julho 21, 2022

............................................................................. O ELOGIO da VIAGEM

paris, frança



“Solte suas amarras. Afaste-se do porto seguro. Agarre o vento em suas velas. Explore. Sonhe. Descubra.”
MARK TWAIN
(1835 – 1910. Florida, Missouri / EUA)
 
“Se você acha que a aventura é perigosa, experimente a rotina, é mortal.”
PAULO COELHO
(1947. Rio de Janeiro, RJ / Brasil)

Fotos:
ANTONIO NAHUD
 
 
Uma das melhores sensações da vida é a de chegar em uma cidade desconhecida e traduzir os seus contornos. A língua local, os costumes, os rostos típicos, a paisagem. Uma estrada desenhada por adivinhações, um vestígio dos sentimentos de descoberta que os meninos vivenciam e os adultos ignoram. Na idade madura, só o amor provoca essa novidade, esse desatino de ir sem saber para onde. Aventureiro, agarro-me insaciável ao desejo de viajar, descartando lugares onde meu coração não pulsa.
 
A viagem é uma porta gótica escancarada, uma lâmpada que arde na escuridão sem se apagar, um milagre como uma chuva de estrelas cadentes. É um par de asas que substitui os pés. Nos dias de tédio, de revolta contra a sabotagem da esquerda aloprada, de angústia provocada pela barbárie da solidão ou da limitação insuportável de dinheiro, conforto-me com recordações transcendentes de viagens. Geralmente esqueço os acontecimentos desagradáveis. Por exemplo, não há nada mais enfadonho do que lembrar problemas em alfândegas, a sujeira das ruas de Roma ou a péssima comida de Londres.
 
Viajar significa guardar no coração o sublime do visto e vivido, aprender com o incógnito ou somente fugir da rotina cotidiana? Lembro com embevecimento do canto do Alcorão numa madrugada marroquina, o inverno nos Pirineus espanhóis, a casa esbelta de George Orwell, os antros delirantes do Bairro Alto lisboeta, a névoa do Lago Ness, noites lúdicas em Sintra, um encontro místico no parque El Retiro em Madri, certas identificações com museus parisienses, um barco em alto mar iluminado por lua cheia em Boipeba, o deslumbramento da Floresta Negra na Alemanha, os bosques austríacos montanhosos, daiquiris em Cuba, fontes italianas, livrarias argentinas, igrejas barrocas mineiras etc.

fez, marrocos
Deixar de viajar é um suicídio lento. Viajar rejuvenesce a alma, aclara o pensamento. Nos autoriza a enxergarmos diferente, sem as contrariedades e os naufrágios do dia a dia. Nos deixa livre para sermos poéticos e até para procurar o que possivelmente não existe. É um santo remédio contra o provincianismo, a monotonia ou a maledicência de quem não tem mais o que fazer. Com o pé na estrada, escritores e poetas construíram sua obra: Rilke, Michaux, Rimbaud, Ginsberg, Whitman, Gide, Bowles etc. Sempre soube que no dia em que eu não pudesse mais viajar, nem a viagem interior, a do leitor de livros, o mundo teria para mim a opressão de uma jaula.
 
Cada viajante tem a sua sorte. Como disse Paul Bowles e Bruce Chatwin, virtuosos escritores-viajantes, “o importante é ser viajante, nunca turista”. O turismo vive de vaidades, destruindo simultaneamente as cidades litorâneas do Nordeste brasileiro, assim como as selvas da Costa Rica. Compare, por exemplo, Pipa ou Porto Seguro, o que foram um dia e o que são hoje. Uma tragédia! Tive a sorte de ter elegido uma profissão que me permitiu viajar. Aprecio explorar cidades além do convencional. Nunca deixo de ir ao cinema ou ao teatro local, mesmo que não entenda o idioma.
 
As igrejas e os templos fora da rota turística são indispensáveis, assim como os mercados populares, zonas sórdidas, cemitérios, bares frequentados por fracassados, mosteiros, castelos, bosques e rios. Não se descobre segredos em um mundo explorado. Visitar a Torre Eiffell ou o Corcovado é redundância. Também é inútil acumular monumentos em poucas horas, gastar fotografias, ouvir lengalenga de guias. Bom é passear sem destino, parar, observar. É preciso viajar para deixar a cabeça girar e exercitar o cérebro. Primeiro elegendo um destino como se elege um amante. Haverá que pesquisar, observar, intuir, arriscar.
 
Conheço gente que leva na bagagem seus vícios burgueses. Investe em compras fantásticas, discotecas enlouquecidas, hotéis de luxo. Os cruzados da Idade Média viajavam para salvar a alma e viver aventuras. Os turistas obcecados pelo consumo apenas disfarçam o vazio de suas existências. Viajar é pedir pouco, apostar no inesperado, compreender que o movimento cura a melancolia. Como dizia Robert Louis Stevenson, “quando viajo peço somente o céu sob meu corpo e um caminho para os meus pés”.

antonio nahud em tânger, marrocos
Viajei inúmeras vezes com o dinheiro contado. Chegava na cidade estrangeira e fazia serviços simplórios em troca de alimentação, hospedagem ou alguns trocados. Cuidei de jardins, carreguei malas em pensões e albergues, fui ajudante de cozinha, colhi laranjas e uvas, trabalhei em tavernas, ajudei a carregar mesas e cadeiras para shows etc. Valia a pena. Nunca ficava mais de uma semana e nas horas vagas conhecia o lugar. O meu trabalho mais estranho aconteceu no Reino Unido, num inverno rigoroso, numa granja onde eu passava o dia depenando dezenas de perus. Era uma Torre de Babel. Ao meu lado, croatas, chineses, marroquinos e italianos. Ninguém entendia ninguém. Com o bom dinheiro que recebi, passei quinze dias viajando pela Irlanda, País de Gales e Escócia.
 
Pela primeira vez em Londres, hospedei-me no apartamento de um amigo de infância, um escultor, na agradável Wimbledon. Ele preparava jantares impecáveis, dava dicas das melhores galerias e me apresentou aos debates na BBC da inteligente Germaine Greer. Foi válido, mas não era bem o que eu queria. Mudei-me para um prédio vitoriano invadido por jovens, sem energia elétrica, aquecimento ou água canalizada, num turbulento bairro de negros e imigrantes: Elephant and Castle. Do meu quarto no último andar, iluminado por velas em candelabros, escrevi poemas e organizei reuniões festivas. Uma experiência enriquecedora, e eu somente o abandonei quando neo-nazistas ameaçaram atear fogo no local. Dias antes haviam queimado uma família de hindus.
 
Perigos existem, mas o êxito de uma viagem depende principalmente do aprendizado e da entrega apaixonada, e nada disso se encontra em grupos turísticos, hotéis requintados ou numa loja de souvenires. Sempre deixei de lado mordomias e apostei no misterioso. Viajava sem problemas. Com a experiência de anos como viajante, a vida floresceu, completando a peça que faltava no quebra-cabeças interior. Entre outras coisas, porque a memória - intelectual, espiritual, erótica - tornou-me um cidadão do mundo.
 
Atualmente não tenho reservas financeiras para viajar nem juventude para me arriscar. Vivo no limite. Isso me desgasta, me envelhece. Viajar é fundamental para a felicidade. A última viagem que fiz foi em 2017. Estive na Espanha e Suíça. Foi uma experiência milagrosa, embora na época eu estivesse possuído por uma sonífera depressão pós-morte de Morvan. Lembro especialmente de Sevilha. Uma bela cidade que se caracteriza por seus bairros antigos preservados, suas cores, suas laranjeiras carregadas de frutas, suas ruas pitorescas, pelo céu azul e pela luz peculiar. Some-se a isso sua história e personagens literários.

catedral de notre dame, paris
Quando a conheci pela primeira vez em 2004, Sevilha já possuía fortes conotações culturais para mim. Desde sempre, era o local que eu associava a Carmen, a Velázquez - que nasceu na cidade –, à figura de Figaro e à estória de Don Juan, que inspirou Molière e Mozart. Ao passar ao longo do muro da antiga Real Fábrica de Tabacos, atualmente sede da Universidade, pensava que é lá onde trabalha a fictícia sedutora Carmen e cantarolava alguma ária da ópera de Bizet.
 
Cervantes menciona Sevilha frequentemente em sua obra. Caminhando pela cidade, vi duas placas, ambas de azulejos, comemorando o escritor. Em 1999, em entrevista publicada pela revista “Sibila”, o poeta João Cabral de Melo Neto, que morou em Sevilha mais de uma vez e dedicou a ela os poemas recolhidos no livro “Sevilha Andando”, perguntado sobre que imagem lhe vinha à cabeça quando pensava na cidade, respondeu: “Acho que é a calle Sierpes, a rua principal. Chama-se Sierpes por isso, porque ela não é reta”. Haverá forma mais bonita de celebrar uma cidade do que o famoso poema dele “Sevilhizar o Mundo”?
 
Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
 
infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
 
Ainda em Sevilha, caminhando ao acaso, encontrei uma placa de azulejos colocada em homenagem ao poeta Antonio Machado, nascido na propriedade em 1875, pois seu pai era advogado ou administrador dos Duques de Alba, que alugavam casas no recinto de seu palácio. Ver essa homenagem a Machado foi comovente para mim porque, na adolescência, em Itabuna, minha professora de literatura era admiradora de sua poesia e muitas de suas aulas eram passadas dissecando obras suas. Anos depois, morando em Barcelona, visitei seu túmulo em Collioure, na França.

antonio nahud na notre dame, paris
O grande Antonio Machado, nascido no Palacio de las Dueñas e que depois de se mudar para Madri, em 1883, aos oito anos de idade, nunca mais moraria em Sevilha, lembraria-se para sempre, como mostra sua poesia, dos “naranjos encendidos”, do “limonero lánguido”, do “encanto de la fuente limpia”, da “tarde alegre y clara”. Seus versos fazem referência a Sevilha, fonte para ele de paz, beleza, harmonia. Mesmo estrangeiro e de passagem, senti o mesmo que o poeta.
 
Conheço bem o Brasil. Gostaria de revisitar certos países e algumas cidades brasileiras. Sem grupos turísticos, sem parceiros, eu e a vontade de contemplar o belo. Talvez não seja possível. Talvez as oportunidades tenham passado. Mas não há queixas. Com poucos recursos, vi e aprendi muito mais do que muitas pessoas afortunadas. E a vida segue. A morte, quem sabe, pode ser uma grata surpresa. Talvez com lugares formosos para conhecer e guardar eternamente no espírito, sem a necessidade de dinheiro no bolso ou a preocupação capenga de pagar contas ou não morrer de fome. Ah, aqui encerro esse êxtase viajante, garantindo que viajar me tornou um homem modesto. Vi o lugar minúsculo que ocupo no mundo. Portanto, fica a recomendação: viva, viaje, aventure-se, abençoe e não se arrependa!

ÁLBUM de FOTOGRAFIAS

Barcelona (Espanha), Sintra e Lisboa (Portugal), Granada (Espanha). Gruyères e Genebra (Suíça), Aix-en-Provence e Paris (França), Tânger (Marrocos), Veneza (Itália) e Salvador (Bahia).