Ilustrações:
Nunca houve uma mulher na literatura como CARMEN. Nem a sanguinária Lady Macbeth, a insatisfeita Emma Bovary, a apaixonada Anna Karenina ou a ambígua Capitu, entre outras ilustres celebridades retratadas em dezenas de clássicos, superam seu magnetismo enigmático e erótico. Das páginas do francês Prosper Mérimée ela saltou para a ópera, balé flamenco, artes plásticas, poesia e mais de meia centena de adaptações cinematográficas. A beleza selvagem da cigana andaluza inspirou atrizes, divas eruditas e bailarinas lendárias como Pola Negri, Rita Hayworth, Dolores Del Rio, Sarita Montiel, Viviane Romance, Dorothy Dandridge, Maria Callas, Teresa Berganza, Victoria de los Ángeles, Alicia Alonso e Maia Plisetskaya, entre outras.
Símbolo da mulher
indomável, de espírito rebelde e valente, que cultua a liberdade pessoal em uma
sociedade em que o dinheiro e a posição social são as preocupações mais
importantes, CARMEN representa o mito da mulher fatal por excelência, uma nova
Pandora, dotada de abundantes dons espirituais e de impressionante
sensualidade, porém mentirosa, perversa, cruel, vingativa, mas também carismática,
alegre e generosa. Gozando de notoriedade, pode ser comparada com outras fêmeas
voluptuosas que aparecem em muitas culturas: Salomé, Judith, Lilith, Kitsune, são exemplos que ilustram a homenagem que a tradição popular faz a este
personagem conquistador. No relato enfeitiçado de Don José, ela o seduz e ele não
pode viver sem sua presença, repetindo várias vezes que ela é o “diabo”. O
leitor pouco a pouco conhece a condição da protagonista de prostituta, ladra,
instigadora ao crime, maléfica, etc., e, ainda assim, como José, sente-se
atraído por ela, por sua força nascida do eterno feminino, do encanto obscuro:
“Era una belleza extraña y salvaje, un rostro que al pronto
extrañaba, pero no se podía olvidar. Sobre todo, los ojos tenían una expresión
voluptuosa y feroz a la vez que no he encontrado después en ninguna mirada
humana. Ojo de gitano, ojo de lobo”.
MÉRIMÉE: UMA VOCAÇÃO ESPANHOLA
O criador de Carmen, o historiador e escritor Prosper
Mérimée (1803-1870), nasceu em Paris, pertencendo a geração romântica. Tinha em
Stendhal o seu melhor amigo, unidos por afinidades como o ceticismo religioso,
a sensualidade e também a atração pela Espanha. Aos 21 anos, publica em um
jornal quatro artigos sobre a arte dramática espanhola e em 1830 faz sua
primeira viagem ao país que tanto o impressiona, admirando a Andaluzia, a
formosura das mulheres, o vinho de Jerez, as touradas e a obra de Cervantes.
Faz amizade com Doña Manuela, condessa de Montijo, e suas filhas, Paca (futura
duquesa de Alba) e Eugenia (futura imperatriz dos franceses). A condessa,
confidente de toda uma vida, foi de valiosa ajuda, sobretudo para a preparação
de algumas obras de Mérimée, facilitando pesquisa e estadia - em seus palácios
de Carabanchel e Madri -, e o recomendando as suas amizades. Ela narrou casos
que impressionaram o escritor, como o do oficial que matou a amante, uma bailarina,
por ciúmes, ou do problema familiar criado por seu cunhado ao se apaixonar por
uma cigana. Ambas as notícias constituíram, fundidas, o embrião de “Carmen”.
gustave doré |
Em 1840, Merimée publica “Colomba”, inspirada
novela sobre uma vingança familiar com outro personagem feminino cruel da ampla
galeria misógina do autor. Mas a Espanha não se afasta do seu pensamento: faz
uma segunda viagem ao país, dez anos depois da primeira. Em 1844, torna-se
membro da Academia Francesa, e no ano seguinte publica a irresistível novela “Carmen”, na Revue des Deux Mondes. Numa carta diz que a escreveu em oito dias,
depois de imaginá-la durante quinze anos. A obra passou quase despercebida, sem
grande buchicho, numa época em que a França estava acostumada a receber
bailarinos flamencos e a leituras com o fértil país vizinho como pano de fundo
- no mesmo ano da publicação desta novela, surgiu uma nova tradução do
“Quixote” e Théophile Gauthier lançou “Poésies Nouvelles”, que inclui “Espanha”.
Prosper Mérimée faz a última viagem a Espanha em 1863. Mesmo com
graves problemas de saúde, nunca deixou de escrever, e uma das suas
obras-primas pertence ao gênero fantástico, escrita no final da sua intensa vida,
“Lokis” (1866), sobre um homem-urso. No ano seguinte a sua morte, a comuna
revolucionária queima sua casa em Paris, e no incêndio desaparecem o arquivo e
documentos valiosos do escritor. Embora com uma média de duas edições anuais
desde o lançamento, “Carmen” só seria um fenômeno popular ao pegar carona no
êxito internacional da ópera de Bizet, uma adaptação da novela estreada em
Paris no ano de 1875.
A ORIGEM DE CARMEN
Em “Cartas de Espanha”, do próprio Mérimée, ele revela que o
nome da protagonista surgiu de uma jovem, Carmencita, a que faz menção na
quarta carta (“As Bruxas Espanholas”), que lhe serviu comida em uma venda de
Murviedro (antigo nome de Sagunto, Valência); era cigana, prostituta,
jogadora de cartas de adivinhação e de rara beleza. Nascia CARMEN, pomba-gira
de carne-e-osso vivendo a temática tradicional do amor fatal, que originou
obras literárias tão famosas e excepcionais como “Romeu e Julieta” (1595) ou
“Manon Lescaut” (1731), e renovando o mito da fêmea nefasta. Quando ela é apresentada
no capítulo II, há uma clara alusão ao mito de Vênus, deusa do amor, polígama,
saindo das águas:
“Una tarde, a la hora en que no se ve
ya nada, estaba yo fumando apoyado en el pretil del paseo, cuando una mujer
coronó la escalera que conduce al río y vino a sentarse cerca de mí. Tenía en
el pelo un gran ramo de jazmín, cuyos pétalos exhalan de noche un olor
embriagador. Estaba vestida con sencillez, quizá pobremente, toda de negro,
como la mayor parte de las modistillas al anochecer. Las mujeres de buen
tono no van de negro más que por la mañana; por la noche, se visten a la
francesa. Al llegar cerca de mí, la bañista dejó deslizarse sobre los hombros
la mantilla que le cubría la cabeza, y en la obscura claridad que cae de las
estrellas me parcaté de que era menuda, joven, bien proporcionada, y que tenía
los ojos muy grandes”
CARMEN significa fórmula mágica em latim; seu significado
medieval, poema; na tradução francesa, charme, agrado, encanto. Tudo isso pode
ser aplicado simbologicamente ao personagem, que mesmo importante, complexo, e
dando título a obra, em nenhum momento o autor revela os sentimentos mais íntimos, pensamentos, convicções.
ESTRUTURA NARRATIVA
A história tem como cenário a Andaluzia, resultado das
vivências da primeira viagem de Prosper Mérimée. Linguagem sóbria,
sintética, longe do melodrama, justamente ao contrário da ópera que triunfou
pela expressividade e ardor amoroso da música de Bizet (como não se emocionar
com “L`amour est un Oiseau Rebelle”?), porém pecando no libreto simplório de
Ludovic Halévy e Henry Meilhac, que se empenha em converter Carmen em um
protótipo amável, vítima de superstições e da sociedade da época, porém
definitivamente uma mulher de “bom coração”. Mérimée evita derramamentos
sentimentais. Nos dois primeiros capítulos de “Carmen”, o escritor francês usa aparentemente
o autobiográfico, corriqueiro na literatura de viagens, apresentando-se como personagem-narrador: o viajante-arqueólogo figurando nos feitos contados (o que dá um tom de autenticidade).
Escrita rápida, algo seca, dominada por frases curtas e diálogos nervosos. Este estilo frio deu lugar a momentos de formidável emoção. A obra, marcada por horrores, passa uma cumplicidade que beira a compaixão. As cores são importantes para o argumento, e algumas delas se repetem: CARMEN é o vermelho e o negro, José o amarelo. Traduzida ao espanhol em 1891, quarenta e seis anos após o lançamento na França, o pequeno romance foi mal recebida pelos espanhóis, considerado insultante ao tratar de seres marginalizados - o que não é verdade, os costumes relatados são fiéis, frutos de rigorosa pesquisa, observação e conhecimento. Futuramente teria o valor reconhecido e Mérimée, como em tantos outros países, seria lembrado principalmente por esta criação primorosa.
Escrita rápida, algo seca, dominada por frases curtas e diálogos nervosos. Este estilo frio deu lugar a momentos de formidável emoção. A obra, marcada por horrores, passa uma cumplicidade que beira a compaixão. As cores são importantes para o argumento, e algumas delas se repetem: CARMEN é o vermelho e o negro, José o amarelo. Traduzida ao espanhol em 1891, quarenta e seis anos após o lançamento na França, o pequeno romance foi mal recebida pelos espanhóis, considerado insultante ao tratar de seres marginalizados - o que não é verdade, os costumes relatados são fiéis, frutos de rigorosa pesquisa, observação e conhecimento. Futuramente teria o valor reconhecido e Mérimée, como em tantos outros países, seria lembrado principalmente por esta criação primorosa.
CONTEÚDO TRÁGICO
A curta novela é uma história de amor e sangue, narrando a
confissão de um condenado à morte, Don José, um ex-sargento que se torna
assassino, fugitivo, contrabandista e bandido temido, tudo pelo amor de uma
mulher frívola e inconstante. Ele conta como CARMEN foi responsável por sua
desgraça, arrastando-o ao mal como autoridade diabólica. Militar, desertou por
ela, e finalmente a matou, possuído por ciúmes. O autor, Prosper Mérimée, inventa
haver conhecido ao bandido e a cigana. Novela de paixão, termina tragicamente; de uma fatalidade guiada pelo destino, junto a elementos
como o diabólico e a magia; o contrabando como forma de contornar a pobreza; a
conivência dos poderosos com facínoras renegados; a fama dos toureiros,
autênticos ídolos que, pela arte e audácia, arrastam, atrás de si,
verdadeiras multidões. Théophile Gauthier, Marcel Proust, Anatole France, André
Gide e muitos outros escritores desenvolveram o tema. Em “Poema del Cante
Jondo”, Federico García Lorca fala de uma cigana velha, porém ainda perigosa:
“La Carmen está bailando / por las calles de Sevilla. /
Tiene blancos los cabellos / y brillantes las pupilas. / ¡Niñas, / corred las
cortinas! (...)”.
No Brasil, Glória Perez renovou o mito em uma telenovela
famosa de 1987, na Rede Manchete, protagonizada por Lucélia Santos em estado de
graça; o polêmico Gerald Thomas criou a sua própria mulher fatal em “Carmen com
Filtro”, de 1986, com outra atriz admirável, Bete Coelho. Gustave Doré e Pablo
Picasso (38 gravuras publicadas em 1949 em uma edição de 320 exemplares)
ilustraram as aventuras da bela cigana. CARMEN, indomável, usa seus
atributos para subjugar aos machos que atravessam seu caminho, mantendo-se fiel
a sua raça e ao destino, dona do seu corpo, motivo da sua própria morte nas mãos
de um homem que tem por ela uma paixão obsessiva, exclusiva. Este, o vasco José
Lizarrabengoa, uma das vítimas da sua sedução, um escravo do desejo, que tem
todas as facetas de um apaixonado patético, sobrevive como uma criação comovente,
vibrante, forte, que enamora o leitor.
PROJEÇÃO DO MITO
Obcecado pelo livro, escrevo “Homem sem Caminho”, versão
livre, transportada aos tempos atuais, com imigrantes marroquinos morrendo no
Estreito de Gibraltar e brasileiros tentando melhores oportunidades na Europa.
A minha CARMEN é um marginal cigano, o objeto erótico Gorka, e a própria
Pomba-Gira; José é Torquato Lubião, um músico sem destino e sem dinheiro. O
cenário continua sendo a Andaluzia, plena de contrastes, onde a presença dos
ciganos marca o caráter do povo, excessivo na expressão dos sentimentos. Talvez
seja a primeira interpretação homossexual de “Carmen” (“Carmen, Carmen”, de
Antonio Gala, 1976, não chega a tanto). Grande obra literária, “Carmen” de
Prosper Merimée é explosão de sensações. Não há como não se sentir atraído
por essa mulher que preferiu morrer a deixar de ser livre , rainha do seu desejo,
da sua vontade. Uma temática atual. Não é à toa que Nietzsche escreveu sobre o
livro: “Para mim, esta obra merece uma viagem a Espanha”. Com certeza.
OBRAS CONSULTADAS
PROSA / POESIA
prosper mérimée |
GAUTHIER, Théophile, “Poemas Completos”;
GAUTHIER, Théophile, “Voyage en Espagne”;
JIMÉNEZ, Luis López e ESTEVE, Luis-Eduardo López, “Merimée: Una Vocación Española (Resumen Biográfico)”, 1989;
LORCA, Federíco García,“Poema del Cante Jondo”, 1921;
LOUYS, Pierre, “La Femme et la Pantin”, 1898;
MAINGUENEAU, Dominique, “Carmen. Les Recines d'un Mythe”, 1984;
MERIMÉE, Prosper, “Viagem a Espanha”;
MERIMÉE, Prosper, “Carmen”, 1845;
STEINER, George, prefácio para “Carmen y Otros Cuentos”, 1981;
MÚSICA
maria callas como carmen |
QUINTERO, LEÒN e QUIROGA, “Carmen de España”, 1953, cantada por Carmen Sevilla;
CINEMA
ARANDA, Vicente,“Carmen”, 2003, com Paz Vega;
BUÑUEL, Luis, “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, 1977, com Angela Molina e Carole Bouquet;
CHRISTIAN-JACQUE, “Carmen”, 1942, com Viviane Romance;
DE MILLE, Cecil B., “Carmen”, 1915, com Geraldine Farrar;
DEMICHELI, Tulio, “Carmen – O Diabo Feito Mulher”, 1959, com Sarita Montiel;
FEYDER, Jacques, “Carmen”, 1926, com Raquel Meller:
GODARD, Jean-Luc, “Prénom, Carmen”, 1983, com Maruschka Detmers;
LUBITSCH, Ernest, “Amor Cigano”, 1918, com Pola Negri;
PREMINGER, Otto, “Carmen Jones”, 1954, com Dorothy Dandridge,
ROSSI, Francesco, “Carmen”, com Julie Migenes-Johnson;
SAURA, Carlos, “Carmen”, 1983, com Laura del Sol;
VIDOR, Charles, “Os Amores de Carmen”, 1948, com Rita Hayworth;
WALSH, RAOUL. “Amores de Carmen”, 1927, com Dolores del Rio;
BANDA DESENHADA
TELEVISÃO
PEREZ, Glória, “Carmen”, com Lucélia Santos;
ARTES PLÁSTICAS
DORÉ, Gustave, ilustrações para “L`Espagne”;
MERIMÉE, Prosper, “Retrato de Cigana”, aquarela;
PICASSO, Pablo, ilustrações, 1949 e 1967;
TEATRO
GARCIA, Nicole, leitura de “Carmen”, em cassete, 1987;
THOMAS, Gerald, “Carmen com Filtro”, 1986.
6 comentários:
Carmen é imortal!
Li o livro, vi o filme e ouvi a música. Ela é ótima!
Que maravilha, Nahud!
A ópera é de Georges Bizet e já vi algumas Carmens no Cinema (Sara Montiel , Rita Hayworth, Dorothy Dandridge). Enfim, essa mulher é um espetáculo !
tenho a musica dela é linda ,carmem de bizet adoro ouvi-la
O filme da Rita Hayworth é ótimo.
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