“O poema
é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o escreve torna-se parte
integrante dele.”
“Tantos
poetas, tão pouca poesia. A poesia não é para nós, é para o fim de nós.”
Fotografias:
DUARTE
BELO
(Lisboa,
Portugal. 1968)
Acredito em
um encantamento místico que sublima a realidade. Enigmático, por vezes experimentado
quando atravessamos os limites do jardim do bem e do mal. Esse jardim, real ou
metafórico, sonhado ou vivido, protege um cotidiano razoável, onde as névoas
dos costumes sociais e do desassossego se destacam. Nele, praticamos uma moral amparada em dogmas, temores e tabus. Com o tempo,
nos tranquiliza a possibilidade da felicidade que surgirá de repente, até compreendermos que a felicidade é fugaz e somente deixa saudades.
Fugir
desse jardim seria sensato. Fugir para aventurar-se. Além dele, há O
OUTRO LADO da LUA. Sem superar mediocridades, crenças estúpidas e convicções
fajutas ou sem nos confrontarmos com os desenganos, seremos robotizados. O
bonito da vida é abandonar-se nos braços – nos braços imensos – do misterioso,
em busca de uma existência desnuda. Ir além do jardim, entre tropeços e acertos,
sacrifícios e resiliências. Morando em Sintra, Portugal, soube de uma vizinha
escritora além desse jardim. Autora de escrita onírica, filosófica, metafísica.
Uma inclassificável literatura libertária, ponte entre o sonho e a vigília.
Bati na
sua porta. MARIA GABRIELA LLANSOL, a
autora da trilogia “Geografia de Rebeldes”, sorriu gentilmente. A penumbra
enluarada preenchia a paisagem com tons dourados. Falei sem receio da
consideração por sua escrita. Escutou com paciência quase maternal. Por fim, convidou-me
para tomarmos um café no dia seguinte. Na hora, o coração tomou-se por um
assombro lúdico. O mesmo havia acontecido ao conhecer Paul Bowles em Tânger,
Hilda Hilst na Chácara do Sol, Al Berto numa tasca de Lisboa ou Doris Lessing
num subúrbio londrino. Sonâmbulo, vaguei noite adentro pelos melindres de
Sintra.
Vaguei
nessa vila em que tudo pode conhecer, desde árvores que falam a luas que se
duplicam. Perder-se naquelas ruas estreitas e mágicas era constatar que o tempo
não existe. Fazia perguntas ao vento. Quanto tempo terei para escrever
sensações? Quantas primaveras estão à disposição? Questionamentos
desimportantes, que fazem parte do jardim. O significativo são os sortilégios
do OUTRO LADO da LUA. No horário marcado do encontro, apareci com um buquê de narcisos, e
lá estava ela: baixa estatura, meiga, cabelos grisalhos
presos num coque, vestida como uma camponesa com um bonito xale negro. Uma
aparição de contos de fadas!
Ofereceu
café e queijadas. Enveredamos pelos caminhos do
pensamento, falando da literatura que vem da alma, de ausências sentidas, de
poetas e da nossa história. Ela transmitia paz. Nos presenteamos com livros,
silêncios, cumplicidades. Iluminando o esplendor do Monte da Lua, visto através
da janela, a lua domava a escuridão. Depois de cerca de duas horas, despedi-me.
Sentia-me abençoado, como uma criança saciada. Subi o caminho que leva à Quinta
da Regaleira, asfixiado pelo perfume de amores-perfeitos, parecendo
que tudo girava. Segui em frente, como se lá em cima acabasse o mundo. A
vertigem tomando conta do meu ser.
Durante o tempo em que morei em Sintra, no final
dos anos 1990 e início dos 2000, voltamos a nos encontrar outras vezes. A senhora de olhos profundos, por
vezes mergulhando no silêncio contemplativo, morava numa casa antiga,
amarela, com uma buganvília à porta. Sua moradia era um acumulo de heranças que vinham dos avós, dos pais, de tias, mais o que ela própria trouxe
da temporada na Bélgica. Dividia o lugar com inúmeros gatos. Ganhei dela um
deles, negro, vira-lata e sapeca, que dei o nome de Romeu, e meses depois
desapareceu durante uma das excursões ao bosque do Palácio da Pena. Entre um
gole de chá de camomila e deleitosas queijadas de cenoura, conversávamos sobre
plantas, culinária, pintura, literatura brasileira.
Assistimos
juntos antigos filmes de Renoir, Mizoguchi e Antonioni. Havia
nela uma atmosfera de cordialidade e afeto. Era quase sempre vibrante a
intensidade que vinha das suas palavras. Revelava também uma sageza feita de
uma inteligência sutil e de algum humor, e sobretudo de uma enorme capacidade
de ir ao encontro do ponto de vista do outro, respeitando e acrescentando
sempre algo inquietante. Certa vez me tocou o coração ao falar sobre o “preço
da solidão”. Eu me identifiquei plenamente. Em 2003, convidou-me para um
encontro literário em torno de sua obra, na Serra da Arrábida, em Setúbal. Tive
vontade de ir, mas não apareci devido a compromissos profissionais. Por fim,
depois que parti de Sintra, trocamos cartas.
Considerada
uma autora hermética e de difícil compreensão. Apontada como um dos nomes mais
inovadores e importantes da ficção portuguesa contemporânea, MARIA GABRIELA LLANSOL (Lisboa, Portugal.
1931 – 2008) leva às últimas consequências a criação de um universo pessoal. Estilhaça as fronteiras entre o que designamos por ficção, poesia,
ensaio ou memórias. Ela iniciou sua carreira em 1962, ao publicar “Os Pregos na
Erva”. Toda sua escrita é a de um questionamento, sobretudo, das formas
literárias. Sua linguagem debate-se com a própria linguagem, processo
autofágico que problematiza a essência do ser e, ao mesmo tempo a essência da
palavra.
Audaciosa,
a poeta traduziu ao português nomes como Emily Dickinson, Paul Verlaine, Rainer
Maria Rilke, Arthur Rimbaud, Guillaume Apollinaire, Paul Éluard e Charles
Baudelaire. Nos anos 60, sob o regime de Salazar, a pobreza e a
opressão tinham empurrado milhares de portugueses para o exílio. Pessoas que se tornavam zeladores em Paris ou padeiros no Rio de Janeiro. A
cultura de Portugal tinha se reduzido a futebol, fado e Fátima. O marido de MARIA GABRIELA LLANSOL, Augusto
Joaquim, recusara-se a participar das guerras coloniais na África e desertara.
Foram para a Bélgica, em 1965, numa cidadezinha chamada Jodoigne. Regressaram vinte
anos depois.
Para o
crítico e professor Eduardo Lourenço, a poeta está no âmbito de Camões e
Fernando Pessoa: “Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de
fenômeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a
encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita”. Segundo Maria
João Cantinho, ela “mergulha no abismo – já não da literatura – mas da própria
escrita, no que ela contém de perigosa implosão. E é nesse limiar,
entre o exprimível e o inexprimível, que se sustenta o texto llansoliano”. Nesta
escrita enigmática e repleta de fulgor, há uma estranheza e uma complexidade
que envolvem toda sua obra. A arte de MARIA GABRIELA LLANSOL, mais do que
narrativas, são conjuntos de pequenas meditações.
Um dos
traços da sua produção consiste na negação da escrita tradicional,
com inserção no texto de diferentes caracteres tipográficos, espaços em branco,
traços que dividem o texto. Muitos dos seus livros foram
publicados, mas seu arquivo em Sintra está abarrotado de escritos inéditos. Existem
78 cadernos, 53 agendas, 12 blocos de notas, e milhares de páginas
datilografadas e organizadas pela escritora, diários, obras de juventude, um
arquivo fotográfico, correspondência, uma biblioteca cujos livros estão cheios
de anotações.
Em seu
primeiro diário, a escritora afirma que os seus textos compõem um livro
único. Sou llansoliano, um admirador daquela que
considero uma das grandes escritoras em português, do nível de Florberla
Espanca, Clarice Lispector, Sophia
de Mello Breyner Andresen, Cecília Meireles ou Hilda Hilst. Aprendi que não é em busca de enredo ou
do texto mastigado tradicional que lemos MARIA GABRIELA LLANSOL, é pela fonte
de energia que seus livros contêm, uma energia substancial muito além do jardim
de todos nós.
POEMAS de
MARIA GABRIELA LLANSOL
01.
Não há
mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o
corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca,
os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente.
Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir
de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as
janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às
cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto
contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro
uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se
a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme.
Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te
quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
-----------------------------
até que a dor alegre recomece.
02.
Não há
mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o
corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca,
os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente.
Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir
de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as
janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às
cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto
contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro
uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se
a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme.
Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te
quer. Soprá-la para dentro de ti
até que a
dor alegre recomece.
03.
Não
resisto a contar à rapariga:
Ontem
passei por um encontro entre dois rapazes que se amavam,
Curtiam,
como dizes, sentados no colo um do outro. Era um amor
Humano
nas raias do explícito. Aquele laço de se receberem
Mutuamente
no regaço estava todavia perto de desatar-se Triste
Que assim
fosse.
Havia
sobre a cena uma pequena caixa, e aquele que decidira
Desunir-se
escrevia o seu nome animal dentro dela. Por sua vez,
O outro
para nomear o próximo, desenhou com lentidão um
Pequeno
candeeiro de muitas luzes. Vi perfeitamente a progressão
Do
desenho, e como ele se detinha na contemplação de cada
Anjo.
04.
Há-de-nós
– que refulges no texto – santificado
seja o
teu labor, sereno e incansável,
o azul de
cada dia nos dai hoje
e assim
se prolongue a noite
e o seu
fruto – uma manhã de seda
tão cheia
de impensado como esta;
pelas
manchas das palavras que dizemos _______ nos dai
uma
língua, uma trepidação de incognoscível,
não
universal mas
exacta,
que te atravesse, ó Há,
e rasgue
na terra um jardim edénico,
desocultado,
florescendo
de é, de sempre e de aqui.
05.
O começo
de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve
é o começo de um livro – mantém o começo perseguindo.
Quando
este se prolonga, um livro seguinte se inicia.
Basta
esperar que a decisão de intimidade se pronuncie.
Vou
chamar-lhe fio ___ linha, confiança, crédito, tecido.
06.
Como a
chuva não cessasse de cair em caudais,
Tiras de
tinta começaram a aparecer na fotografia
O tecto
da chuva rompera o abrigo da sua alma
E o verde
circulava a deriva rompendo as plantas.
Elvira
deixara cair seus olhos de objectiva nas
Folhas
verdes. Verificava que era sobre elas e como
Elas que
sempre olhara a natureza. Ver o real
Em folhas
era amá-lo ininterruptamente. Essa
Contiguidade
acabara por compor uma rede
Que tinha
tanto de próximo como de diferente,
E a chuva
não era chuva, transparecia. Eis, pensou.
Por que
chove na fotografia, por que chove
Em
correntes sobre as folhas?
07.
_______
escrevo,
para que
o romance não morra.
Escrevo,
para que continue,
mesmo se,
para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que
se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que
o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que
o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis
de nomear.
08.
Abro-vos
a Casa numa interrogação.
A Casa é
esta _____________ lugar e corpo dividido, onde meu
corpo se
interroga,
reunindo
os fragmentos das coisas_____________coisa é
uma
janela,
a noite,
a descida
rápida da temperatura húmida,
um carro
que parte em frente do portão,
os
lugares à volta e as suas tardes de festa em dias de verão,
o momento
seguinte do silêncio,
o que
nasce de nós
perto, em
redor e tão longe.
09.
Eu sou
uma sala de espera para os meus companheiros, se vierem
na
piedade
na
ternura
na
humildade
Esta é a
minha aliança
porque
agora as obras que escrevo e tenho para escrever são
múltiplas,
como o silêncio.
TODA a
OBRA de MARIA GABRIELA LLANSOL
Os PREGOS
na ERVA (1962)
DEPOIS de
os PREGOS na ERVA (1973)
O LIVRO das
COMUNIDADES (1977)
A
RESTANTE VIDA (1983)
Na CASA de
JULHO e AGOSTO (1984)
CAUSA
AMANTE (1984)
Um FALCÃO
em PUNHO (1985)
CONTOS do
MAL ERRANTE (1986)
FINITA
(1987)
Da SEBE ao
SER (1988)
AMAR um
CÃO (1990)
O RAIO
SOBRE o LÁPIS (1990)
Um BEIJO
DADO MAIS TARDE (1990)
LISBOALEIPZIG
1: o ENCONTRO INESPERADO do DIVERSO (1994)
LISBOALEIPZIG
2: o ENSAIO de MÚSICA (1995)
A TERRA
FORA do SÍTIO (1998)
CARTA ao
LEGENTE (1998)
ARDENTE
TEXTO JOSHUA (1999)
ONDE VAIS,
DRAMA-POESIA? (2000).
CANTILENO
(2000)MARIA GABRIELA LLANSOL: o OUTRO LADO da LUA
DIÁRIOS
Um FALCÃO
no PUNHO. DIÁRIO I (1985)
FINITA.
DIÁRIO II (1987)
INQUÉRITO
às QUATRO CONFIDÊNCIAS. DIÁRIO III (1996)
PUBLICAÇÕES
PÓSTUMAS
LIVRO de
HORAS I: UMA DATA em CADA MÃO (2009)
LIVRO de
HORAS II: UM ARCO SINGULAR (2010)
LIVRO de
HORAS III: NUMEROSAS LINHAS (2013)
LIVRO de
HORAS IV: A PALAVRA IMEDIATA (2014)
LIVRO de
HORAS V: O AZUL IMPERFEITO (2015)
TRADUÇÕES
Emily
Dickinson, BILHETINHOS com POEMAS (1995)
Paul
Verlaine, SAGEZA (1995)
Rainer
Maria Rilke, FRUTOS e APONTAMENTOS (1996)
Rimbaud,
O RAPAZ RARO (1998)
Teresa de
Lisieux, O ALTO VOO da COTOVIA (1999)
Apollinaire,
MAIS NOVEMBRO do QUE SETEMBRO (2001)
Paul
Éluard, ÚLTIMOS POEMAS de AMOR (2002)
Charles
Baudelaire, As FLORES do MAL (2003)
A CASA de MARIA GABRIELA
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