maio 20, 2022

................... MARIA GABRIELA LLANSOL: o OUTRO LADO da LUA



 

“O poema é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o escreve torna-se parte integrante dele.”
 
“Tantos poetas, tão pouca poesia. A poesia não é para nós, é para o fim de nós.”
 
Fotografias: DUARTE BELO
(Lisboa, Portugal. 1968)
 
 
Acredito em um encantamento místico que sublima a realidade. Enigmático, por vezes experimentado quando atravessamos os limites do jardim do bem e do mal. Esse jardim, real ou metafórico, sonhado ou vivido, protege um cotidiano razoável, onde as névoas dos costumes sociais e do desassossego se destacam. Nele, praticamos uma moral amparada em dogmas, temores e tabus. Com o tempo, nos tranquiliza a possibilidade da felicidade que surgirá de repente, até compreendermos que a felicidade é fugaz e somente deixa saudades.
 
Fugir desse jardim seria sensato. Fugir para aventurar-se. Além dele, há O OUTRO LADO da LUA. Sem superar mediocridades, crenças estúpidas e convicções fajutas ou sem nos confrontarmos com os desenganos, seremos robotizados. O bonito da vida é abandonar-se nos braços – nos braços imensos – do misterioso, em busca de uma existência desnuda. Ir além do jardim, entre tropeços e acertos, sacrifícios e resiliências. Morando em Sintra, Portugal, soube de uma vizinha escritora além desse jardim. Autora de escrita onírica, filosófica, metafísica. Uma inclassificável literatura libertária, ponte entre o sonho e a vigília.

Bati na sua porta. MARIA GABRIELA LLANSOL, a autora da trilogia “Geografia de Rebeldes”, sorriu gentilmente. A penumbra enluarada preenchia a paisagem com tons dourados. Falei sem receio da consideração por sua escrita. Escutou com paciência quase maternal. Por fim, convidou-me para tomarmos um café no dia seguinte. Na hora, o coração tomou-se por um assombro lúdico. O mesmo havia acontecido ao conhecer Paul Bowles em Tânger, Hilda Hilst na Chácara do Sol, Al Berto numa tasca de Lisboa ou Doris Lessing num subúrbio londrino. Sonâmbulo, vaguei noite adentro pelos melindres de Sintra.
 
Vaguei nessa vila em que tudo pode conhecer, desde árvores que falam a luas que se duplicam. Perder-se naquelas ruas estreitas e mágicas era constatar que o tempo não existe. Fazia perguntas ao vento. Quanto tempo terei para escrever sensações? Quantas primaveras estão à disposição? Questionamentos desimportantes, que fazem parte do jardim. O significativo são os sortilégios do OUTRO LADO da LUA. No horário marcado do encontro, apareci com um buquê de narcisos, e lá estava ela: baixa estatura, meiga, cabelos grisalhos presos num coque, vestida como uma camponesa com um bonito xale negro. Uma aparição de contos de fadas!

Ofereceu café e queijadas. Enveredamos pelos caminhos do pensamento, falando da literatura que vem da alma, de ausências sentidas, de poetas e da nossa história. Ela transmitia paz. Nos presenteamos com livros, silêncios, cumplicidades. Iluminando o esplendor do Monte da Lua, visto através da janela, a lua domava a escuridão. Depois de cerca de duas horas, despedi-me. Sentia-me abençoado, como uma criança saciada. Subi o caminho que leva à Quinta da Regaleira, asfixiado pelo perfume de amores-perfeitos, parecendo que tudo girava. Segui em frente, como se lá em cima acabasse o mundo. A vertigem tomando conta do meu ser.


Durante o tempo em que morei em Sintra, no final dos anos 1990 e início dos 2000, voltamos a nos encontrar outras vezes. A senhora de olhos profundos, por vezes mergulhando no silêncio contemplativo, morava numa casa antiga, amarela, com uma buganvília à porta. Sua moradia era um acumulo de heranças que vinham dos avós, dos pais, de tias, mais o que ela própria trouxe da temporada na Bélgica. Dividia o lugar com inúmeros gatos. Ganhei dela um deles, negro, vira-lata e sapeca, que dei o nome de Romeu, e meses depois desapareceu durante uma das excursões ao bosque do Palácio da Pena. Entre um gole de chá de camomila e deleitosas queijadas de cenoura, conversávamos sobre plantas, culinária, pintura, literatura brasileira.

Assistimos juntos antigos filmes de Renoir, Mizoguchi e Antonioni. Havia nela uma atmosfera de cordialidade e afeto. Era quase sempre vibrante a intensidade que vinha das suas palavras. Revelava também uma sageza feita de uma inteligência sutil e de algum humor, e sobretudo de uma enorme capacidade de ir ao encontro do ponto de vista do outro, respeitando e acrescentando sempre algo inquietante. Certa vez me tocou o coração ao falar sobre o “preço da solidão”. Eu me identifiquei plenamente. Em 2003, convidou-me para um encontro literário em torno de sua obra, na Serra da Arrábida, em Setúbal. Tive vontade de ir, mas não apareci devido a compromissos profissionais. Por fim, depois que parti de Sintra, trocamos cartas.

Considerada uma autora hermética e de difícil compreensão. Apontada como um dos nomes mais inovadores e importantes da ficção portuguesa contemporânea, MARIA GABRIELA LLANSOL (Lisboa, Portugal. 1931 – 2008) leva às últimas consequências a criação de um universo pessoal. Estilhaça as fronteiras entre o que designamos por ficção, poesia, ensaio ou memórias. Ela iniciou sua carreira em 1962, ao publicar “Os Pregos na Erva”. Toda sua escrita é a de um questionamento, sobretudo, das formas literárias. Sua linguagem debate-se com a própria linguagem, processo autofágico que problematiza a essência do ser e, ao mesmo tempo a essência da palavra.
 
Audaciosa, a poeta traduziu ao português nomes como Emily Dickinson, Paul Verlaine, Rainer Maria Rilke, Arthur Rimbaud, Guillaume Apollinaire, Paul Éluard e Charles Baudelaire. Nos anos 60, sob o regime de Salazar, a pobreza e a opressão tinham empurrado milhares de portugueses para o exílio. Pessoas que se tornavam zeladores em Paris ou padeiros no Rio de Janeiro. A cultura de Portugal tinha se reduzido a futebol, fado e Fátima. O marido de MARIA GABRIELA LLANSOL, Augusto Joaquim, recusara-se a participar das guerras coloniais na África e desertara. Foram para a Bélgica, em 1965, numa cidadezinha chamada Jodoigne. Regressaram vinte anos depois.
 
Para o crítico e professor Eduardo Lourenço, a poeta está no âmbito de Camões e Fernando Pessoa: “Nunca será uma autora fácil e consensual. É uma espécie de fenômeno misterioso. Alguém vindo de uma outra espécie de planeta. Quem a encontra é difícil não ficar fascinado por essa escrita”. Segundo Maria João Cantinho, ela “mergulha no abismo – já não da literatura – mas da própria escrita, no que ela contém de perigosa implosão. E é nesse limiar, entre o exprimível e o inexprimível, que se sustenta o texto llansoliano”. Nesta escrita enigmática e repleta de fulgor, há uma estranheza e uma complexidade que envolvem toda sua obra. A arte de MARIA GABRIELA LLANSOL, mais do que narrativas, são conjuntos de pequenas meditações.
 
Um dos traços da sua produção consiste na negação da escrita tradicional, com inserção no texto de diferentes caracteres tipográficos, espaços em branco, traços que dividem o texto. Muitos dos seus livros foram publicados, mas seu arquivo em Sintra está abarrotado de escritos inéditos. Existem 78 cadernos, 53 agendas, 12 blocos de notas, e milhares de páginas datilografadas e organizadas pela escritora, diários, obras de juventude, um arquivo fotográfico, correspondência, uma biblioteca cujos livros estão cheios de anotações.
 
Em seu primeiro diário, a escritora afirma que os seus textos compõem um livro único. Sou llansoliano, um admirador daquela que considero uma das grandes escritoras em português, do nível de Florberla Espanca, Clarice Lispector, Sophia de Mello Breyner Andresen, Cecília Meireles ou Hilda Hilst.  Aprendi que não é em busca de enredo ou do texto mastigado tradicional que lemos MARIA GABRIELA LLANSOL, é pela fonte de energia que seus livros contêm, uma energia substancial muito além do jardim de todos nós.


POEMAS de MARIA GABRIELA LLANSOL
 
01.
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.
 
02.
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti
até que a dor alegre recomece.
 

03.
Não resisto a contar à rapariga:
Ontem passei por um encontro entre dois rapazes que se amavam,
Curtiam, como dizes, sentados no colo um do outro. Era um amor
Humano nas raias do explícito. Aquele laço de se receberem
Mutuamente no regaço estava todavia perto de desatar-se Triste
Que assim fosse.
Havia sobre a cena uma pequena caixa, e aquele que decidira
Desunir-se escrevia o seu nome animal dentro dela. Por sua vez,
O outro para nomear o próximo, desenhou com lentidão um
Pequeno candeeiro de muitas luzes. Vi perfeitamente a progressão
Do desenho, e como ele se detinha na contemplação de cada
Anjo.
 
04.
Há-de-nós – que refulges no texto – santificado
seja o teu labor, sereno e incansável,
o azul de cada dia nos dai hoje
e assim se prolongue a noite
e o seu fruto – uma manhã de seda
tão cheia de impensado como esta;
pelas manchas das palavras que dizemos _______ nos dai
uma língua, uma trepidação de incognoscível,
não universal mas
exacta, que te atravesse, ó Há,
e rasgue na terra um jardim edénico,
desocultado,
florescendo de é, de sempre e de aqui.
 

05.
O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo perseguindo.
Quando este se prolonga, um livro seguinte se inicia.
Basta esperar que a decisão de intimidade se pronuncie.
Vou chamar-lhe fio ___ linha, confiança, crédito, tecido.
 
06.
Como a chuva não cessasse de cair em caudais,
Tiras de tinta começaram a aparecer na fotografia
O tecto da chuva rompera o abrigo da sua alma
E o verde circulava a deriva rompendo as plantas.
Elvira deixara cair seus olhos de objectiva nas
Folhas verdes. Verificava que era sobre elas e como
Elas que sempre olhara a natureza. Ver o real
Em folhas era amá-lo ininterruptamente. Essa
Contiguidade acabara por compor uma rede
Que tinha tanto de próximo como de diferente,
E a chuva não era chuva, transparecia. Eis, pensou.
Por que chove na fotografia, por que chove
Em correntes sobre as folhas?
 

07.
_______ escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma,
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear.
 
08.
Abro-vos a Casa numa interrogação.
A Casa é esta _____________ lugar e corpo dividido, onde meu
corpo se interroga,
reunindo os fragmentos das coisas_____________coisa é
uma janela,
a noite,
a descida rápida da temperatura húmida,
um carro que parte em frente do portão,
os lugares à volta e as suas tardes de festa em dias de verão,
o momento seguinte do silêncio,
o que nasce de nós
perto, em redor e tão longe.
 
09.
Eu sou uma sala de espera para os meus companheiros, se vierem
na piedade
na ternura
na humildade
Esta é a minha aliança
porque agora as obras que escrevo e tenho para escrever são
múltiplas, como o silêncio.


TODA a OBRA de MARIA GABRIELA LLANSOL
 
Os PREGOS na ERVA (1962)
DEPOIS de os PREGOS na ERVA (1973)
O LIVRO das COMUNIDADES (1977)
A RESTANTE VIDA (1983)
Na CASA de JULHO e AGOSTO (1984)
CAUSA AMANTE (1984)
Um FALCÃO em PUNHO (1985)
CONTOS do MAL ERRANTE (1986)
FINITA (1987)
Da SEBE ao SER (1988)
AMAR um CÃO (1990)
O RAIO SOBRE o LÁPIS (1990)
Um BEIJO DADO MAIS TARDE (1990)
LISBOALEIPZIG 1: o ENCONTRO INESPERADO do DIVERSO (1994)
LISBOALEIPZIG 2: o ENSAIO de MÚSICA (1995)
A TERRA FORA do SÍTIO (1998)
CARTA ao LEGENTE (1998)
ARDENTE TEXTO JOSHUA (1999)
ONDE VAIS, DRAMA-POESIA? (2000).
CANTILENO (2000)MARIA GABRIELA LLANSOL: o OUTRO LADO da LUA
 
DIÁRIOS
Um FALCÃO no PUNHO. DIÁRIO I (1985)
FINITA. DIÁRIO II (1987)
INQUÉRITO às QUATRO CONFIDÊNCIAS. DIÁRIO III (1996)
 
PUBLICAÇÕES PÓSTUMAS
LIVRO de HORAS I: UMA DATA em CADA MÃO (2009)
LIVRO de HORAS II: UM ARCO SINGULAR (2010)
LIVRO de HORAS III: NUMEROSAS LINHAS (2013)
LIVRO de HORAS IV: A PALAVRA IMEDIATA (2014)
LIVRO de HORAS V: O AZUL IMPERFEITO (2015)
 
TRADUÇÕES
Emily Dickinson, BILHETINHOS com POEMAS (1995)
Paul Verlaine, SAGEZA (1995)
Rainer Maria Rilke, FRUTOS e APONTAMENTOS (1996)
Rimbaud, O RAPAZ RARO (1998)
Teresa de Lisieux, O ALTO VOO da COTOVIA (1999)
Apollinaire, MAIS NOVEMBRO do QUE SETEMBRO (2001)
Paul Éluard, ÚLTIMOS POEMAS de AMOR (2002)
Charles Baudelaire, As FLORES do MAL (2003)

A CASA de MARIA GABRIELA


ALGUMAS CARTAS de MARIA GABRIELA




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