Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem
pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta
Negra germânica e na Toscana.
Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Esta semana encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.
São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único
ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo
de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog .
Confira a primeira.
01
RELÂMPAGOS RASGANDO a NOITE
Cada um de nós
é vencido apenas pelo destino que não soube dominar. Não há derrota que não
tenha um significado e não represente também uma culpa.
STEFAN ZWEIG
(Viena,
Áustria. 1881 - 1942)
Ilustrações:
KARL SCHMIDT-ROTTLUFF
(Chemnitz, Alemanha. 1884 - 1976)
Nunca se deve lamentar o que passou,
repito, convicto, ao atravessar a clareira no alto da montanha, sob um céu de
chumbo iluminado subitamente por trovões, relâmpagos e raios. A pertinência de
viver intensamente, sem nostalgia sofrida, exige técnica e persistência. Lúcido,
desfruto os últimos dias na Floresta Negra. Diante dos olhos confusos, a inexistência,
o desatino. Os repetidos rasgos de luz na noite esmagam a razão, abrindo insustentáveis precipícios
n’alma. Diminuo os passos, acalmado pela chuva gélida, atento ao enigma. Trilho uma estrada úmida, salpicada por ramos espinhosos de framboesas maduras, em
direção à selva de castanheiras, carvalhos e faias.
Na entrada da mata, em uma tenda,
dois nórdicos grandalhões, saudáveis como lendários vikings, preparam o Tchai (chá
de gengibre, cardamomo, canela, cravo-da-índia, anis e algumas ervas secretas),
invocando sensações alegóricas e emanando um forte odor de madeira aromática. Aceito
uma xícara de chá. Insone no diálogo interior voluptuoso, mergulho em uma inexplicável
e secreta metamorfose. Cada vez mais fundo. Procuro manter-me
firme, não me desviando o do destino estabelecido, pois sei que
neste instante sou capaz de rastejar feito um perigoso réptil ou voar como um ágil falcão.
Caminho entre árvores gigantescas, pisando em folhas mortas, ao encontro da barraca violeta camuflada no reino vegetal. A tempestade repentina vai-se. Catando galhos para a fogueira, recordo o menino que fui pernoitando em uma fazenda de cacau. As chamas emolduram a memória poética. Alma livre, nada me pertence. A vida além da imaginação. Não piso em terra firme. As palavras fogem para longe, mal são ditas se desconstroem. Chovem desejos infindáveis, desconhecidos, assustadores. Chove o amor imortal.
Distante da Bahia de Todos os
Santos, na Floresta Negra, na terra dos Nibelungos, sul da Alemanha,
florescendo no espírito de vales e montanhas de contos de fadas. Personifico um
homem-lobo, um selvagem, o Knulp de Hermann Hesse. Nu, sem energia elétrica, água potável, televisão, celular, computador, automóvel e outros
méritos fonte da indolência. Que alívio! Que triunfo de viver! À vista, somos de quase cinquenta países, numa Torre de Babel às avessas, pois entendem-se perfeitamente. Mais de cinco mil pessoas participam desta vivência
comunitária com toque da Sherwood de Robin Hood.
Freaks, hippies, alternativos, malucos,
artistas, religiosos, ativistas sociais e ambientais. Fugitivos do urbano injusto, do
mercenário, fraternalmente em comunhão com a natureza. Repartimos o
pão com desconhecidos, comendo juntos com singeleza. Em outros tempos,
agrupamentos com conceitos parecidos foram acusados de heresia, perseguidos e
massacrados. Entre eles, os Cátaros, da Irmandade do Livre Espírito, na Idade
Média. Ouço essa história da boca do italiano Gabriele. Ele e sua esposa
veneziana, Ada, estão numa barraca próxima. Costumamos compartilhar a fogueira, alimentos, leituras e conversas. Pouco antes de dormir, ele toca flauta, quase
sempre Mozart.
Na noite passada, Gabriele me contou
que esteve recentemente na Polinésia, no vale luxuriante da Ilha de Maui, entre dois vulcões. Inicialmente não sabia a que ponto essa viagem seria importante para ele. Lá conheceu
Kahuna Alamea, xamã de poderes extraordinários, uma mulher pequenina, que irradiva sabedoria, calor e uma bondade milagrosa. “Pode acreditar
em mim, nunca mais conseguirei esquecê-la!”, disse-me, continuando: “Kahuna
significa Guardiã dos Segredos”. Na sua partida percebeu o chamamento mágico ao receber um presente valioso: o Talismã da Chama Sagrada. “Você
vê, Gabriele, a Chama Sagrada é o Sétimo Raio dos Arcanjos. Ele repara
os destinos em perigo”, ouviu de Kahuna.
Segurou o talismã com cuidado. No
momento em que nele tocou, o rosto de Deus apareceu claramente. Um sorriso radiante de felicidade iluminou
o seu rosto. Símbolos de sorte e de proteção circularam lentamente à
sua volta. O Talismã da Chama Sagrada está ligado à Memória Astral, à Biblioteca do Céu, onde cada alma e cada acontecimento estão registrados. Não
somente o passado e o presente de cada pessoa estão nela escritos, como cada
pessoa pode nela encontrar as suas possibilidades futuras e os destinos
possíveis.
Ele tem o poder de curar feridas secretas e de programar o destino. Corta as conexões nefastas, transformando as energias negativas em positivas, o Azar em Sorte, o Mal em Bem. Gabriele
continuou falando no silêncio da noite. Ele acreditava no que dizia. Estava
convencido. Sem curiosidade diferenciada, embora o caso fosse mágico e
belamente narrado, decidi ir dormir. “Chegou o momento de uma virada no destino e passar
à ofensiva!”, foi a última frase dele que ouvi. Ao acordar no amanhecer chuvoso a barraca do casal tinha desaparecido. Provavelmente nunca mais
voltarei a ver os belos Gabriele e Ada, mas foi um encanto os dias e
noites passados com eles. E a flauta faz falta.
O sistema organizacional da
comunidade itinerante, nestes meses de gélido verão germânico, funciona através de colaboração
voluntária, gente disposta revezando-se na tenda da cozinha, servindo refeições, lavando
tachos, preparando fogueiras e ensinando o que sabe fazer melhor. Não se come
carne, não se bebe álcool. O haxixe é tolerado. Fumo tabaco Golden Virginia
e tomo café para combater o frio. Dezenas de circenses amadores animam a
festa pagã: acrobatas, palhaços, saltimbancos, malabaristas, dançarinos,
cuspidores de fogo, pernas-de-pau e contorcionistas. Na nervura dos troncos, na
terra, no voo, borboletas, abelhas, caracóis, formigas, besouros, aranhas, joaninhas e incontáveis insetos não identificados.
Pássaros inesperados. Flores-do-campo
de diversas cores e tamanhos. Girassóis, roseiras silvestres, cardos. Paisagem de beleza exata, um deleite para os olhos. A harmonia local deita
por terra ambições materiais, despertando ações solidárias. Justamente o
que mais faz falta neste milênio tribal de fanatismo tatuado, valores ultrapassados, epidemias
de depressão, corrupção e violência. Gozando o bem-estar, no doce sopro
da noite, submeto-me a presságios. Acima de tudo, ao ser tocado pela cumplicidade dos invisíveis, a esperança renasce. O que está para além da escuridão, da noite azulada absoluta?.
Evitando reflexões obscuras, presto homenagem a joia do pensamento dócil escrevendo versos.
01
Estou sentado
na mata com o caderno de apontamentos.
Anoitece sobre
as vigilantes árvores
e brilha o mistério enquanto contemplo e escrevo
À volta
derrama-se a escuridão de sombras e nostalgia.
Percebo a
partida e o regresso, a morte e a vida.
Dentro de mim
borbulha o mais puro sortilégio!
Quando alguém
vai, como eu, na aventura de viver
tudo é possível, paisagens tornam-se vigorosas
algo soterrado brota em estranha compulsão
algo libertado
e mitológico viaja no oculto
03
Creio no homem solitário,
ao mesmo tempo homem e anti-homem.
É complexo
acostumar-nos a nós mesmos.
É complexo desacostumar-nos de nós
mesmos.
As chamas da fogueira acentuam o paraíso.
Pedras, relva, folhas e troncos iluminados cintilam. De uma
fresta na copa das árvores, surgem estrelas. A existência inquestionável,
imutável. Guardarei na memória a dança das árvores ao
vento. Movo-me em sossego, na maior discrição. Tudo conhecido, tudo inteiramente
novo. Como um relâmpago rasgando a noite, comungo o sentimento de navegar ainda
mais longe nas águas do simbólico. Em mim, distante da imaturidade, descubro plenitude modelada. Relaxo, deitando a carne desnuda no chão de terra batida,
ao lado da fogueira, confiando no destino. O mais leve movimento faz-me perder
a razão e sonhar. Uma lição para não esquecer.
Alemanha, 2005
11 comentários:
Nahud, você vai lançar o livro ou vai ficar so no seu blog?
Antônio, já estive muitas vezes na Alemanha,e a região da Floresta Negra é magnífica.Teus escritos devem ser maravilhosos.Boa noite,amigo.
Puxa que lindo
Bela essa crônica
Lindo
Bela texto
Que Maravilha!
Grata surpresa, fico Feliz!
Que viagens maravilhosas você já realizou 😍
Amém !
Legal!
Boa notícia. Agora vou aguardar a publicação.
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