janeiro 06, 2019

................................ CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 02



“Solidão é o modo que o destino encontra para levar o homem a si mesmo.”
HERMANN HESSE
(Calw, Alemanha. 1877 - 1962)

Ilustrações:
ERNST LUDWIG KIRCHNER
(Aschafemburgo, Alemanha. 1880 - 1938)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a segunda narrativa.

A ENCRUZILHADA dos DESTINOS

Nunca fui turista, sou um eterno viajante. O turista não encara a intensidade dos lugares desconhecidos, é demasiado assustador para sua realidade. Ele não está interessado na poesia do cotidiano, na análise delicada dos fenômenos, na beleza secreta do viajar. Circula às pressas, sem entrega, como se estivesse diante de uma série de cartões-postais. Nesta valorosa viagem germânica, aprendi que para superar dificuldades, repelir dores e gozar alegrias, devo continuar cultivando o estado contemplativo. As condições favoráveis para a felicidade são difíceis de alcançar e, uma vez encontradas, diluem-se como miragens num piscar de olhos. Aqui, na Floresta Encantada, observo o mundo da forma e da ausência de forma. Sou um inseto de luz flutuando na escuridão. A visão penetrante vai fundo no fado dos homens e dos bichos, na maneira como percebem a Vida. Um exercício que dissipa a obscuridade, desenvolvendo o auto-conhecimento.

As criaturas deste Rainbow são personagens de uma aventura milenar. Muitos não sabem que existem, outros procuram caminhos para aliviar o vazio. Eles são muitos, de diversas expressões e intenções, gozando uma temporada aparentemente ilimitada. O “Círculo da Comida”, em cujo centro se ergue uma enorme fogueira, é uma encruzilhada concentrando milhares de estranhos, cada um com seu destino único, sentados à espera da ração de frutas, legumes e verduras. O sofrimento humano parece inexistente. Um idoso xamã, lunático, trajado numa minúscula tanga, rodopia, elevando um longo cajado e acompanhado por um fiel pastor-alemão. A cabeça calva coroada de delicadas flores-do-campo, a barba antiga e grisalha, olhos glaucos e pele rígida curtida ao Sol. Um animal raro, um sátiro, o Louco do Tarot apanhando cinzas na fogueira, soprando-as nos nossos rostos, um por um, e gritando: "Love! Love!". Como será o cotidiano desta figura fora daqui? Suporta o caos urbano?

Vivo a beatitude e, na pureza local, faço constantemente exercícios espirituais e poéticos. Sob a influência do misterioso, o poeta cigano divaga em um frenesi longínquo, ciente que o tempo histórico é uma ilusão da consciência; não existe tal cronologia. Seduzido pela paisagem de sonho e a concentração humana, rabisco palavras louvando o fundo do oceano de si mesmo, de nós, de qualquer ser; versos invocando a natureza. A simplicidade, por ventura, favorece o perfume das palavras.

Na obscuridade, sinto o céu de Goethe (Frankfurt am Main, Alemanha. 1749 - 1832), Friedrich Hölderlin (Lauffen, Alemanha. 1770 - 1843) e Thomas Mann (Cidade Livre de Lübeck, Alemanha. 1875 - 1955). O caminho da Via Láctea é o caminho. Ao longe e em volta, montanhas e a Floresta Negra. Existem, e agradam-me à vista, imerso na magia. Andara, Mata Atlântica, Chapada Diamantina e outras formosuras, visíveis e invisíveis, completam-se no meu raciocínio íntimo. São dias em que não preciso de consolo. Nesse conforto, nessa tranquilidade, repouso o espírito. Não pertenço a um lugar determinado, movo-me suave e firme, algumas vezes com a certeza da melancolia, mas nem sempre.

Em Berlim, Colônia ou Munique sangra a ferida dos duros anos da Segunda Guerra, se ajusta contas com o passado de carnificinas e paisagens devastadas. Nas calçadas, tijolos dourados de metal resplandecente exibem nomes, datas de nascimento e desaparecimento - recordam o massacre de 6 milhões de judeus. Adolf Hitler é o símbolo número um da maldade resultante da retórica ditatorial. A Alemanha rendeu-se a 8 de Maio de 1945, findando a guerra na Europa. Passaram-se 60 anos, o mundo deu muitas voltas, mas a II Guerra jamais vai deixar de ser uma infâmia na história recente da humanidade. De onde escrevo, neste lugar de contentamento, ocorreu na época uma terrível batalha resultando em milhares de mortos. A arcaica patifaria humana.

Tive pesadelos bizarros com o holocausto anti-semita e, para a minha agonia, com o nefasto Josef Goebbels, ministro da Propaganda na infâmia hitleriana, que me convidou educadamente para conhecer o bunker do Fuhrer. Noutra noite, sozinho, ouvi uma voz feminina piedosa, clara, sussurando “Viktor! Viktor!”. No dia seguinte encontrei um humilde túmulo, em uma parte obscura da clareira, cuja lápide trazia o ano de 1944 e um nome, Gustav. Seria um jovem soldado nazista? Um ingênuo que não conseguiu regressar à casa da família? Sua casa ruiu enquanto estava no campo de batalha? Não teria mudado o caráter ao ser possuído por um regime de terror e crime? A guerra é um dos piores aspectos da nossa estupidez. Espantoso e pungente refletir sobre a guerra; invasões, deportações, guetos, campos de extermínio; a crise econômica e moral; dificuldades dos sobreviventes em retomarem suas vidas, o desespero e a readaptação dos mutilados; a esperança em dias melhores.

Gosto da Alemanha, da sua gente amável e do silêncio dramático das cidades. Sinto-me em casa, embora sofra com o frio. Entre tantos lugares que vivi ou passei, a Alemanha foi paixão à primeira vista. Desperta-me uma série de identificações. Na Bavária, gritei ao vento: “Onde está, Ludwig II? Em que castelo formoso chora ao ouvir óperas de Wagner?”. Desde adolescente assisto em cinematecas filmes com o selo de qualidade UFA (Universum Film Aktiongesellschaft), um importante estúdio de cinema alemão. Aprendi a amar suas ambiciosas produções pilotadas por diretores como Fritz Lang, Friedrich Wilhelm Murnau, Ernst Lubitsch, Paul Leni. Bem como atores da estirpe de Conrad Veidt, Peter Lorre, Brigitte Helm, Pola Negri, Joseph Schildkraut, Lil Dagover, Rudolf Klein-Rogge, Paul Wegener, Zarah Leander, Werner Krauss.

Tenho uma perene atração por “Dr. Mabuse / Dr. Mabuse der Spieler” (1922), “Metropolis / Idem” (1926) e “M - O Vampiro de Dusseldorf / M” (1931); pelo erotismo da Lola-Lola de Marlene Dietrich, em “O Anjo Azul / Der Blaue Engel” (1930), que marcou época. Adaptado de um romance de Heinrich Mann, o clássico de Josef von Sternberg narra a degradação de um professor (criação magistral de Emil Jannings) apaixonado por uma cantora de cabaré. Jannings ganhou o Oscar de Melhor Ator em 1928 e se tornou um rosto indispensável em muitos filmes de propaganda do III Reich. Ele está inesquecível como o miserável porteiro de "O Último Homem / Der Letzte Mann" (1924) ou o Mefistófeles de "Fausto / Faust" (1926).

A Alemanha sempre lançou e exportou talentos, do corrosivo Billy Wilder ao lendário condutor de melodramas Douglas Sirk, incluindo fotógrafos excepcionais como Eugène Schuftan e Michael Ballhaus. A década de 70 trouxe outra boa fase para o cinema alemão, revelando Wim Wenders, Robert van Ackeren, Ulli Lommel, Volker Schlondorf, entre outros. O mais autoral e incisivo dessa época, Rainer Werner Fassbinder, é autor de maravilhas como “O Casamento de Maria Braun / Die Ehe der Maria Braun” (1978) ou “O Desespero de Veronica Voss / Die Sehnsucht der Veronica Voss” (1981); e por atrizes em estado de graça: Hanna Schygulla, Eva Mattes, Margit Carstensen, Barbara Sukowa etc.

No clarão da tarde, escrevendo e comendo amoras, framboesas e cerejas, recebo o sorriso de um rosto sugerindo um brando contentamento. Vou ao encontro dela, sentando-me ao seu lado. A poeta marroquina Amél ri outra vez. “Sto molto bene. È come un sogno, e adoro il sognos”, diz em italiano. Olhos rasgados, incisivos, faiscante. Eu a conheci numa noite de Lua Nova, dias passados, no “Angel Walk” (O Caminho do Anjo). Uma experiência vasta, perturbadora, sensual. Mais de cinqüenta pessoas, em fila dupla, olhos fechados, acariciam “anjos” que atravessam o túnel carnal. Participei e senti emoções autênticas. “A vida é curta”, garante Amél, sem nenhum motivo aparente. A vida é curta, confirmo. Levanto-me, atravesso a clareira, deixando a encruzilhada, o coração palpitando em triunfo inocente. Caminho pela Floresta com desmedida fé, procurando trilhas do bem e contente por estar só e em paz. Recebo na cara a atmosfera vertiginosa da tarde úmida e pálida. Quem se esconde dentro de mim? Qual é a transcendência?

Alemanha, agosto de 2005

CONFIRA a PRIMEIRA CRÔNICA
“Relâmpagos Rasgando a Noite”

 
 
 

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