Ilustrações:
GUSTAVO BACARISAS Y PODESTÁ
(1873 – 1971. Gibraltrar, Cádiz / Espanha)
Conto e fotografias: ANTONIO NAHUD
Vê-lo não é um espetáculo divertido. A julgar
pelas circunstâncias, está há uma ou duas horas atado a um grosso tronco de oliveira,
nu, saco cortado e enfiado goela adentro. O sangue vinho escorre pelas pernas
fortes, sem pelos, manchando a terra áspera. Olhos grandes, opacos, bem
abertos, fixam o nada, tomados por um susto dos diabos. Enormes orelhas, olhos
negros, e parece tão inocente como um pequeno animal dos bosques. Nenhuma
documentação, roupas ou qualquer objeto que o identifique. Depois de busca
minuciosa, o policial colhe a dois metros do corpo, entre tufos de alfazema, um
preservativo utilizado e anel de prata com a letra M gravada. “É um maldito
marroquino sem papéis”, sentencia a autoridade gorda, carrancuda.
Vinte
e quatro horas antes, Mohamed beijou a mãe e cada um dos nove irmãos mais
novos; e eles, esperançosos, não choraram. No bote, apertado entre 17 indivíduos
suados e tensos, em pé, buscou o céu oculto pela neblina e a lembrança do avô
poeta recitando o épico “A Gata Negra”, narrando a
sombria solidão humana. Ele o interpretava magistralmente em celebrações
públicas e reuniões familiares. Observando olhos, bocas, mãos, formas
fantasmagóricas que se escondem e se mostram na névoa, comoveu-se com uma mulher
de chilaba azul-turquesa e rosto tapado, agarrando-se a uma criança de colo. O
seu olhar fulminante escondia um grito. Atravessando o Estreito de Gibraltar
habitado por golfinhos e sereias famintas de carne humana, despediu-se da
branca Tânger. O perfume particular da cidade cheirava a coisa antiga,
confundindo-se com o perfume selvagem e apaixonado da terra cigana do outro
lado do canal.
Deixou
uma dívida de 1500 euros, que será cobrada pelo dono da embarcação, em dez
prestações mensais, diretamente a sua miserável família. Antes, tentou por duas
vezes o visto para entrar legalmente no continente europeu, e não houve conversa,
tampouco apelo, negadas as súplicas sem explicação. Aos 21 anos, falando quatro
idiomas, e dono de extraordinária beleza que atrai estrangeiros ávidos por
sexo, além de seus próprios companheiros, que o curraram algumas vezes sem
muita resistência, Mohamed vivia com o sonho de se tornar artista de cinema na
Itália ou França. Deixou a poética Chechoaouén, no alto das montanhas, sem dó
nem piedade, e quando o marcado rosto materno se crispou, afirmou convicto:
“Não se preocupe, ganharei dinheiro e darei uma vida melhor para todos nós”. O
pai fez a mesma aventura dois anos antes, em um bote idêntico ao que utilizou
como transporte aquático, e nunca mais se soube dele ou dos 34 imigrantes que o
acompanhavam. Com a roupa do corpo e a joia de prata como únicos bens, tremendo
de frio, alucinado pelo vento forte e as violentas ondas do mar Mediterrâneo, Mohamed
cantou com toda a força um antigo cântico berbere ensinado por sua avó.
Imediatamente, o capitão da frágil embarcação exigiu silêncio, censurando: “O
que quer? Não percebe que a patrulha está alerta para qualquer ruído?”.
Às
doze da noite avistou a costa: uma praia deserta, montanhas, as luzes
longínquas de Tarifa. A súbita claridade provocou incômodo e excitação.
Surgindo o barco patrulha no horizonte, Mohamed não pensou duas vezes,
mergulhando nas águas frias, nadando o mais rápido possível. Tocou as rochas,
escalando o monte até um caminho elevado que descia bruscamente para um bosque
em que cresciam alfazemas silvestres, flores brancas, oliveiras e centenas de
pinhos. Deitado sob uma árvore, ao lado de um cavalo negro e de duas garrafas
vazias de vinho, dormia sobre o estômago, profundamente, um adolescente bêbado.
Mohamed procurou despertá-lo; não conseguindo, retirou toda sua roupa, um traje “campero”, vestindo-o; partiu cavalgando. Sentiu-se elegante, irresistível,
irreconhecível naquele disfarce. A rodovia levava a uma feira profana, na
entrada da cidade, celebrando a Virgem de la Luz. A paisagem encheu-se de
garotas vestidas de ciganas e homens a cavalo, em ruas e praças suntuosamente
iluminadas.
Abandonando
a montaria, o garoto gastou parte do dinheiro encontrado na carteira do bêbado em um
restaurante povoado por centenas de pessoas barulhentas. Comeu duas codornizes,
fumando um cigarro a seguir. Passeou pelo parque de diversões e no
tiro-ao-alvo, por volta das duas da madrugada encontrou Pedro. Este o olhou
fixamente com grandes olhos verdes, e Mohamed devolveu o olhar. Estudou seu
rosto, lenta e calmamente, com atenção. Produzia a impressão de ser um bom
menino rico, caipira. Pele de pêssego, dedos como tentáculos, um
brilho febril no olhar. Convidou o estrangeiro para compartilhar uma jarra de
rebujito, uma mistura de vinho doce e refrigerante de limão. Tomaram quatro
delas e logo, embriagado, sem causa alguma que levasse ao assunto, Pedro
contou-lhe sobre o pai violento assassinado dois anos antes pela própria
esposa; a irmã menor de idade, Aracelli, estuprada por um gringo drogado, que
fugiu. Narrou cuidadosamente essas histórias dramáticas, sorrindo,
abraçando o novo companheiro pela cintura e pedindo ao barman mais uma rodada
da bebida típica andaluza. “Eu ainda matarei a esse filho da puta que fodeu
minha irmã”, completou. Mohamed se chocou. Era como observar a alguém
despojar-se de um disfarce e ver debaixo algo horrível. O espanhol escondeu a
dor doentia em uma fácil, lânguida, pouco profunda e por vezes ambígua,
conversação. Quando terminou de virar a taça de líquido amarelado, encostou-se à máquina de cerveja do balcão, soltando uma baforada de fumaça:
- Sou um homem que sabe das coisas. Seria
capaz de adivinhar toda a sua vida se tivesse vontade. Tenho pouca idade, vivo
em uma fazenda, aprendi rápido as coisas da vida. Vamos dar uma volta de carro.
O
rosto do marroquino, repousado, secreto, não demonstrava qualquer receio. A
aurora despontava quando chegaram à parte baixa de um bosque margeando um rio.
Pedro desligou o carro, terminou de esvaziar a garrafa de uísque e, tonteando,
deu alguns passos para urinar com abundância, mantendo o pau de fora depois de
acabar. De pé, via-se o espanhol em toda a imponente estatura e fortaleza.
“Quer morar aqui para sempre?”. Não houve resposta. “Tenho algum dinheiro para
gastar ao meu modo. Posso ajudá-lo”, continuou. Deu a volta, abriu a porta do
lado onde estava sentado o marroquino, aproximando suavemente o pau. Ao aceitar
a carícia, Mohamed se viu subitamente com um revólver na testa, sacado do
porta-luvas.
Pedro
o obrigou a tirar a jaqueta, a camisa branca, botas, calça e cueca, e o fez
caminhar. Tomou um par de tragos de um vaso metálico, atando os pulsos da vítima. Gotas de suor deslizaram pelo corpo moreno. “Um puto marroquino enfiou a tromba
- assim, enorme como a sua -, na xoxota cabaço de minha irmãzinha”, disse a voz
dura, cinzenta. Ouviu-o como um grito agudo e irreal, permanecendo calado.
Depois de um momento, perdeu a noção da realidade, a mente vagando pelas
imagens lúdicas do avô, as ruas apertadas da cidade natal, filmes antigos
no velho cinema, fumadores de haxixe, banhos de rio, o pai prometendo mandar
buscá-lo, caça ao coelho. Neste novo país ele era o coelho preso em uma
armadilha. “Necessito de sangue. Tenho que ver sangue”, gemeu o carrasco. Tudo
foi rápido. Atado à oliveira sagrada, penetrado seguidas vezes com violência e
capado. Pedro deu-lhe bom dia e se retirou, deixando-o morrer lentamente.
O
corpo brilha ao sol, de uma cor azul-marinho. “Já é suficiente, Paco. Vamos
enterrá-lo aqui mesmo. Melhor não complicar as coisas”, decide um dos policiais.
A luz solar, ao se infiltrar por entre as árvores fechadas, desenha brilhantes
linhas sobre algo que havia sido um belo homem. O cenário, formoso e alegre,
produz a impressão do nascimento de um dia cálido.
Publicado no livro “Se Um Viajante numa Espanha de Lorca”
(Pé de Página Editora, Portugal, 2005)
(Pé de Página Editora, Portugal, 2005)
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antonio nahud, andaluzia, espanha |
antonio nahud, andaluzia (espanha) |
9 comentários:
Li e fiquei consternada!... Ver assim, "no más ", exposta toda a insensatez, a incongruência, a maldade de um coração primitivo e empedernido chega a doer na gente! Mas é uma estória muito bem estruturada e narrada com deliciosa fluidez. Gostei!
Beleza
Belo conto. Chocante.
Trágico e belo.
Agradeço "Andando por um caminho selvagem ", um presente. Também foi muito bom rever as fotos ( algumas não conhecia ) de Virginia Woolf; e Torquato Neto - quantas e valiosas informações !!!
Conto bem triste, mas de uma poesia funda.
Amei muito....mais esse!!!
Você consegue mostrar a sua alma e os seu encantamento nos seus belos textos.
muito legal, adorei!
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