“Voava a
luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume,
sim, era lindo! Tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se.
Era, outra vez em quando, a alegria”.
GUIMARÃES
ROSA
Primeiras
Estórias (1962)
“O
instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o
instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no
chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o
instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes,
acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago”.
CLARICE
LISPECTOR
Água Viva
(1973)
O passado
é apenas alguma coisa que acabou, mas também renasce das cinzas da
memória quando menos esperamos. Ao encontrar uma série de fotografias feitas por Morvan França (Belo Horizonte, Minas Gerais. 1987 –
2016), na última vez que visitamos Galinhos, no Rio Grande do Norte, em 2014,
pensei imediatamente em vaga-lumes. Essas imagens poéticas merecem compartilhamento.
Galinhos é uma península encantada que nos recebeu várias vezes. Fomos felizes
naquele pedaço de chão. A gente fazia sexo em tudo que é lugar. Na Ilha das
Cobras, nos barcos dos pescadores, nas salinas, no farol, no mar sem fim, na
rede, nas dunas, nas ruas desertas, nas piscinas naturais. Por fim, seria o
túmulo de Morvan.
Na
primeira vez que lá estivemos, em 2012, Morvan ficou tomado por uma felicidade
comovedora, quase infantil, inédita em sua personalidade desiludida. Na calada da
noite, deslumbrado com a alegria de viver, arrastou-me sem destino pela
vila e praias. Não havia ninguém. Nenhuma viva alma. Tudo à meia-luz. De
repente, ele correu como um louco. Mais adiante parou, tirou toda a roupa e desnudo
abraçou o tronco de uma árvore frondosa. Eu me aproximei sem entender o que
acontecia. Ele estava coberto de pequenas luzes. Todo o local tomado por
vaga-lumes. Em êxtase, era a primeira vez que ele via pirilampos em sua vida. Ria
com essas centelhas por todo o seu corpo, deslumbrado de se achar assim
enfeitado de joias.
Os
mágicos insetos bailavam no negrume e Morvan falava palavras emocionadas. Das
noites que se foram, do seu tempo de menino e dos vaga-lumes que não conhecia e
tanto dizem ao coração. Ele me beijava, ele delirava. “Você percebe? Os
vaga-lumes iluminam a alma”, afirmou. Tendo passado a maior parte da existência
sob as luzes cruas da cidade, o sutil piscar dos bichinhos nunca fez parte do seu
cotidiano. “A poluição luminosa das cidades tornou inviável a vida desses insetos, ofuscou seu brilho. Os que restaram se escondem nos mesmos lugares que
as abelhas e as borboletas: bem longe de nós.”, disse.
Entre os
vaga-lumes, nos abraçamos e deitamos na areia. Morvan falou de Pasolini. De uma
crônica em que o poeta italiano compara a luz ofuscante dos projetores da
propaganda fascista com as pequenas luzes de resistência, de arte e beleza, de
momentos cheios de humanidade, tão frágeis quanto autênticos, que ele chamava
de vaga-lumes. Discretos, fugazes, mas insistentes, incansáveis. Esses momentos
de inspiração, de brilho cotidiano, lembram que somos resilientes e amorosos. Durante
um bom tempo, sua voz pausada continuou falando dos vaga-lumes. Era um moço
muito inteligente. Estudava biologia na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e sabia mais do que os próprios professores.
Aquela noite
imortal, ensinou-me que os povos astecas acreditavam que a luz dos vaga-lumes
sinalizava instantes de perspicácia e de conhecimento, uma ação combativa onde
antes havia a escuridão. Da obra de Pasolini, os vaga-lumes aparecem como
personagens erráticos, intocáveis e resistentes em momentos de alegria e furor,
resistindo ao mundo opressor. A fala de Morvan foi um dos bonitos
momentos da minha vida. No escuro, ao som do mar, avistando a lua, a
árvore frondosa, centenas de vaga-lumes e ele desfilando
sensibilidade. Seus olhos eram luzes tão frágeis quanto os próprios vaga-lumes.
Ou como as estrelas, que embora sejam astros gigantescos, daqui de onde estamos
são apenas luzinhas minúsculas.
As luzes
tem algo de místico que nos faz perguntar como pode ser tão fantástica a
natureza. Por isso, a alegria da visão de uma estrela ou de
vaga-lumes. Aquele momento foi de inspiração. Tomado pela sortilégio, percebi o abismo futuro, mas nada revelei, mastigando o silêncio
emocionado. Na mente vidente, soube que os fantasmas do fascismo assombrariam nossas vidas. Soube dos ímpetos
irados, da banalização, da intolerância e da maldade, de todas as incertezas e
da solidão de todos nós. Os insetos de luz me disseram tudo isso, mas só me importava a felicidade inédita de Morvan. Depois de um longo tempo, entre voos e
pousos nos nossos corpos, eles partiram, deixando-nos tomados pela benção de
Deus.
Essa
noite me marcou. Aprendi a procurar o brilho de vaga-lumes, de capturá-los em
essência, de refletir sua luz. Sei que eles não desapareceram, apenas migraram
para outras consciências, fugindo dos holofotes que os confundem. Alguns estão
bem perto de nós, nos roçam na escuridão; outros partiram além do
horizonte, tentando refazer em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu
desejo partilhado. Cabe a nós encontrá-los. Persistente, defendo o amor. Os
vaga-lumes do coração representam as diversas formas de resistência da cultura,
do pensamento e do corpo diante das luzes ofuscantes da sobrevivência, da política e da mídia. Acredito que a experiência luminosa do amor ainda é
possível.
Sendo
assim, apresento Galinhos para amantes capazes de enxergar vaga-lumes. Galinhos
não é magia, não é miragem. É um milagre natural. A receita duna, vento e
tranquilidade segue inabalável na formosa e pequena vila de pescadores. Bucólica
e semideserta, é desses oásis resguardado do turismo de massa graças à
localização estratégica. Uma península com águas turquesa, salinas e
manguezais, habitat de peixes e frutos do mar. A tranquilidade reina no ritmo
dos ventos e das marés. Nesse pequeno vilarejo a 170 km de Natal, capital do
Rio Grande do Norte, paira a sensação de que o tempo se arrasta infinitamente.
O mar
calmo quase sem ondas, barcos de pescas, pássaros de variadas espécies,
o vento movendo lentamente as dunas, o trapiche, nativos cordiais sentados nas
calçadas, bancos de areia que se formam em meio ao oceano, o Farol, salinas
naturais formando pirâmides, imponentes parques eólicos lembrando moinhos de D.
Quixote e a rusticidade local criam uma atmosfera poética memorável. Com mais de dois mil habitantes, é favorável à pesca e concentra cardumes de
peixe-galo, daí a origem do nome do município.
Até 1963
pertencia a São Bento do Norte, e, no período colonial, foi propriedade do
padre jesuíta João de Melo. Reúne manguezal, sertão e caatinga. Quem pisa em
suas areias, geralmente, é turista que aprecia locais agrestes, sem badalação.
Essa tranquilidade seduz europeus, em particular portugueses e franceses. Os
bons ventos que sopram na região atraem os praticantes do kitesurf e windsurf.
No passeio de barco, escoltado por águas limpas, avistamos o imenso céu azul, o
branco opaco das salinas que abastecem os mercados internacionais, arbustos
verdes do mangue e areias amareladas das dunas.
Do alto
das montanhas de areia, avista-se o pacato vilarejo e o mar aberto que
emolduram a paisagem paradisíaca. Não há agências de turismo, mas os próprios
moradores se oferecem como guias. Para circular, aluga-se uma charrete,
conhecida como “jegue-táxi”, o único meio de transporte disponível. Nesse
panorama que cintila ao sol, moram artistas e poetas, entre eles o escultor
açoriano João Monteiro e o poeta de Touros (RN), Ivo Rodrigues Ribeiro. Monteiro
produz vistosas esculturas de figuras humanas e animais, em imburana, mantendo
seu atelier aberto para visitação, embora não comercialize suas obras. O poeta Ivo
louva a terra de adoção em versos singelos:
Galinhos
de brancas velas
De dunas
e praias bonitas
A sua
beleza imita
O
puríssimo céu azul.
De areias
quentes, sol escaldante e águas mornas, a verdadeira magia de Galinhos está na
simplicidade. Uma das suas atrações é a Praia do Farol. Extensa, ela não tem
falésias, tem sossego, cenários das mil-e-uma-noites e piscinas naturais na
Ponta do Farol, local perfeito para curtir o pôr-do-sol. Por volta das 17h30, o
astro-rei se transforma numa imensa bola de fogo e inicia seu mergulho no
horizonte. Como nem tudo é perfeito, a cidade
sofre com problemas de saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de
água.
Galinhos
convida à contemplação, preguiça e desapego ao corre-corre das grandes cidades.
Lugar de paisagem preservada, sem poluição, carros, violência, muvuca.
Um paraíso para quem procura serenidade. Não há muito o que fazer, a não ser
curtir o sossego e o sol, numa região onde quase nunca chove. Panorama para aproveitar, sem culpa, uma temporada de ócio ou de amor. Se der
sorte, quem sabe, até mesmo encontrar na noite uma revoada de vaga-lumes que
pousem em corações apaixonados.
Supondo que os mortos revisitem os lugares onde foram felizes, Morvan seria capaz
de voltar para ver como andam os vaga-lumes de Galinhos. Seria isso satisfatório?
Valeria a pena? Não há motivo para questionar isso agora. Tudo não passa
de miragem de outra época. Algum estímulo, nada mais, para a meia-idade e a
solidão. É tudo, absolutamente tudo, simbólico. Do fundo do coração, agradeço a
essas memórias por sua beleza. Elas tornam o presente maravilhoso, e a própria
vida menos inútil. Na verdade, para mexer comigo, recordo cidades, aventuras e o amor. Mas o romantismo não se deixa desconcertar. Quer mais. Está justamente
predisposto à embriaguez do devaneio.
Sempre
me lembrarei da luz dos vaga-lumes de Galinhos. Ela ainda brilha, como centelhas de fósforos, mas eu não a vejo muito bem. Nesse
momento, no passado, Morvan com gritos de
entusiasmo corre para o mar. Inteiramente nu, mergulhando dentro da água, como
um destemido guerreiro nativo. Decidido a cumprir seus ritos de purificação. Era
uma incrível visão: um homem limpo, livre, despojado. Envolvido na
semi-escuridão, eu o observava, feliz por ele, por mim, pelos vaga-lumes já distantes com seu clarão. Mas essa longa noite terminou; cedeu lugar ao
presente. E, exatamente como as águas do oceano invadindo a noite, a
consciência que não é de ninguém, em particular, mas que contém a todos e a tudo,
passado, presente e futuro, se estende, ininterrupta, para além dos mais sensíveis
contos de amor e dor.
FOTOGRAFIAS
de MORVAN FRANÇA
ANTONIO NAHUD e GASTÃO
Fotos de MORVAN FRANÇA
9 comentários:
Que paraíso! Que relato emocionante!
Lembro-me de vocês sempre juntos em todos os eventos culturais. Um casal lindo e apaixonado. Pensei que seria pra sempre. Fica com Deus.
Antonio Nahud: documentado visualmente a felicidade! Que bom ter vivido tão intensamente!
Na noite sem luar🌙🌙🌙...
é lindo contemplar os vagalumes a passear...
Antonio Nahud Valeu a imensidão do sentimento
As fotos estão lindas e você é um charme
PIRILAMPOS! Minha tia contava que esses pequeninos são gnomos e fadas donos das floresta. Se você fosse do bem eles apareciam aos montes para te saudar. São criaturinhas do bem, que vivem pra enfeita as noites.
Grande fotógrafo contemporâneo. Foi simbora cedo d+
Belíssimo texto. Me comovi.
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