agosto 10, 2015

............................. “A GRANDE ESCRITA é SEMPRE REESCRITA”





Esta entrevista é de 2001. Concedida ao jornalista
ANTONIO NAHUD no Café de Santa Cruz, 
em Coimbra, Portugal. 
Publicada no Caderno Cultural
do jornal A Tarde (BA).

Imagens: 
ANALU PRESTES


Um dos intelectuais norte-americanos mais ativos, suas críticas não são elaboradas com o intuito de agradar uns e outros. Nascido em 1930, as teses de HAROLD BLOOM são essencialmente polêmicas, principalmente quando ele discorre sobre a questão da influência literária, uma preocupação contínua em sua obra. Ele aborda este conceito desde seu livro “A Angústia da Influência”, publicado em 1973. Nele o teórico defende que sempre se irá encontrar, em cada obra, por mais clássica e única que ela pareça, traços de outros criadores, os quais, por sua vez, beberam também em fontes alheias para compor suas produções literárias. “A grande escrita é sempre reescrita”, garante. Reconhecido ensaísta e crítico literário, lota auditórios em todo o mundo, praticando uma missão especial: ensinar a ler. “Quem for capaz de ler verdadeiramente, será abençoado pelo conhecimento, pela memória”, afirma. Luta contra a informação passiva fornecida pela televisão e internet, incentivando a “mente ativa”. Ele considera o ato de ler uma iniciativa pessoal, e que seu papel como crítico é conceder ao leitor um arsenal mais prático do ofício literário, estimulando-o a ler cada vez mais.

Original, ousado, controverso, influente, aos 71 anos é autor de uma vasta obra que reúne 24 livros e centenas de ensaios e introduções, privilegiando poetas de língua inglesa. HAROLD BLOOM criou o conceito de Cânone, ou seja, uma relação das produções literárias essenciais. Esta ideia é desenvolvida em seu livro “O Cânone Ocidental”, lançado em 1994. Entre seus escritores geniais, ele destaca Shakespeare, Dante, Cervantes e Milton. No idioma português ele acrescenta o nome de Machado de Assis como o maior da literatura brasileira, e o do poeta Fernando Pessoa, ao lado de Camões. Era venerado pelo combativo jornalista Paulo Francis. “Um ensaísta de primeira água e um grande crítico”, disse dele o Nobel José Saramago, um dos raros autores de língua portuguesa elogiados por Bloom. Em Coimbra, Portugal, convidado do IV Encontro Internacional de Poetas, HAROLD BLOOM lançou a tradução para o português do seu livro “Como e Por Que Ler”, deu conferência e recebeu Doutoramento Honoris Causa da Universidade de Coimbra, a mais antiga universidade do país luso. Foi uma extraordinária e eloquente cerimônia”, disse o autor homenageado. Na sua fala, ele aplicou suas teorias numa diálogo intitulado “O Atlântico Sublime: Whitman, Pessoa, Stevens, Crane, Lorca, Cernuda”. Após o evento, no tradicional Café de Santa Cruz, conversou com a imprensa.


Os autores norte-americanos contemporâneos, de Norman Mailer a Gore Vidal, são obcecados pela ideia do “grande romance americano”. Quem chegou lá?

Muitos deixam devorar sua capacidade de ficcionista por essa obsessão, mas creio que tal obra já foi escrita: “Meridiano de Sangue”, de Corman McCarthy. Um livro terrível, que mete medo. Deve ser o romance norte-americano mais importante desde “Moby Dick”, de Melville. Já o li muitas vezes.

Os seus livros demonstram fascínio pela bíblia. Além disso, costuma aconselhar a ler alto e a decorar poesia, como se faz com as orações. Vê a literatura como uma religião?

Claro que não. Seria uma idiotice essa teoria. Basta a indústria das experiências paranormais ou a indústria de anjos. Mas me fascinam as passagens mais antigas da Bíblia judia. Escrevi um livro acerca disso, “O Livro de J”. Quanto a decorar poesia, devo dizer que os meus alunos ficam embaraçados. Pensam que estão se comportando como crianças. Entretanto, há diferença quando se possui a literatura através da memória.


Os portugueses estão encantados com sua opinião positiva à respeito de Fernando Pessoa e José Saramago.

Fernando Pessoa é um grande poeta moderno. Tão bom como Lorca, Valéry ou Wallace Stevens. O problema dele foi a tentativa de se tornar um super-Camões ou um Walt Whitman. Além do mais, escreveu muito, e ninguém parece que o leu na totalidade. Já Saramago é o romancista vivo mais talentoso que conheço. Sua versatilidade é espantosa. Ele escreve comédias deliciosas, e coisas tenebrosas, melancólicas.

Pessoa tem a popularidade merecida além de Portugal?

Ele é reconhecido por muitas outras línguas e culturas. Não é ainda mais popular devido aos heterônimos. Demora um pouco a nos acostumarmos à complicação de compreender quatro poetas em uma só pessoa, e à forma como ele desenvolve o problema. Pessoa é um poeta europeu que seduz muita gente.


A sua interpretação de que todo poeta sofre da angústia da influência continua sendo questionada.

Quando publiquei “A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia” não pensei que seria tão mal compreendido. Continuo pensando que a angústia da influência é um fato universal. Shakespeare, por exemplo, lutou muito para se livrar da influência de Christopher Marlowe. Pessoa, como disse, tinha uma clara obsessão por Whitman. E assim por adiante. Não há como negar que a grande escrita é sempre reescrita.

Como enxerga o leitor?

Obviamente o leitor de hoje não é sensível. Veja o caso da vasta maioria dos universitários, que são uma mistura de atrasados mentais e preconceituosos. A falta de reflexão sempre foi mais sedutora. É difícil aprender a ler com propriedade a grande literatura da imaginação. Os grandes escritores exigem muito em termos de energia intelectual e imaginativa. Desafiam a totalidade da pessoa em nós. A verdadeira leitura supõe tempo e implica esforço e perseverança. A prática da leitura é um caminho difícil com ocasionais recompensas.


Crê que a crítica literária sobreviverá em um mundo de excesso de imagens e leituras banais?

Penso que haverá sempre bons críticos literários, desde que estes sigam a crítica como um ramo da literatura. O importante é que não usem a crítica com propósitos de ressentimentos, ou seja, por motivos puramente pessoais. O bom crítico necessita de valores humanista e literário.

Convidado para ser homenageado na celebração do terceiro centenário da Universidade de Yale, preferiu o evento de Coimbra. Foi uma boa escolha?

O rei Bush era um dos homenageados em Yale. Preferi não estar presente. Não me arrependo. A cerimônia de Coimbra foi extraordinária e eloquente. Um incentivo para continuar aprendendo profundamente sobre a tradição literária portuguesa. Escrevi alguma coisa sobre Camões e Eça. Considero “Os Maias” de uma beleza sublime. É um dos melhores romances europeus do século XIX.


Falando em Bush, como vê a atual política norte-americana?

George Bush II representa a imbecilidade mais completa que se vive nos Estados Unidos e que ultrapassa a minha compreensão. Estamos na época de Mark Twain, chamada “The Gilded Age” (A Idade Dourada), a era dos barões bandidos. Toda essa administração, o presidente, o vice-presidente, o secretário de defesa, o secretário do tesouro, são grandes senhores do petróleo que estão tendo lucros fabulosos.




agosto 01, 2015

........................... INFIEL e ANÔNIMO em TANGER

antonio nahud no marrocos, 2005

Ilustrações:
PAUL KLEE

Remando contra a corrente, o desgosto tomou conta do meu ser. Como viajar é um santo remédio contra tal estado calamitoso, voltei mais uma vez ao Marrocos, sendo imediatamente tomado pela alegria de viver. Para iniciar no encantamento, basta-me aprofundar no amor, arte, natureza, mistérios de uma cidade formosa. Em Tanger, odores, inquietantes melodias que mais parecem queixumes, revoadas de andorinhas à cata de insetos, labirinto de ruelas estreitas, luz, sombras. Rostos corados, sons, mar da praia de Malabata, a imponente porta de Bar er Raha, banhos públicos, o Kasbah. O muçulmano divide o mundo em crentes e infiéis, mas eu quero acreditar que o ser humano é maior do que se rotula. Quero acreditar na vida, por mais frívola que seja, contendo um tesouro em algum recanto escondido.

Na primeira metade do século 20, Tânger era conhecida como um centro de contrabandistas, espiões, exilados, homossexuais em férias. É a terra que o escritor norte-americano Paul Bowles escolheu para viver. Lembro-me do seu corpo frágil, de pássaro, apoiando-se em mim enquanto caminhávamos no Petit Socco, uma pequena praça ladeada por cafés e hotéis. No Marrocos, mora o afinado escritor espanhol Juan Goytisolo, encontra-se o túmulo de Jean Genet na beira-mar e circulam histórias picantes do casal Bowles. Sozinho, encerrado na própria liberdade, sensações me passam pela cabeça. Estar sozinho numa cidade estrangeira não é nada simples. Precisa-se de energia especial para circular entre milhares de rostos estranhos, nas mesmas ruas pelas quais passam multidões em direção a um futuro incerto. Posso ver claramente, nenhuma certeza é oferecida a ninguém. Nem mesmo para visitantes ilustres como Truman Capote, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Tennessee Williams ou Christopher Isherwood.


Corro mundo sem deixar de ser o que sou. Sou da raça que sempre parte, a nômade. Às 8 da manhã, no Hotel Ville de France, o mesmo que hospedava Gertrude Stein e sua amante Alice B. Toklas, peço o primeiro chá de hortelã do dia. Diante de mim, o livre-arbítrio. Mas a liberdade somente se tranquiliza perante o amor. Questionando a existência e apinhado de associações literárias, caminho sem destino na cidade moura. Não quero ter razão, muito pelo contrário, quero aprender com os erros. Quem sempre quer ter razão está contra todos. Oscar Wilde, que viveu sob a rigorosa filosofia da arte como beleza e da vida como refinamento, após a derrota, cárcere e traição, decepcionado, deixou de escrever. Miserável e doente, vagando pelas ruas de Paris, encontrou casualmente André Gide e, diante do incômodo desse, disse: “Não é preciso se interessar por alguém que foi fulminado”.

Dias de contemplação na terra do profeta Maomé, explorada pela França durante 44 anos. Contemplação não fornece exatamente distração. Assim, acato o desatino dançando sinuosamente no clube noturno Le Palais, no Hotel Tanjah Flandna. Morenos sorridentes me oferecem haxixe puro, tomam-me nos braços num bailado selvagem. Numa festa nos jardins do Palácio Mendoub, cujo dono é o editor e milionário Malcolm Forbes, trabalhei carregando caixas de sons, refletores e fios intermináveis de uma banda musical, conhecendo o romancista Rodrigo Reis Rosa e me deixando levar pela sedução de um excêntrico casal de artistas. Em Tânger, esqueço nome, idade, costumes, passado, identidade, metamorfoseando-me em animal sem dono, raça, pátria. O Marrocos me possui. Amo-o.

O homem é um bicho tolo. Tolo, sentimental. Sensibilizado, escuto a língua árabe marroquina, mergulhando em lojas de artesanato de barro e kilims. Numa delas, fumo kish, esquecendo parte de mim, esmagando a dor e alguma verdade pessoal. A meta é viajar em direção ao mar, à fontes inesgotáveis de sonhos. Leve, guardo na memória o mercado Grand Socco, a mesquita Sidi Bouabid de ricos azulejos, praias banhadas simultaneamente pelo Atlântico e Mediterrâneo, o dócil amigo Rachid. Sinto o Marrocos como demência espiritual, beleza perene. Sem beleza, fé ou a insensatez do amor, seria ainda mais difícil viver.


ANTONIO NAHUD
(do livro “SE UM VIAJANTE NUMA ESPANHA DE LORCA”, 2005)


FORTUNA CRÍTICA

À VIAGEM

VICENTE FRANZ CECIM

Cigano incorrigível por vocação luminosa ou oculto Fado, Antonio Nahud realiza a vida nômade com que todos sonhamos, imersos em nossas vigílias sedentárias. É por nós, generosamente, que ele cruza oceanos, contempla as paisagens, sem hesitar penetra em labirintos, ausculta cavernas, desvela horizontes, revela territórios reais e poéticos, se expõe face a face com geografias desconhecidas e interroga o humano em Diálogos reveladores, sempre, por onde passa. Capturadas em vivências que ele transforma em palavras, preservando, nessa alquimia, a mais pura autenticidade, suas Peregrinações nos enriquecem de sabores e sabores novos. À maneira de Xavier de Maistre em sua “Viagem em Torno do meu Quarto”. Sim? Mas um Xavier de Maistre invertido, porque o quarto de o Antonio Nahud é o mundo. Como ele outro e lendário cigano: Marco Polo, é à Viagem que eles convidam. E não apenas à exterior, mas também a nós mesmos. Aceitemos o convite.


SE UM VIAJANTE NUMA ESPANHA DE LORCA

SILAS CORRÊA LEITE

De certa forma fugidio de si mesmo, Antonio Nahud, no seu último livro “Se um Viajante Numa Espanha de Lorca”, feito um intrépido cigano viajoso – também nos relatos de inúmeras pensagens – compilou crônicas, fábulas, relatos, narrativas, delírios, costumes e inquietudes, tudo acontecências dessa bela espécie de gracioso e oportuno “caderno de viagens” .

Escrevendo muito bem, o autor nômade traça paralelos de contemplações, procurando em tantos lugares, até mesmo exóticos e históricos que sejam, o seu próprio lugar de se Ser; alma nau registrando itinerários, descaminhos, vigílias, buscas e labirintos (íntimos), ainda assim revelando territórios e o demarcando de algum forma, ensejando o mapa de sua existência frutífera no mundo errante, com seus recolhes de imagens, ponderações e palavras caprichadas.

O livro todo é nesse contextual. Já autor de tantas outras obras – (Livro de Imagens, Um Sentido Para a Vida, Arte-Palavra, Caprichos, Ficar Por Aqui Sem Ser Ouvido Por Ninguém, Retratos em Preto e Branco e o Aprendiz do Amor) – Antonio Nahud mostra seu diletantismo de viver intensamente doa a quem doer (e se movendo com certa ressaca de uma paixão que deixou marcas ainda vivíveis), sempre projetando arredondar estigmas e acertar parafusos soltos muito além do reino do sonho, e, para sorte de seu leitor, registra tudo sem se esconder, vai fundo sem sextante de si mesmo, expondo lamentos e algumas vezes os estados numinosos de múltiplas contemplações.

Anseios, perdas, amores que podem dizer o nome, expectativas, fronteiras, frustrações, dezelos íntimos, e, claro, a arquitetura de paisagens nas suas contações em gracezas de detalhes e óticas puristas que fisgam o leitor pelo enfoque de peregrino em caminho de si mesmo, pergaminho e cinzel, busca e buscador, estrada e caminhação.

Amante de Frederico Garcia Lorca – ele mesmo certamente um pouco Lorca também – e fã de Jean Genet, Henry Miller Virginia Woolf, Lucio Cardoso e tantos outros, Antonio Nahud vai descrevendo – revelações em sépia como um excelente fotógrafo que o é – o que o seu mavioso latino olhar nostálgico capta no estreito de Gilbratar e seu entorno, desnudando-se também ao invadir espaços e paredes, memórias e registros delas, momentos e contemplações, sob a ótica de seu filtro espiritualizador, pondo a alma para respirar nessas caminhações mundo a fora, Ser a dentro, entradas e bandeiras.

Às vezes domina tão bem o seu transbordante cálice de vinho-verbo (denota isso de maneira tácita), que você caminha lado a lado com ele pelas paisagens invocadas, e capta as refrexões-vazantes de suas ponderações contra moinhos e ventos de erranças e iluminuras. A mão do parágrafo, a página de rosto, a edição-Ser contando prumos e fungos. Bonitezas.

Ele filosofa com sentido energético, opina com acidez, vergando a alma, lavra-se (lava-se assim?) pensando estágios do devir e assim vai se dando, livro aberto ao leitor que cativa pelas narrações bem costuradas, pondo mesmo imagens na cabeça da gente a viajar com ele, fixando sua vivência andarilha assim no seio de nosotros.

Incorrigível? Sedentário também. Em cada porto uma saudade, resgata um oxinegação de seixos íntimos, perde lastros, na insustentável leveza de se ser. Registros. Querelas interiores. É quase uma viagem em torno de si mesmo, pois, pra onde fugir(...) sempre estará ali, seu lugar de si, self: se levará consigo. O amor tem loucuras que a própria lucidez desconhece? É por aí esse mergulho mochileiro numa estrada que vai dar no Ser. Quase um resgate.

Fala de Kant, de Marrocos, da Espanha que adora. Diz de pecados, desmistifica rumos, aponta paraísos e paradoxos, sagracial e interrogativo leva uma cisma ainda não identificada, aqui e ali diz de músicas, sombras, barbáries, abismos, e, claro, prova que realmente a grande aventura (cósmica, inclusive) começa dentro de nós mesmos.


Busca um porto seguro ultramarino, depois de deixar sua Bahia de Todos os Santos. Ou prefere o atol das doces memórias como cantou Ray Charles? Interrogações. Ilumina o diafragma do olhar, dá um clic na alma, feito um noiteadeiro em terra estranha, procurando seu lagar de afetos escondidos, ou, talvez, o medo de amar número dois. Nesse bolero-blues salpica de estrelas o chão-lugar de seu estar. Um Lorca pós-moderno esse Antonio Nahud?.

Delicioso o livro. Vale a pena ler. Há um estado onírico (realidade substituta?) inventariando a vida, certamente o inverso do caminho de Santiago nele. Honra e fé revisitadas. Autenticidade visceral, Carpiem diem. É isso. Todos nós temos nossos outonos entrevados. Anjos presos em fio de alta tensão. Cárceres de tentativas?. Escrevendo, aliviando-se, o autor dá nos seu testemunho de resistência de alguma maneira, por alguma loucura-razão. Arte e libertação no enfavamento tresloucadas de ideias mirabolantes?.

Leia o livro. Leia essa alma narrando as lágrimas de San Lorenzo, os seus parágrafos sendo as suas lágrimas também, respirando choro. Longe de casa, toureiro de situações, dá-nos suas livrações enlivradas assim. Puro deleite. Seja você também esse viajante com ele, na Espanha de Lorca e Nahud.

Você lê música e fotos nas palavras dele. Filmes com narcisos, mais a policromia imagética de jacintos azuis.

Não é qualquer um que escreve gardênias quando chora.


PELOS CAMINHOS DA ESPANHA DE ANTONIO NAHUD

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Quando terminei a leitura das crônicas de Se um viajante na Espanha de Lorca, de Antonio Nahud, além de ter satisfação por ler textos bem escritos, despojados, sem serem pretensiosos, senti uma vontade danada de viver, de apenas viver. Textos como “Que alegria de viver!” despertam para a vida. O jovem poeta é um desses andarilhos que, embora não esqueça das suas origens, não se condiciona às geografias e bota o pé na estrada pela necessidade de andar e descobrir coisas, enquanto vai se revelando para o leitor e para si próprio.

Consciente da individualidade do ser, Nahud, em um dos primeiras crônicas do livro, lembra que “A aventura começa dentro de nós”. E em Tarifa, Andaluzia, rememora quando, desconhecido de todos, transitava pelas ruas de Marrocos a se indagar sobre as várias faces do seu eu: “Qual o meu nome? Sou tantos.” É inevitável não lembrar do célebre romance de Gerardo Mello Mourão, O Valete de Espadas, no qual um viajante, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, passa de um lugar para outro sem perceber: amanhece em um hotel que não conhece, perambula pelas ruas da cidade, também sua desconhecida e, ao dormir novamente, acorda em um navio, do qual não sabe nome nem destino. É assim o Nahud em suas crônicas, o homem no mundo perplexo com tudo que o cerca, o sujeito que está sempre aberto para o desconhecido, em busca de.


Paradoxal, o nosso viajante afirma no título da crônica: “Eu só conheço esse caminho do Paraíso”, para em seguida informar que “Não conheço ninguém, ninguém me conhece. Como não conheço ninguém e ninguém me conhece, é quase como não existir”. O não existir para certas esferas, parece condição para uma ligação com o Paraíso, para trilhar pelos caminhos do Coração, assim como queria o brujo Dom Juan, em A erva do diabo, de Carlos Castaneda: “Para mim só existe percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer caminho que tenha coração. Ali viajo, e o único desafio que vale é atravessá-lo em toda a sua extensão. E por ali viajo olhando, olhando, arquejante.”

Ainda em O Valete de Espadas, num diálogo, há uma definição que se aproxima da expressão do autor de Se um viajante na Espanha de Lorca: “– Quem é este rapaz? – É um peregrino. Peregrino das próprias entranhas.” Antonio Nahud é um peregrino dos mistérios do eu. Seus sentimentos, suas dores, suas alegrias – a parte as suas peculiaridades – são as de todas as pessoas, pois somos massa do mesmo barro; o mesmo sopro lírico que energiza o poeta, movimenta a humanidade – e esse é o motivo da identificação imediata do leitor com o cronista.

Diante da unidade do conjunto de crônicas de Se uma viajante na Espanha de Lorca, as seções subsequentes “Dois personagens” e “Um relato”, que apresentam, respectivamente, dois estudos e um conto, ficam fora do clima das narrativas. A impressão que deixa é de que deveriam ter aguardado um momento mais propício para publicação, ao lado de outros trabalhos do autor, de gêneros correspondentes. Por outro lado, a inclusão desses textos dá uma mostra da diversidade criativa de Antonio, escritor profícuo que transita com desenvoltura pelos mais diversos gêneros.

Percorrer os caminhos da Espanha de Antonio Nahud  é percorrer as searas do coração, e todos os seus textos abrem portas para o livre estradar. A Espanha de Antonio não é territorial, é dentro do Antonio, é dentro de mim, e dentro de você, meu caro leitor. Assim, invoco todos os santos poetas e todos os poetas malditos para celebrar este acontecimento literário, e convoco todos os peregrinos da vida para trilhar por essas veredas. “E res mès / E nada mais”.


“Se Um Viajante Numa Espanha de Lorca”
Pé de Página Editores, Maio 2005, Coimbra, Portugal