Há cinco anos
e oito meses. Voltei no dia 10 de março deste ano.
Que
diferenças você notou entre o Rio de antes e o de agora?
O de hoje
me parece mais frenético do que o de antes. É uma impressão um tanto subjetiva,
de uma pessoa que apenas acaba de chegar. Sinto isso no comportamento das
pessoas e no próprio aspecto da cidade, que parece mais um canteiro de obras.
As pessoas estão mais agitadas, mais apressadas – como se não soubessem o que
vai acontecer no minuto seguinte. Não há um ponto da cidade onde eu chegue e
não veja buracos, terra e pedras, tudo amontoado e, às vezes, como se ali
estivesse para sempre. Outra coisa que noto também é o distanciamento maior
entre as classes sociais. Eu, que não tenho carro e que ando de ônibus, percebo
que os usuários desses veículos são quase muito
modestas. As outras devem estar no seu próprio carro. É uma sensação parecida com a que eu sentia em Lima, no Peru, onde o contraste social é
enorme.
O mesmo
eu senti na Colômbia, Gullar, onde havia multimilionários e o resto era
completamente abandonado por todos, inclusive pelo governo. Lá a miséria é
maior do que no Brasil, porque, com o frio, tudo piora.
É claro,
o clima do Brasil é uma das sortes nossas, Clarice.
Você tem reencontrado
aqui os seus grandes amigos?
Claro, e
esta é uma das alegrias da volta. Mas alguns desapareceram,
como o Vianinha e Paulo Pontes.
Você já
foi ao Maranhão, depois que voltou?
Não, no
momento não tenho condições para ver minha terra natal. Aqui me aguardavam
problemas muito graves de família que exigem solução urgente e minha total
dedicação. Mas, assim que eu puder, irei a São Luís para rever minha mãe, meus
irmãos e minha cidade.
No “Poema Sujo” você me fez sentir uma criança diante da selva ou
de um altíssimo monumento. E quando falou em “noites envenenadas de
jasmim” – pois bem, senti-me de volta a Recife, que é a minha terra.
É,
suponho que o jasmim é algo muito forte. Assim o senti em Valparaíso, quando
tomei um susto em relação ao intenso perfume dessa flor. Também então eu fui
transportado de novo à minha cidade e infância. Em Lima, perto da casa onde
morava, havia um muro, de onde se debruçava um jasmineiro.
Em que
cidades você morou, durante seu tempo de exílio?
A maior
parte na América Latina, mas estive em Paris e Roma. Depois em Santiago, Lima e Buenos Aires.
Como é
que você se sustentava nesses lugares?
Como a
maior parte do tempo eu vivi sem a família, não necessitava de muito dinheiro. Escrevi para revistas brasileiras e dei aulas de português.
Eventualmente, fazia palestras sobre arte e literatura brasileiras.
Você
encontrou aqui, na sua volta, facilidade de arranjar um bom emprego?
Durante
todo o tempo de minha ausência, me mantive profissionalmente vinculado ao
jornal “O Estado de S. Paulo”, onde eu fora redator desde 1962. Ao voltar, o
diretor da sucursal do “Estado”, Villas Boas, que me recebeu no aeroporto, foi
logo dizendo: “Como é? Amanhã você já estará na redação.” Bem, no dia seguinte
não, mas na semana seguinte recomecei a trabalhar.
Qual a
sua função no “Estadão”?
Sou
copidesque, isto é, reescrevo o que os outros escrevem.
Marques
Rebelo me disse uma vez que reescrever era mais simples que escrever. Quanto a
mim, Gullar, eu discordo, pois minhas frases já vêm prontas. Em você, como se
processa o ato criador? Você reescreve?
Não, só
me sento para escrever quando sinto que a coisa está praticamente pronta dentro
de mim. Depois que escrevo, faço, como você, eventualmente, algumas emendas,
mas é só.
Gullar,
vou lhe fazer uma pergunta muito difícil que eu mesma não saberia como
responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra escrita?
Em mim o
poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. Por exemplo,
quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte modo: eu
acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra. À
porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo
para as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o
choque. Eu pensei: se fosse no Vietnã aquela senhora poderia encontrar a sua
casa em chamas. Eu próprio havia marcado para sair de férias, um mês depois.
Pensei: num país em guerra deve ser impossível planejar a vida, ir ao cinema, tudo pode ser desfeito de um momento para o outro. É a
insegurança total. O choque emocional já por si provoca as palavras, eu em
geral não me preocupo em escolhê-las, elas jorram.
Glauber
Rocha disse que o “Poema Sujo” é o ponto culminante do concretismo. Qual é a
sua opinião?
O “Poema Sujo”
não tem nada a ver com o concretismo. Eu mesmo nunca fiz concretismo, já que
meus poemas, naquela época, destoavam da concepção ortodoxa dos paulistas que
lançaram o movimento. As coisas que escrevia, então, davam continuidade à minha
própria experiência, onde já havia a utilização dos elementos visuais. O “Poema
Sujo” incorpora toda a minha experiência formal e, no aspecto gráfico, se liga
ao neoconcretismo. Conversando posteriormente com Glauber, soube que ele nessa
frase, usando a expressão concretismo, incluía a poesia neoconcreta.
Sua
poesia passou por sucessivas etapas, verdadeiras rupturas com as fases
anteriores, e há quem diga que seu último poema rompe com tudo o que você fez
antes. Como explica isso?
As
rupturas são aparentes, ou melhor, de superfície. Sempre fiz literatura como um
modo de entender a vida e a mim mesmo. A vida muda, eu mudo, as formas de
expressão refletem essas mudanças. O “Poema Sujo” rompe com certa rigidez, a
que a própria prática de escrever vai submetendo o escritor, este poema é mais
livre, é sobretudo um reencontro comigo mesmo.
O “Poema Sujo”
é um poema de exílio?
Não
somente. Acredito que a condição de exilado penetra todo o poema e deve ter
sido uma de suas motivações. Mas creio que o poema vai além disso – ele é uma
tentativa de dizer tudo como se depois dele eu fosse morrer. O que ele
significa exatamente, eu não sei.
Você está
escrevendo atualmente algum poema?
Não. Em 1975
escrevi um curto poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer. Mas é
praticamente inédito pois só foi publicado uma vez numa revista especializada
de arquitetura.
Ah, se
você soubesse de cor esse poema desconhecido, nós, que gostamos tanto de você e
de Oscar, ficaríamos muito contentes...
Sei de
cor, chama-se “Lições de Arquitetura”:
No ombro
do planeta (em Caracas)
Oscar
depositou para sempre uma ave uma flor
ele não
faz de pedra nossas casas
faz de
asas.
No
coração de Argel sofrida
fez aterrissar
uma tarde uma nave estelar
e linda
como
ainda há de ser a vida
(Com seu
traço futuro Oscar nos ensina que o sonho é popular)
Nos
ensina a sonhar
mesmo se
lidamos com matéria dura
o ferro o
cimento a fome
da humana
arquitetura
Nos
ensina a viver
no que
ele transfigura
no açúcar
da pedra
Ferreira
Gullar
no açúcar
da pedra
no sonho
do ovo
na argila
da aurora
na pluma
da neve
na alvura
do novo
Oscar nos
ensina
que a
beleza é leve.
É uma
beleza, Gullar, digna de Oscar. E o que é que você gostaria de ter escrito e
não escreveu?
Um poema
capaz de abarcar toda a história sofrida e obscura da gente brasileira.