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antonio nahud no marrocos, 2005 |
PAUL KLEE
Remando
contra a corrente, o desgosto tomou conta do meu ser. Como viajar é um santo
remédio contra tal estado calamitoso, voltei mais uma vez ao Marrocos, sendo imediatamente tomado pela
alegria de viver. Para iniciar no encantamento, basta-me aprofundar no amor,
arte, natureza, mistérios de uma cidade formosa. Em Tanger, odores, inquietantes
melodias que mais parecem queixumes, revoadas de andorinhas à cata de insetos,
labirinto de ruelas estreitas, luz, sombras. Rostos corados, sons, mar da praia
de Malabata, a imponente porta de Bar er Raha, banhos públicos, o
Kasbah. O muçulmano divide o mundo em crentes e infiéis, mas eu quero
acreditar que o ser humano é maior do que se rotula. Quero acreditar na vida, por
mais frívola que seja, contendo um tesouro em algum recanto escondido.
Na
primeira metade do século 20, Tânger era conhecida como um centro de contrabandistas,
espiões, exilados, homossexuais em férias. É a terra que o escritor
norte-americano Paul Bowles escolheu para viver. Lembro-me do seu corpo frágil,
de pássaro, apoiando-se em mim enquanto caminhávamos no Petit Socco, uma
pequena praça ladeada por cafés e hotéis. No Marrocos, mora o afinado escritor
espanhol Juan Goytisolo, encontra-se o túmulo de Jean Genet na beira-mar e
circulam histórias picantes do casal Bowles. Sozinho, encerrado na própria
liberdade, sensações me passam pela cabeça. Estar sozinho numa cidade
estrangeira não é nada simples. Precisa-se de energia especial para circular
entre milhares de rostos estranhos, nas mesmas ruas pelas quais passam
multidões em direção a um futuro incerto. Posso ver claramente, nenhuma certeza
é oferecida a ninguém. Nem mesmo para visitantes ilustres
como Truman Capote, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Tennessee Williams ou
Christopher Isherwood.
Corro
mundo sem deixar de ser o que sou. Sou da raça que sempre parte, a nômade. Às 8
da manhã, no Hotel Ville de France, o mesmo que hospedava Gertrude Stein e sua
amante Alice B. Toklas, peço o primeiro chá de hortelã do dia. Diante de mim, o
livre-arbítrio. Mas a liberdade somente se tranquiliza perante o amor.
Questionando a existência e apinhado de associações literárias, caminho sem
destino na cidade moura. Não quero ter razão, muito pelo contrário, quero
aprender com os erros. Quem sempre quer ter razão está contra todos. Oscar
Wilde, que viveu sob a rigorosa filosofia da arte como beleza e da vida como
refinamento, após a derrota, cárcere e traição, decepcionado, deixou de
escrever. Miserável e doente, vagando pelas ruas de Paris, encontrou casualmente
André Gide e, diante do incômodo desse, disse: “Não é preciso se interessar por
alguém que foi fulminado”.
Dias
de contemplação na terra do profeta Maomé, explorada pela França durante 44 anos.
Contemplação não fornece exatamente distração. Assim, acato o desatino dançando
sinuosamente no clube noturno Le Palais, no Hotel Tanjah Flandna. Morenos
sorridentes me oferecem haxixe puro, tomam-me nos braços num bailado selvagem.
Numa festa nos jardins do Palácio Mendoub, cujo dono é o editor e milionário
Malcolm Forbes, trabalhei carregando caixas de sons, refletores e fios
intermináveis de uma banda musical, conhecendo o romancista Rodrigo Reis Rosa e
me deixando levar pela sedução de um excêntrico casal de artistas. Em Tânger, esqueço nome,
idade, costumes, passado, identidade, metamorfoseando-me em animal sem dono,
raça, pátria. O Marrocos me possui. Amo-o.
O
homem é um bicho tolo. Tolo, sentimental. Sensibilizado, escuto a língua árabe
marroquina, mergulhando em lojas de artesanato de barro e kilims. Numa delas,
fumo kish, esquecendo parte de mim, esmagando a dor e alguma verdade pessoal. A
meta é viajar em direção ao mar, à fontes inesgotáveis de sonhos. Leve, guardo
na memória o mercado Grand Socco, a mesquita Sidi Bouabid de ricos azulejos, praias
banhadas simultaneamente pelo Atlântico e Mediterrâneo, o dócil amigo Rachid.
Sinto o Marrocos como demência espiritual, beleza perene. Sem beleza, fé ou a
insensatez do amor, seria ainda mais difícil viver.
ANTONIO NAHUD
(do livro “SE UM VIAJANTE NUMA ESPANHA DE LORCA”, 2005)
FORTUNA CRÍTICA
À VIAGEM
VICENTE FRANZ CECIM
Cigano
incorrigível por vocação luminosa ou oculto Fado, Antonio Nahud realiza a vida
nômade com que todos sonhamos, imersos em nossas vigílias sedentárias. É por
nós, generosamente, que ele cruza oceanos, contempla as paisagens, sem hesitar
penetra em labirintos, ausculta cavernas, desvela horizontes, revela
territórios reais e poéticos, se expõe face a face com geografias desconhecidas
e interroga o humano em Diálogos reveladores, sempre, por onde passa.
Capturadas em vivências que ele transforma em palavras, preservando, nessa alquimia,
a mais pura autenticidade, suas Peregrinações nos enriquecem de sabores e
sabores novos. À maneira de Xavier de Maistre em sua “Viagem em Torno do meu
Quarto”. Sim? Mas um Xavier de Maistre invertido, porque o quarto de o Antonio Nahud é o mundo. Como ele outro e lendário cigano: Marco Polo, é à Viagem que
eles convidam. E não apenas à exterior, mas também a nós mesmos. Aceitemos o
convite.
SE UM VIAJANTE NUMA ESPANHA DE LORCA
SILAS CORRÊA LEITE
De
certa forma fugidio de si mesmo, Antonio Nahud, no seu último livro “Se um
Viajante Numa Espanha de Lorca”, feito um intrépido cigano viajoso – também nos
relatos de inúmeras pensagens – compilou crônicas, fábulas, relatos, narrativas,
delírios, costumes e inquietudes, tudo acontecências dessa bela espécie de
gracioso e oportuno “caderno de viagens” .
Escrevendo
muito bem, o autor nômade traça paralelos de contemplações, procurando em
tantos lugares, até mesmo exóticos e históricos que sejam, o seu próprio lugar
de se Ser; alma nau registrando itinerários, descaminhos, vigílias, buscas e
labirintos (íntimos), ainda assim revelando territórios e o demarcando de algum
forma, ensejando o mapa de sua existência frutífera no mundo errante, com seus
recolhes de imagens, ponderações e palavras caprichadas.
O
livro todo é nesse contextual. Já autor de tantas outras obras – (Livro de
Imagens, Um Sentido Para a Vida, Arte-Palavra, Caprichos, Ficar Por Aqui Sem
Ser Ouvido Por Ninguém, Retratos em Preto e Branco e o Aprendiz do Amor) –
Antonio Nahud mostra seu diletantismo de viver intensamente doa a quem doer (e
se movendo com certa ressaca de uma paixão que deixou marcas ainda vivíveis),
sempre projetando arredondar estigmas e acertar parafusos soltos muito além do
reino do sonho, e, para sorte de seu leitor, registra tudo sem se esconder, vai
fundo sem sextante de si mesmo, expondo lamentos e algumas vezes os estados
numinosos de múltiplas contemplações.
Anseios,
perdas, amores que podem dizer o nome, expectativas, fronteiras, frustrações,
dezelos íntimos, e, claro, a arquitetura de paisagens nas suas contações em
gracezas de detalhes e óticas puristas que fisgam o leitor pelo enfoque de
peregrino em caminho de si mesmo, pergaminho e cinzel, busca e buscador,
estrada e caminhação.
Amante
de Frederico Garcia Lorca – ele mesmo certamente um pouco Lorca também – e fã
de Jean Genet, Henry Miller Virginia Woolf, Lucio Cardoso e tantos outros,
Antonio Nahud vai descrevendo – revelações em sépia como um excelente fotógrafo
que o é – o que o seu mavioso latino olhar nostálgico capta no estreito de
Gilbratar e seu entorno, desnudando-se também ao invadir espaços e paredes,
memórias e registros delas, momentos e contemplações, sob a ótica de seu filtro
espiritualizador, pondo a alma para respirar nessas caminhações mundo a fora,
Ser a dentro, entradas e bandeiras.
Às
vezes domina tão bem o seu transbordante cálice de vinho-verbo (denota isso de
maneira tácita), que você caminha lado a lado com ele pelas paisagens
invocadas, e capta as refrexões-vazantes de suas ponderações contra moinhos e
ventos de erranças e iluminuras. A mão do parágrafo, a página de rosto, a
edição-Ser contando prumos e fungos. Bonitezas.
Ele
filosofa com sentido energético, opina com acidez, vergando a alma, lavra-se
(lava-se assim?) pensando estágios do devir e assim vai se dando, livro aberto
ao leitor que cativa pelas narrações bem costuradas, pondo mesmo imagens na
cabeça da gente a viajar com ele, fixando sua vivência andarilha assim no seio
de nosotros.
Incorrigível?
Sedentário também. Em cada porto uma saudade, resgata um oxinegação de seixos
íntimos, perde lastros, na insustentável leveza de se ser. Registros. Querelas
interiores. É quase uma viagem em torno de si mesmo, pois, pra onde fugir(...)
sempre estará ali, seu lugar de si, self: se levará consigo. O amor tem
loucuras que a própria lucidez desconhece? É por aí esse mergulho mochileiro
numa estrada que vai dar no Ser. Quase um resgate.
Fala
de Kant, de Marrocos, da Espanha que adora. Diz de pecados, desmistifica rumos,
aponta paraísos e paradoxos, sagracial e interrogativo leva uma cisma ainda não
identificada, aqui e ali diz de músicas, sombras, barbáries, abismos, e, claro,
prova que realmente a grande aventura (cósmica, inclusive) começa dentro de nós
mesmos.
Busca
um porto seguro ultramarino, depois de deixar sua Bahia de Todos os Santos. Ou
prefere o atol das doces memórias como cantou Ray Charles? Interrogações.
Ilumina o diafragma do olhar, dá um clic na alma, feito um noiteadeiro em terra
estranha, procurando seu lagar de afetos escondidos, ou, talvez, o medo de amar
número dois. Nesse bolero-blues salpica de estrelas o chão-lugar de seu estar.
Um Lorca pós-moderno esse Antonio Nahud?.
Delicioso
o livro. Vale a pena ler. Há um estado onírico (realidade substituta?)
inventariando a vida, certamente o inverso do caminho de Santiago nele. Honra e
fé revisitadas. Autenticidade visceral, Carpiem diem. É isso. Todos nós temos
nossos outonos entrevados. Anjos presos em fio de alta tensão. Cárceres de
tentativas?. Escrevendo, aliviando-se, o autor dá nos seu testemunho de
resistência de alguma maneira, por alguma loucura-razão. Arte e libertação no
enfavamento tresloucadas de ideias mirabolantes?.
Leia
o livro. Leia essa alma narrando as lágrimas de San Lorenzo, os seus parágrafos
sendo as suas lágrimas também, respirando choro. Longe de casa, toureiro de
situações, dá-nos suas livrações enlivradas assim. Puro deleite. Seja você
também esse viajante com ele, na Espanha de Lorca e Nahud.
Você
lê música e fotos nas palavras dele. Filmes com narcisos, mais a policromia
imagética de jacintos azuis.
Não é
qualquer um que escreve gardênias quando chora.
PELOS CAMINHOS DA ESPANHA DE ANTONIO NAHUD
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
Quando
terminei a leitura das crônicas de Se um viajante na Espanha de Lorca, de
Antonio Nahud, além de ter satisfação por ler textos bem escritos, despojados,
sem serem pretensiosos, senti uma vontade danada de viver, de apenas viver.
Textos como “Que alegria de viver!” despertam para a vida. O jovem poeta é um
desses andarilhos que, embora não esqueça das suas origens, não se condiciona
às geografias e bota o pé na estrada pela necessidade de andar e descobrir
coisas, enquanto vai se revelando para o leitor e para si próprio.
Consciente
da individualidade do ser, Nahud, em um dos primeiras crônicas do livro, lembra
que “A aventura começa dentro de nós”. E em Tarifa, Andaluzia, rememora quando,
desconhecido de todos, transitava pelas ruas de Marrocos a se indagar sobre as
várias faces do seu eu: “Qual o meu nome? Sou tantos.” É inevitável não lembrar
do célebre romance de Gerardo Mello Mourão, O Valete de Espadas, no qual um
viajante, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, passa de um lugar para outro sem
perceber: amanhece em um hotel que não conhece, perambula pelas ruas da cidade,
também sua desconhecida e, ao dormir novamente, acorda em um navio, do qual não
sabe nome nem destino. É assim o Nahud em suas crônicas, o homem no mundo
perplexo com tudo que o cerca, o sujeito que está sempre aberto para o desconhecido,
em busca de.
Paradoxal,
o nosso viajante afirma no título da crônica: “Eu só conheço esse caminho do
Paraíso”, para em seguida informar que “Não conheço ninguém, ninguém me
conhece. Como não conheço ninguém e ninguém me conhece, é quase como não
existir”. O não existir para certas esferas, parece condição para uma ligação
com o Paraíso, para trilhar pelos caminhos do Coração, assim como queria o
brujo Dom Juan, em A erva do diabo, de Carlos Castaneda: “Para mim só existe
percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer caminho que tenha coração.
Ali viajo, e o único desafio que vale é atravessá-lo em toda a sua extensão. E
por ali viajo olhando, olhando, arquejante.”
Ainda
em O Valete de Espadas, num diálogo, há uma definição que se aproxima da
expressão do autor de Se um viajante na Espanha de Lorca: “– Quem é este rapaz?
– É um peregrino. Peregrino das próprias entranhas.” Antonio Nahud é um
peregrino dos mistérios do eu. Seus sentimentos, suas dores, suas alegrias – a
parte as suas peculiaridades – são as de todas as pessoas, pois somos massa do
mesmo barro; o mesmo sopro lírico que energiza o poeta, movimenta a humanidade
– e esse é o motivo da identificação imediata do leitor com o cronista.
Diante
da unidade do conjunto de crônicas de Se uma viajante na Espanha de Lorca, as
seções subsequentes “Dois personagens” e “Um relato”, que apresentam,
respectivamente, dois estudos e um conto, ficam fora do clima das narrativas. A
impressão que deixa é de que deveriam ter aguardado um momento mais propício
para publicação, ao lado de outros trabalhos do autor, de gêneros
correspondentes. Por outro lado, a inclusão desses textos dá uma mostra da
diversidade criativa de Antonio, escritor profícuo que transita com
desenvoltura pelos mais diversos gêneros.
Percorrer
os caminhos da Espanha de Antonio Nahud é percorrer as searas do coração, e todos os
seus textos abrem portas para o livre estradar. A Espanha de Antonio não é
territorial, é dentro do Antonio, é dentro de mim, e dentro de você, meu caro
leitor. Assim, invoco todos os santos poetas e todos os poetas malditos para
celebrar este acontecimento literário, e convoco todos os peregrinos da vida
para trilhar por essas veredas. “E res mès / E nada mais”.
“Se Um Viajante Numa Espanha de Lorca”
Pé de Página Editores, Maio 2005, Coimbra, Portugal