Entre os
vaga-lumes, nos abraçamos e deitamos na areia. Morvan falou de Pasolini. De uma
crônica em que o poeta italiano compara a luz ofuscante dos projetores da
propaganda fascista com as pequenas luzes de resistência, de arte e beleza, de
momentos cheios de humanidade, tão frágeis quanto autênticos, que ele chamava
de vaga-lumes. Discretos, fugazes, mas insistentes, incansáveis. Esses momentos
de inspiração, de brilho cotidiano, lembram que somos resilientes e amorosos. Durante
um bom tempo, sua voz pausada continuou falando dos vaga-lumes. Era um moço
muito inteligente. Estudava biologia na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e sabia mais do que os próprios professores.
Aquela noite
imortal, ensinou-me que os povos astecas acreditavam que a luz dos vaga-lumes
sinalizava instantes de perspicácia e de conhecimento, uma ação combativa onde
antes havia a escuridão. Da obra de Pasolini, os vaga-lumes aparecem como
personagens erráticos, intocáveis e resistentes em momentos de alegria e furor,
resistindo ao mundo opressor. A fala de Morvan foi um dos bonitos
momentos da minha vida. No escuro, ao som do mar, avistando a lua, a
árvore frondosa, centenas de vaga-lumes e ele desfilando
sensibilidade. Seus olhos eram luzes tão frágeis quanto os próprios vaga-lumes.
Ou como as estrelas, que embora sejam astros gigantescos, daqui de onde estamos
são apenas luzinhas minúsculas.
As luzes
tem algo de místico que nos faz perguntar como pode ser tão fantástica a
natureza. Por isso, a alegria da visão de uma estrela ou de
vaga-lumes. Aquele momento foi de inspiração. Tomado pela sortilégio, percebi o abismo futuro, mas nada revelei, mastigando o silêncio
emocionado. Na mente vidente, soube que os fantasmas do fascismo assombrariam nossas vidas. Soube dos ímpetos
irados, da banalização, da intolerância e da maldade, de todas as incertezas e
da solidão de todos nós. Os insetos de luz me disseram tudo isso, mas só me importava a felicidade inédita de Morvan. Depois de um longo tempo, entre voos e
pousos nos nossos corpos, eles partiram, deixando-nos tomados pela benção de
Deus.
Essa
noite me marcou. Aprendi a procurar o brilho de vaga-lumes, de capturá-los em
essência, de refletir sua luz. Sei que eles não desapareceram, apenas migraram
para outras consciências, fugindo dos holofotes que os confundem. Alguns estão
bem perto de nós, nos roçam na escuridão; outros partiram além do
horizonte, tentando refazer em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu
desejo partilhado. Cabe a nós encontrá-los. Persistente, defendo o amor. Os
vaga-lumes do coração representam as diversas formas de resistência da cultura,
do pensamento e do corpo diante das luzes ofuscantes da sobrevivência, da política e da mídia. Acredito que a experiência luminosa do amor ainda é
possível.
Sendo
assim, apresento Galinhos para amantes capazes de enxergar vaga-lumes. Galinhos
não é magia, não é miragem. É um milagre natural. A receita duna, vento e
tranquilidade segue inabalável na formosa e pequena vila de pescadores. Bucólica
e semideserta, é desses oásis resguardado do turismo de massa graças à
localização estratégica. Uma península com águas turquesa, salinas e
manguezais, habitat de peixes e frutos do mar. A tranquilidade reina no ritmo
dos ventos e das marés. Nesse pequeno vilarejo a 170 km de Natal, capital do
Rio Grande do Norte, paira a sensação de que o tempo se arrasta infinitamente.
O mar
calmo quase sem ondas, barcos de pescas, pássaros de variadas espécies,
o vento movendo lentamente as dunas, o trapiche, nativos cordiais sentados nas
calçadas, bancos de areia que se formam em meio ao oceano, o Farol, salinas
naturais formando pirâmides, imponentes parques eólicos lembrando moinhos de D.
Quixote e a rusticidade local criam uma atmosfera poética memorável. Com mais de dois mil habitantes, é favorável à pesca e concentra cardumes de
peixe-galo, daí a origem do nome do município.
Até 1963
pertencia a São Bento do Norte, e, no período colonial, foi propriedade do
padre jesuíta João de Melo. Reúne manguezal, sertão e caatinga. Quem pisa em
suas areias, geralmente, é turista que aprecia locais agrestes, sem badalação.
Essa tranquilidade seduz europeus, em particular portugueses e franceses. Os
bons ventos que sopram na região atraem os praticantes do kitesurf e windsurf.
No passeio de barco, escoltado por águas limpas, avistamos o imenso céu azul, o
branco opaco das salinas que abastecem os mercados internacionais, arbustos
verdes do mangue e areias amareladas das dunas.
Do alto
das montanhas de areia, avista-se o pacato vilarejo e o mar aberto que
emolduram a paisagem paradisíaca. Não há agências de turismo, mas os próprios
moradores se oferecem como guias. Para circular, aluga-se uma charrete,
conhecida como “jegue-táxi”, o único meio de transporte disponível. Nesse
panorama ao sol, moram artistas e poetas, entre eles o escultor
açoriano João Monteiro e o poeta de Touros (RN), Ivo Rodrigues Ribeiro. Monteiro
produz esculturas de figuras humanas e animais, em imburana, mantendo
seu atelier aberto para visitação, embora não comercialize suas obras. Ivo
louva a terra de adoção em versos:
Galinhos
de brancas velas
De dunas
e praias bonitas
A sua
beleza imita
O
puríssimo céu azul.
De areias
quentes, sol escaldante e águas mornas, a verdadeira magia de Galinhos está na
simplicidade. Uma das suas atrações é a Praia do Farol. Extensa, ela não tem
falésias, tem sossego, cenários das mil-e-uma-noites e piscinas naturais na
Ponta do Farol, local perfeito para curtir o pôr-do-sol. Por volta das 17h30, o
astro-rei se transforma numa imensa bola de fogo e inicia seu mergulho no
horizonte. Como nem tudo é perfeito, a cidade
sofre com problemas de saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de
água.
Galinhos
convida à contemplação, preguiça e desapego ao corre-corre das grandes cidades.
Lugar de paisagem preservada, sem poluição, carros, violência, muvuca.
Um paraíso para quem procura serenidade. Não há muito o que fazer, a não ser
curtir o sossego e o sol, numa região onde quase nunca chove. Panorama para aproveitar, sem culpa, uma temporada de ócio ou de amor. Se der
sorte, quem sabe, até mesmo encontrar na noite uma revoada de vaga-lumes que
pousem em corações apaixonados.
Supondo que os mortos revisitem os lugares onde foram felizes, Morvan seria capaz
de voltar para ver como andam os vaga-lumes de Galinhos. Seria isso satisfatório?
Valeria a pena? Não há motivo para questionar isso agora. Tudo não passa
de miragem de outra época. Algum estímulo, nada mais, para a meia-idade e a
solidão. É tudo, absolutamente tudo, simbólico. Do fundo do coração, agradeço a
essas memórias por sua beleza. Elas tornam o presente maravilhoso, e a própria
vida impactante. Para mexer comigo, recordo cidades, aventuras e amores. Mas o romantismo não se deixa desconcertar. Quer mais. Está predisposto à embriaguez do devaneio.
Sempre
me lembrarei da luz dos vaga-lumes de Galinhos. Ela ainda brilha, como centelhas de fósforos, mas eu não a vejo muito bem. Nesse
momento, no passado, Morvan com gritos de
entusiasmo corre para o mar. Inteiramente nu, mergulhando dentro da água, como
um destemido guerreiro nativo. Decidido a cumprir seus ritos de purificação. Era
uma incrível visão: um homem limpo, livre, despojado. Envolvido na
semi-escuridão, eu o observava, feliz por ele, por mim, pelos vaga-lumes já distantes com seu clarão. Mas essa longa noite terminou; cedeu lugar ao
presente. E, exatamente como as águas do oceano invadindo a noite, a
consciência que não é de ninguém, em particular, mas que contém a todos e a tudo,
passado, presente e futuro, se estende, ininterrupta, para além dos mais sensíveis
contos de amor e dor.
FOTOGRAFIAS
de MORVAN FRANÇA