junho 24, 2022

............................................................... A LUZ dos VAGA-LUMES

 

“Voava a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era lindo! Tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria”.
GUIMARÃES ROSA
Primeiras Estórias (1962)
 
“O instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago”.
CLARICE LISPECTOR
Água Viva (1973)
 
 
O passado é apenas alguma coisa que acabou, mas também renasce das cinzas da memória quando menos esperamos. Ao encontrar uma série de fotografias feitas por Morvan França (Belo Horizonte, Minas Gerais. 1987 – 2016), na última vez que visitamos Galinhos, no Rio Grande do Norte, em 2014, pensei imediatamente em vaga-lumes. Essas imagens poéticas merecem compartilhamento. Galinhos é uma península encantada que nos recebeu várias vezes. Fomos felizes naquele pedaço de chão. A gente fazia sexo em tudo que é lugar. Na Ilha das Cobras, nos barcos dos pescadores, nas salinas, no farol, no mar sem fim, na rede, nas dunas, nas ruas desertas, nas piscinas naturais. Por fim, seria o túmulo de Morvan.
 
Na primeira vez que lá estivemos, em 2012, Morvan ficou tomado por uma felicidade comovedora, quase infantil, inédita em sua personalidade desiludida. Na calada da noite, deslumbrado com a alegria de viver, arrastou-me sem destino pela vila e praias. Não havia ninguém. Nenhuma viva alma. Tudo à meia-luz. De repente, ele correu como um louco. Mais adiante parou, tirou toda a roupa e desnudo abraçou o tronco de uma árvore frondosa. Eu me aproximei sem entender o que acontecia. Ele estava coberto de pequenas luzes. Todo o local tomado por vaga-lumes. Em êxtase, era a primeira vez que ele via pirilampos em sua vida. Ria com essas centelhas por todo o seu corpo, deslumbrado de se achar assim enfeitado de joias.
 
Os mágicos insetos bailavam no negrume e Morvan falava palavras emocionadas. Das noites que se foram, do seu tempo de menino e dos vaga-lumes que não conhecia e tanto dizem ao coração. Ele me beijava, ele delirava. “Você percebe? Os vaga-lumes iluminam a alma”, afirmou. Tendo passado a maior parte da existência sob as luzes cruas da cidade, o sutil piscar dos bichinhos nunca fez parte do seu cotidiano. “A poluição luminosa das cidades tornou inviável a vida desses insetos, ofuscou seu brilho. Os que restaram se escondem nos mesmos lugares que as abelhas e as borboletas: bem longe de nós.”, disse.
 


Entre os vaga-lumes, nos abraçamos e deitamos na areia. Morvan falou de Pasolini. De uma crônica em que o poeta italiano compara a luz ofuscante dos projetores da propaganda fascista com as pequenas luzes de resistência, de arte e beleza, de momentos cheios de humanidade, tão frágeis quanto autênticos, que ele chamava de vaga-lumes. Discretos, fugazes, mas insistentes, incansáveis. Esses momentos de inspiração, de brilho cotidiano, lembram que somos resilientes e amorosos. Durante um bom tempo, sua voz pausada continuou falando dos vaga-lumes. Era um moço muito inteligente. Estudava biologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e sabia mais do que os próprios professores.
 
Aquela noite imortal, ensinou-me que os povos astecas acreditavam que a luz dos vaga-lumes sinalizava instantes de perspicácia e de conhecimento, uma ação combativa onde antes havia a escuridão. Da obra de Pasolini, os vaga-lumes aparecem como personagens erráticos, intocáveis e resistentes em momentos de alegria e furor, resistindo ao mundo opressor. A fala de Morvan foi um dos bonitos momentos da minha vida. No escuro, ao som do mar, avistando a lua, a árvore frondosa, centenas de vaga-lumes e ele desfilando sensibilidade. Seus olhos eram luzes tão frágeis quanto os próprios vaga-lumes. Ou como as estrelas, que embora sejam astros gigantescos, daqui de onde estamos são apenas luzinhas minúsculas.
 
As luzes tem algo de místico que nos faz perguntar como pode ser tão fantástica a natureza. Por isso, a alegria da visão de uma estrela ou de vaga-lumes. Aquele momento foi de inspiração. Tomado pela sortilégio, percebi o abismo futuro, mas nada revelei, mastigando o silêncio emocionado. Na mente vidente, soube que os fantasmas do fascismo assombrariam nossas vidas. Soube dos ímpetos irados, da banalização, da intolerância e da maldade, de todas as incertezas e da solidão de todos nós. Os insetos de luz me disseram tudo isso, mas só me importava a felicidade inédita de Morvan. Depois de um longo tempo, entre voos e pousos nos nossos corpos, eles partiram, deixando-nos tomados pela benção de Deus.
 

Essa noite me marcou. Aprendi a procurar o brilho de vaga-lumes, de capturá-los em essência, de refletir sua luz. Sei que eles não desapareceram, apenas migraram para outras consciências, fugindo dos holofotes que os confundem. Alguns estão bem perto de nós, nos roçam na escuridão; outros partiram além do horizonte, tentando refazer em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado. Cabe a nós encontrá-los. Persistente, defendo o amor. Os vaga-lumes do coração representam as diversas formas de resistência da cultura, do pensamento e do corpo diante das luzes ofuscantes da sobrevivência, da política e da mídia. Acredito que a experiência luminosa do amor ainda é possível.
 
Sendo assim, apresento Galinhos para amantes capazes de enxergar vaga-lumes. Galinhos não é magia, não é miragem. É um milagre natural. A receita duna, vento e tranquilidade segue inabalável na formosa e pequena vila de pescadores. Bucólica e semideserta, é desses oásis resguardado do turismo de massa graças à localização estratégica. Uma península com águas turquesa, salinas e manguezais, habitat de peixes e frutos do mar. A tranquilidade reina no ritmo dos ventos e das marés. Nesse pequeno vilarejo a 170 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte, paira a sensação de que o tempo se arrasta infinitamente.
 
O mar calmo quase sem ondas, barcos de pescas, pássaros de variadas espécies, o vento movendo lentamente as dunas, o trapiche, nativos cordiais sentados nas calçadas, bancos de areia que se formam em meio ao oceano, o Farol, salinas naturais formando pirâmides, imponentes parques eólicos lembrando moinhos de D. Quixote e a rusticidade local criam uma atmosfera poética memorável. Com mais de dois mil habitantes, é favorável à pesca e concentra cardumes de peixe-galo, daí a origem do nome do município.
 

Até 1963 pertencia a São Bento do Norte, e, no período colonial, foi propriedade do padre jesuíta João de Melo. Reúne manguezal, sertão e caatinga. Quem pisa em suas areias, geralmente, é turista que aprecia locais agrestes, sem badalação. Essa tranquilidade seduz europeus, em particular portugueses e franceses. Os bons ventos que sopram na região atraem os praticantes do kitesurf e windsurf. No passeio de barco, escoltado por águas limpas, avistamos o imenso céu azul, o branco opaco das salinas que abastecem os mercados internacionais, arbustos verdes do mangue e areias amareladas das dunas.
 
Do alto das montanhas de areia, avista-se o pacato vilarejo e o mar aberto que emolduram a paisagem paradisíaca. Não há agências de turismo, mas os próprios moradores se oferecem como guias. Para circular, aluga-se uma charrete, conhecida como “jegue-táxi”, o único meio de transporte disponível. Nesse panorama que cintila ao sol, moram artistas e poetas, entre eles o escultor açoriano João Monteiro e o poeta de Touros (RN), Ivo Rodrigues Ribeiro. Monteiro produz vistosas esculturas de figuras humanas e animais, em imburana, mantendo seu atelier aberto para visitação, embora não comercialize suas obras. O poeta Ivo louva a terra de adoção em versos singelos:
 
Galinhos de brancas velas
De dunas e praias bonitas
A sua beleza imita
O puríssimo céu azul.
 
De areias quentes, sol escaldante e águas mornas, a verdadeira magia de Galinhos está na simplicidade. Uma das suas atrações é a Praia do Farol. Extensa, ela não tem falésias, tem sossego, cenários das mil-e-uma-noites e piscinas naturais na Ponta do Farol, local perfeito para curtir o pôr-do-sol. Por volta das 17h30, o astro-rei se transforma numa imensa bola de fogo e inicia seu mergulho no horizonte. Como nem tudo é perfeito, a cidade sofre com problemas de saneamento básico, coleta de lixo e abastecimento de água.
 

Galinhos convida à contemplação, preguiça e desapego ao corre-corre das grandes cidades. Lugar de paisagem preservada, sem poluição, carros, violência, muvuca. Um paraíso para quem procura serenidade. Não há muito o que fazer, a não ser curtir o sossego e o sol, numa região onde quase nunca chove. Panorama para aproveitar, sem culpa, uma temporada de ócio ou de amor. Se der sorte, quem sabe, até mesmo encontrar na noite uma revoada de vaga-lumes que pousem em corações apaixonados.
 
Supondo que os mortos revisitem os lugares onde foram felizes, Morvan seria capaz de voltar para ver como andam os vaga-lumes de Galinhos. Seria isso satisfatório? Valeria a pena? Não há motivo para questionar isso agora. Tudo não passa de miragem de outra época. Algum estímulo, nada mais, para a meia-idade e a solidão. É tudo, absolutamente tudo, simbólico. Do fundo do coração, agradeço a essas memórias por sua beleza. Elas tornam o presente maravilhoso, e a própria vida menos inútil. Na verdade, para mexer comigo, recordo cidades, aventuras e o amor. Mas o romantismo não se deixa desconcertar. Quer mais. Está justamente predisposto à embriaguez do devaneio.
 
Sempre me lembrarei da luz dos vaga-lumes de Galinhos. Ela ainda brilha, como centelhas de fósforos, mas eu não a vejo muito bem. Nesse momento, no passado, Morvan com gritos de entusiasmo corre para o mar. Inteiramente nu, mergulhando dentro da água, como um destemido guerreiro nativo. Decidido a cumprir seus ritos de purificação. Era uma incrível visão: um homem limpo, livre, despojado. Envolvido na semi-escuridão, eu o observava, feliz por ele, por mim, pelos vaga-lumes já distantes com seu clarão. Mas essa longa noite terminou; cedeu lugar ao presente. E, exatamente como as águas do oceano invadindo a noite, a consciência que não é de ninguém, em particular, mas que contém a todos e a tudo, passado, presente e futuro, se estende, ininterrupta, para além dos mais sensíveis contos de amor e dor.


LEIA sobre MORVAN
 
FOTOGRAFIAS de MORVAN FRANÇA



ANTONIO NAHUD e GASTÃO
Fotos de MORVAN FRANÇA

9 comentários:

Luana Nunes disse...

Que paraíso! Que relato emocionante!

Joyce Lamartine disse...

Lembro-me de vocês sempre juntos em todos os eventos culturais. Um casal lindo e apaixonado. Pensei que seria pra sempre. Fica com Deus.

Solange Brito disse...


Antonio Nahud: documentado visualmente a felicidade! Que bom ter vivido tão intensamente!

Naná Bittar disse...


Na noite sem luar🌙🌙🌙...
é lindo contemplar os vagalumes a passear...

Solange Brito disse...


Antonio Nahud Valeu a imensidão do sentimento

Ana Maria Moreira disse...

As fotos estão lindas e você é um charme

Mary Ferreira disse...


PIRILAMPOS! Minha tia contava que esses pequeninos são gnomos e fadas donos das floresta. Se você fosse do bem eles apareciam aos montes para te saudar. São criaturinhas do bem, que vivem pra enfeita as noites.

Mardone França disse...


Grande fotógrafo contemporâneo. Foi simbora cedo d+

Marília Menezes disse...


Belíssimo texto. Me comovi.