opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena
epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu
trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes
dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei
um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás
das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e
com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver:
uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no
meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa
pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando
estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
(Publicado
no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)
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