agosto 07, 2012

........................................................... FLORES de FUEGO




O que já passou não existe, dificultando a narrativa de emoções antigas. Algumas vezes a memória se enamora do artificial, do fake, inventando existências. Mas é sempre bom recordar. Hoje passei o dia lembrando o mês que passei em Cuba, em 2003. As recordações de Havana e Varadero continuam autênticas. O primeiro impacto foi assustador. Casarões da época da colônia hispânica em ruínas, chulos, muambeiros, degradação, ícones do comunismo. Como se a ilha fosse o cenário de uma batalha terrível.

Não adianta se refugiar num dos luxuosos hotéis canadenses ou espanhóis, planejando um roteiro de turista aprendiz. É preciso observar Cuba com compaixão. Em Havana, pasmo, enfrentei o sol de outubro, ouvindo notícias nos telejornais sobre a aproximação do Furacão Irene. Aturdido, bati perna pelas ruas sujas, deixando o hotel em Miramar, um bairro dos ricos antes da Revolução, nos tempos de Fulgêncio Baptista. No centro, o tumulto, num ritmo de improviso. Som de tambores e cânticos. Espanhóis, alemães, guias aborrecidos, ruas estreitas cobertas de artesanato popular, telas coloridíssimas e músicos afinados cantando salsas - percebi imediatamente que a música faz parte da vida do cubano.

Fotografei velhos carros norte-americanos - cadillacs, buicks ou bel-airs - e mulheres vestidas de branco, jogando búzios ou cartas, com charutos Gran Corona na boca. Insolente, perguntei a uma delas se podia fotografá-la. Respondeu, séria: “Un dólar,¡muchacho!”. Paguei, tirei fotos e atravessei a praça da catedral barroca, emocionando-me quando uma idosa, de mais de 80 anos, levantou os braços magros em prece e sorriu. Aproximei-me, recebendo um santinho com a frase “Jesús en vos confío”

Desviei-me de um gordo que vendia flores brancas, de uma charrete com um cavalo portando um chapéu com fitas vermelhas, de bicicletas rápidas pedaladas por rapazes bonitos. Na varanda de uma casarão habitado por inúmeras famílias, apreciei um Cristo de madeira adornado por flores minúsculas.

No hotel Ambos Mundos, onde Ernest Hemingway morou na década de 30, provei mojitos - bebida à base de rum, limão, hortelã e pimenta -, enquanto a pianista tocava um bolero de Nat King Cole. Através da vidraça, nativos de sorriso rasgado; o espetáculo de carros dos anos 40 e 50 ziguezagueando entre lentos animais; ônibus compridos e desconfortáveis cheios demais; prédios sórdidos e vistosos; putas jovens e sensuais - um museu vivo! Nada falta para o estrangeiro atônito: um mar azul-turquesa, uma história sórdida, um presente agonizante e aquele ar pouco convincente de felicidade.

Então, o céu explodiu em fogos de artifício, como flores em chamas, enquanto conversava com um cubano.  Ele me falou de como aprecia as telenovelas brasileiras, mostrando uma fotografia de Regina Duarte na parede do bar-restaurante La Bodeguita del Medio. No entanto, não é permitido conversar muito tempo com o povo, nem fotografar militares. Numa luxuosa casa de charutos, comprei Cohiba, acendendo um deles no El Floridita, aprendendo que fumar habanos é uma fonte de prazer e bem-estar, e sem deixar de pensar que podia estar sentado na mesma cadeira que um dia Ava Gardner ou Gary Cooper descansaram o traseiro. Tomei daiquiris conversando com o barman-chefe vaidoso de suas dezenas de broches na lapela.

Fugindo do turismo banal, lembrei-me de Paul Bowles dizendo “não sou turista, sou um viajante”. Assim também pensa o chileno Luis Sepúlveda, e penso eu. Os turistas são uma espécie de gafanhoto devorando tudo por onde passam. Feitos em série, inexpressivos, numa relação monótona com a vida. Não há espírito, não há fé. Prefiro estar no meio dos suburbanos, dos alternativos, dos santos, dos poetas, dos boêmios. Por fim, escaldado pelo calor e pela miséria, perguntei-me onde se esconde o desenvolvimento de Cuba? 

O suor me abraçava como monstro pegajoso. Ao anoitecer ouvi boleros clássicos no cabaré Dos Gardénias, depois bailei no Palácio de La Rumba. Amanhecendo, curei a ressaca ao lado de pescadores, com um Carpentier nas mãos, já que Cabrera Infante e Reinaldo Arenas são proibidos. De qualquer maneira, pretendo jamais voltar a Cuba.