“Oh, sim, eu estou cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou
indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto (quem sabe)”
Jards Macalé e Waly Salomão
“Vapor Barato”, 1970
Baiano
de Jequié, WALY SALOMÃO (1943- 2003) era divertido, sagaz, inteligente. Eu o conheci por volta de 1985, 1986, madrugada de um carnaval
soteropolitano. De juvenil eletricidade, eu celebrava a vida sob a proteção de Castro Alves. O poeta se aproximou, acompanhado de Dedé, musa na época
de Caetano, e me disse: “Certo, baby,
dispa as vestes d´alma, avacalhe o provincianismo com o pólen da beleza”, intrigando-me com sua figura carismática. Poucos dias depois, numa festinha
pós-momesca, típicas de uma Salvador pop-cultural, fomos apresentados pelo
amigo Pedrão, filho de Gilberto Gil. “Um encontro de poetas”, batizou. Tímido, não soube conversar, respondendo gaguejando sua pergunta
sobre poetas favoritos. Se não me falha a memória, falei dos beats. Único, falante e avassalador, ele confessou devorar livros
desde menino, “como traças”. Na época, desconhecia a sua ousada produção poética.
Voltei a encontrá-lo no Grande Hotel da Barra, ao lado do poeta/compositor
Antonio Cícero, irmão da cantora cult Marina Lima. Noitada de farra, maluca, dos anos sem juízo - se um dia cheguei a tê-lo. Clube masculino de excentricidades.
WALY
SALOMÃO relatou um possível primeiro encontro nosso na boate Noites
Cariocas, no Rio de Janeiro, apresentados pelo diretor global Jorge Fernando.
Não me lembrei. Contei para ele uma travessura no mesmo ano, aos 17 anos de idade, num verão de corações
loucos. Ganhei no night-club “Belle de Nuit”, Copacabana, o concurso “Garoto Zona Sul”. A atriz Lady Francisco, Elke Maravilha e um histérico juiz de futebol foram os jurados.
Conversamos também sobre outro momento inesquecível no Rio: o assédio do escritor argentino Manuel Puig. “Conheci-o na Cinemateca do MAM, após a sessão de um melodrama mexicano com a Maria Félix, e tomei um susto quando soube que escrevera A Traição de Rita Hayworth”. Ele caiu na gargalhada com as experiências juvenis. Antes da partida, alertou-me: “Um animal fareja os nossos sonos”.
Conversamos também sobre outro momento inesquecível no Rio: o assédio do escritor argentino Manuel Puig. “Conheci-o na Cinemateca do MAM, após a sessão de um melodrama mexicano com a Maria Félix, e tomei um susto quando soube que escrevera A Traição de Rita Hayworth”. Ele caiu na gargalhada com as experiências juvenis. Antes da partida, alertou-me: “Um animal fareja os nossos sonos”.
Dez anos se passaram. Homem feito, convidado pela Embaixada
Brasileira em Lisboa para a pré-estreia portuguesa de “Terra Estrangeira”, de Walter Salles, vibrei com uma das canções
da trilha do filme: Gal Costa cantando “Vapor
Barato”. A música, de 1970, composta por Waly e Jards Macalé, brilha em um dos melhores discos da cantora baiana: “Fa-Tal”. Lembrei-me de outros tempos, garoto, numa Itacaré mal iluminada, beira do cais, um hippie gaúcho cantando “Vapor Barato” lindamente.
Por fim, assumi a ignorância sobre WALY SALOMÃO, procurando lê-lo e pesquisando sua trajetória esfuziante. Uma das personalidades mais transgressoras e fascinantes da cultura brasileira, íntimo do angustiado Torquato Neto, lançou com ele a antológica revista “Navilouca” nos anos do desbunde. Rabiscou os poemas, do que seria seu livro de estreia, “Me Segura qu´eu Vou Dar um Troço” (1971), numa cela do Carandiru, no Pavilhão 2, condenado por uso de maconha. Herdeiro do transe demiúrgico de um Glauber Rocha, personagem-chave do Tropicalismo, parceiro musical de Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso, Antonio Cícero, Adriana Calcanhotto e Itamar Assumpção. Autor de sucessos musicais como “Mal Secreto” e “A Voz de uma Pessoa Vitoriosa”.
Por fim, assumi a ignorância sobre WALY SALOMÃO, procurando lê-lo e pesquisando sua trajetória esfuziante. Uma das personalidades mais transgressoras e fascinantes da cultura brasileira, íntimo do angustiado Torquato Neto, lançou com ele a antológica revista “Navilouca” nos anos do desbunde. Rabiscou os poemas, do que seria seu livro de estreia, “Me Segura qu´eu Vou Dar um Troço” (1971), numa cela do Carandiru, no Pavilhão 2, condenado por uso de maconha. Herdeiro do transe demiúrgico de um Glauber Rocha, personagem-chave do Tropicalismo, parceiro musical de Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso, Antonio Cícero, Adriana Calcanhotto e Itamar Assumpção. Autor de sucessos musicais como “Mal Secreto” e “A Voz de uma Pessoa Vitoriosa”.
Uma das figuras mais fecundas e heterogêneas da vanguarda
brasileira. Não é à toa que Caetano Veloso, em música dedicada a ele, diz: “tua
marca sobre a terra resplandece [...] e o brilho não é pequeno”. Ponta de lança de uma geração de poetas que resistiram à censura, contrariaram os princípios formais da tradição e
pensaram a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes. Sua escrita era permeável às diversas manifestações do
inquieto cenário cultural no Brasil das décadas de 1970 e 1980.
Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000. Consolidaram o papel de poeta múltiplo em livros como “Algaravias”, lançado em 1996. Em “Gigolô de Bibelôs”, segundo livro, ecoa o seguinte verso: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. O desejo de abolir fronteiras e de se confrontar com os limites - entre o eu e o outro, a prosa e a lírica, a arte e a vida - é uma das marcas da obra de WALY SALOMÃO. Sua poesia é viagem sem volta: um “processo incessante de buscas”, como disse sobre seu trabalho poético-visual “Babilaques”.
Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000. Consolidaram o papel de poeta múltiplo em livros como “Algaravias”, lançado em 1996. Em “Gigolô de Bibelôs”, segundo livro, ecoa o seguinte verso: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. O desejo de abolir fronteiras e de se confrontar com os limites - entre o eu e o outro, a prosa e a lírica, a arte e a vida - é uma das marcas da obra de WALY SALOMÃO. Sua poesia é viagem sem volta: um “processo incessante de buscas”, como disse sobre seu trabalho poético-visual “Babilaques”.
Presença inspiradora, caracterizado pela vitalidade, produziu o
disco e o show “Antimonotonia” (1997), de Cássia Eller. Foi também performer,
artista plástico, editor, videomaker. Filho de um sírio com uma sertaneja, era conhecido pela inteligência arrebatadora, doçura, energia
destrutiva, humor anárquico. Na semana de sua posse na Secretaria Nacional do
Livro, em Brasília, chocou mais uma vez com sua lucidez: “A maioria das pessoas analfabetas com quem
converso tem faro, intuições, inteligência, e já percebo que pessoas de classe
média que passam pela universidade são frequentemente tacanhas, sedimentadas em
esquemas já prévios, não aprenderam o mínimo, que é pensar por si. Copiam
esquemas importados e por isso são tristes, sofrem de complexos de
inferioridade cultural”. Planejava desenvolver uma política de “fome do livro”, como alavanca para a
ascensão social.
gal costa e waly em 1974 (foto de teresa eugenia) |
Poeta perturbador, originalidade hipnotizante, publicou seu
último livro em 2001, “O Mel do Melhor”,
dedicado ao iconoclasta Hélio Oiticica. Em 1996, ganhou o Prêmio Jabuti com
“Algaravias”. Haroldo de Campos o saudou como “inventivo poeta e letrista pop-erudito”. No cinema, interpretou
o satírico poeta barroco do século 17, Gregório de Mattos, seu preferido, no filme ruim de Ana Carolina. WALY SALOMÃO, que assinava Sailormoon nos anos 1970, morreu aos 59 anos, lutando
contra o câncer. Cheguei a entrevistá-lo via e-mail. Ele respondeu nove perguntas com poemas inéditos para cada uma delas. Preciso
encontrar essa entrevista.
POEMAS de WALY
(01)
SENHOR DOS SÁBADOS
SENHOR DOS SÁBADOS
Uma
noite
noites
noites
em claro
noites
em claro não matam ninguém
mas
é claro, perdi a razão
gritei
seu nome por toda a parte
do
edifício em vão
quebrei
vidraças da casa
estilhaços
de vidro espatifados no chão
risquei
paredes do apartamento
com
frases roucas de paixão
ah
que noche mas nochera
ah
que noche mas ...
Dentro
da escuridão do quarto
rasguei
no dente seu retrato
minha
alma ardia meu bem...
Volte
cedo
antes
que acenda a luz do dia
apague
meu desejo num beijo
bem
bom
meu
bem volte cedo meu bem volte bem cedo
(02)
(Assaltaram
a gramática
Assassinaram
a lógica
Meteram
poesia
na
bagunça do dia a dia
Sequestraram
a fonética
Violentaram
a métrica
Meteram
poesia
onde
devia e não devia
Lá
vem o poeta
com
sua coroa de louro,
Agrião,
pimentão, boldo
O
poeta é a pimenta
do
planeta!
(Malagueta!)
(03)
Não
choro
meu
segredo é que sou rapaz esforçado
fico
parado calado quieto
não
corro não choro não converso
massacro
meu medo
mascaro
minha dor
já
sei sofrer
não
preciso de gente que me oriente
Se
você me pergunta
como
vai
respondo
sempre igual
tudo
legal
Mas
quando você vai embora
movo
meu rosto do espelho
minha
alma chora
vejo
o Rio de Janeiro
vejo
o Rio de Janeiro
comovo,
não salvo, não mudo
meu
sujo olho vermelho
não
fico parado
não
fico calado
não
fico quieto
corro
choro converso
e
tudo mais jogo num verso
intitulado
MAL SECRETO
e
tudo mais jogo num verso
intitulado
MAL SECRETO
(04)
AMANTE
DA ALGAZARRA
Não
sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É
esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.
É
ela! ! !
Todo
mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,
Sem
espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.
Esta
amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro
Vixe!
! !
Enquanto
caminho a pé, pedestre — peregrino atônito até a morte.
Sem
motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento:
Não
sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É
esta estranha criatura que fez de mim seu encosto
E
se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.
Quem
corre desabrida
Sem
ceder a concha do ouvido
A
ninguém que dela discorde
É
esta
Selvagem
sombra acavalada que faz versos como quem morde.
(05)
TALISMÃ
minha
boca saliva porque tenho fome
e
essa fome é uma gula voraz
que
me traz cativo
atrás
do genuíno grão de alegria
que
destrói o tédio
e
restaura o sol
no
coração do meu corpo
um
porta-joia existe
dentro
dele um talismã sem par
que
anula o mesquinho, o feio e o triste
mas
que nunca resiste
a
quem bem o souber burilar
sim,
quem
dentre todos vocês
minha
sorte
quer
comigo
gozar?
Minha
sede não é qualquer copo d’água que mata
essa
sede é uma sede que é sede do próprio mar
essa
sede é uma sede que só se desata
se
minha língua passeia
sobre
a pele bruta da areia
sonho
colher a flor na maré-cheia vasta
eu
mergulho e não é ilusão
não,
não é ilusão
pois
da flor-de-coral
trago
no colo a marca
quando
volto triunfante
com
a fronte coroada de sargaço e sal
sim,
quem
dentre todos vocês
minha
sorte
quer
comigo
gozar?
Um comentário:
Fiquei muito triste com a morte de Waly. Via nele um referencial de quem tinha a cultura como prioridade. Morreu, logo no justo momento, em que tendo um cargo público, podia fazer o que ninguém ousava fazer.
Dediquei um breve poema post-morten para ele. Ei-lo:
AO POETA BAIANO
Você agora zarpou
na Navilouca.
Como bom baiano
amou
polemizou
viveu a cultura
em suas últimas instâncias.
Cidadão de seu tempo
em suas várias faces
& disfarces
você desafiou as estruturas.
Porém a Navilouca
tinha de partir.
É você
Wally
foi escolhido o timoneiro
Ricardo Mainieri
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