dezembro 24, 2022

...................................................................... MAIS uma VEZ ADEUS

 

“Que vida teria eu se apontasse uma única paisagem como favorita, quando o mundo é farto e múltiplo.”
NÉLIDA PIÑON
“Uma Furtiva Lágrima” (2019)
 
Ilustrações: MARC CHAGALL
(1887 – 1985. Iozna / Bielorrússia)
 
 
Morre aos 85 anos, em Lisboa, a escritora NÉLIDA PIÑON (1937 - 2022. Rio de Janeiro / RJ). Estive com ela em duas ocasiões. A primeira em São Paulo, em 1990, apresentada pelo editor Pedro Paulo de Senna Madureira. Conversamos sobre a literatura baiana. Foi bacana bater um papo com ela. Sua comparação de Jorge Amado com uma sinfonia de Villa-Lobos me impressionou, boa sacada. Voltamos a nos encontrar em Paris, na Feira do Livro, em 1999. Caminhamos juntos. É impressionante como a literatura estava presente em todos os detalhes da sua vida. Uma frase que me disse nunca esqueço: “A gente é o que a gente sabe, e é perigoso descobrir isso tarde demais.”. Por fim, despedi-me dela com um adeus carinhoso.
 
Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, teve obras traduzidas em muitos países. Formada em jornalismo, a estreia na literatura foi com o romance “Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo”, em 1961, que tem como temas o pecado, o perdão e Deus. Desde então, sua literatura se fez em várias direções: conto, novela, crônica, ensaio. Da vasta obra, destacam-se “A Casa da Paixão” (1972), “A República dos Sonhos” (1984) e “A Doce Canção de Caetana” (1987). Inúmeras vezes premiada, recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias. Li apenas dois livros seus. Confesso que sua escrita não me seduz. Tem pretensão demais e pouca vida. Deixo aqui um triste e segundo adeus. Descanse em paz, Nélida.

I LOVE MY HUSBAND
 
conto de NÉLIDA PIÑON
publicado em “O Calor das Coisas” (1980)
 
Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
 
Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqüilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.
 
Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis.
 
A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento.

antonio nahud e nélida piñon em paris, 1999
O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convívio comum.
 
Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqüilo, gerisse o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.
 
Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A idéia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?
 
Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me ter inteira?
 
De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo.
 
Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?
 
Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças.
 
O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranqüilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te?
 
Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte.
 
Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia contabilizar.
 
Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.
 
Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.
 
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude.
 
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher.
 
Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes.
 
Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma família.
 
Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.
 
Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos, multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos.
 
Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.
 
Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu arrebato.
 
Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada.
 
Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho.
 
E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara no jornal, no mundo só nós existimos.
 
Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.


Os LIVROS de NÉLIDA PIÑON que LI
 
SALA de ARMAS 
(1973)

Mescla a realidade e o sonho. Nessa atmosfera onírica, flerta com o realismo fantástico, passando por diversos aspectos da vida humana, de maneira ao mesmo tempo grotesca e refinada.

A REPÚBLICA dos SONHOS 
(1984)

No romance, a autora busca em suas raízes uma saga sobre os imigrantes que aportaram no Brasil na virada do século. A vida de camponês que deixa a Galícia para embarcar para o Rio de Janeiro, descreve uma trajetória de êxitos e fracassos que frequentemente põem à prova os ideais do personagem.


novembro 30, 2022

.......................... DEZ VEZES RAYMOND CHANDLER e um POEMA

 


“Há pessoas que matam por ódio, por medo, por ganância. Existem criminosos astuciosos que planeiam os seus crimes julgando livrar-se das consequências. E há criminosos dominados por tal fúria que não fazem planos. Há os que estão apaixonados pela morte, para quem o assassínio é uma espécie de suicídio.”
O LONGO ADEUS
 
Ilustrações:
ROCKWELL KENT
(1882 – 1971. Tarrytown, Nova York / EUA)
 
 
Ele reinventou a literatura policial, contribuindo para que deixasse de ser olhada como um gênero menor. Teve uma infância conturbada com a separação dos pais, mudando-se aos sete anos de idade para a Irlanda e depois Londres, com a mãe, onde foi free-lancer no “The Westminster Gazette” e no “The Spectator”. Regressou ao seu país natal aos 24 anos, estabelecendo-se na Califórnia.
 
Depois de ser militar, contabilista, revisor, jornalista, detetive particular e funcionário público, RAYMOND CHANDLER (1988 – 1959. Chicago, Illinois / EUA) tornou-se executivo de uma poderosa companhia petrolífera, a Dabney Oil. Após uma carreira brilhante de 13 anos, promovido a vice-presidente, terminou demitido em plena Grande Depressão por conta do alcoolismo.
 
Cada um dos seus livros carrega a tensão que cercou sua vida. Admirado por W.H. Auden, Evelyn Waugh e Ian Fleming, entre outros, é prestigiado pela crítica. Confira abaixo dez curiosidades sobre o escritor.


01
“Não há nada como ficarmos sem dinheiro para vermos quem são os nossos amigos”, desabafou, ao ficar desempregado. Como não tinha nenhum, o seu plano foi tornar-se escritor. Aos 45 anos começou a vender seus contos policiais para a célebre revista pulp Black Mask Magazine”, iniciando com “Os Chantagistas não Matam / Blackmailers Don’t Shoot” (1933), “Smart-Aleck Kill” (1934) e “Finger Man” (1934).
 
As revistas pulp, impressas em papel barato, eram muito populares na época. Despedido, agora sóbrio e com tempo livre, RAYMOND CHANDLER começou a ler uma delas e decidiu que era uma boa forma de receber algum. Passou cinco meses escrevendo uma novela que vendeu por 180 dólares. “O Sono Eterno / The Big Sleep”, seu primeiro e extraordinário romance, surgiria em 1939.
 
02
O detetive particular Philip Marlowe é o herói dos seus romances. Quarentão, alto, magro, irônico e de poucas palavras, ele deu as caras em “O Sono Eterno”. Com estilo único, aguenta porrada, toda a sorte de enrascadas, mas, no fundo, é um sentimental enfrentando a dura realidade das metrópoles.

Continua a ser a maior criação do universo policial literário, suplantando companheiros de profissão como Holmes, Maigret ou Poirot. Com Marlowe, o escritor deu-nos um novo herói norte-americano: cerebral, honesto, sarcástico, rebelde e com um inabalável sentido de honra. Ele é o grande detetive da literatura.
 

03
Para o cinema, ele escreveu o roteiro do clássico “Pacto de Sangue / Double Indemnity” (1944), de Billy Wilder, adaptado do romance de James M. Cain. Também roteirizou “A Dália Azul / The Blue Dahlia” (1946). Ambos foram indicados ao Oscar de Melhor Roteiro. Foi co-autor de “Pacto Sinistro / Strangers on a Train” (1951), realizado por Alfred Hitchcock e baseado em obra de Patricia Highsmith, e de mais dois filmes.
 
04
Philip Marlowe é um solitário. Um herói honesto, por vezes, sentimental. Símbolo do detetive durão, foi vivido no cinema por Dick Powell, Humphrey Bogart, Robert Montgomery, James Garner, Elliot Gould e Robert Mitchum. Com excepção de “Para Sempre ou Nunca Mais / Playback” (1958), todos os romances do escritor tiveram adaptação cinematográfica, alguns deles mais de uma vez.
 
05
Sucesso de crítica e de vendas, escreveu oito romances e uma infinidade de contos. Entre suas obras estão “O Sono Eterno”, “Adeus, Minha Querida / Farewell, My Lovely” (1940), A Dama do Lago / The Lady in the Lake” (1943) e “O Longo Adeus / The Long Goodbye” (1954). Deixou inacabada a novela “Amor e Morte em Poodle Springs / Poodle Springs” (1959), que foi concluída por Robert Parker e publicada em 1989. Seus contos foram reunidos nos volumes “A Simples Arte de Matar” e “Assassino na Chuva”.

06
O magnífico “O Sono Eterno”, sua obra prima, retrata um mundo sórdido, povoado de pornógrafos, um assassino bissexual, uma ninfomaníaca psicótica e toxicodependente, diversos bêbados, bares fumarentos, loiras oxigenadas, múltiplos adultérios e cadáveres descritos detalhadamente. Além de assassinatos, claro, chantagens, policiais corruptos e mulheres fatais sem escrúpulos.
 
07
Virgem até aos 32 anos, ele conhecia muito da vida, menos as mulheres. A violência do casamento dos pais o atirou para a castidade. Engenheiro civil, o pai, talvez por ser bêbado, espancava a mãe, cobrindo-a de nódoas e dores. Sem ninguém, RAYMOND CHANDLER tinha um salário de três mil dólares por mês e sofria de alcoolismo que lhe provocava desmaios e amnésia.
 
08
Aos 31 anos, apaixonou-se pela melhor amiga da mãe. Ela tinha 49 e um marido. Casaram assim que a mãe do escritor, que era contra o relacionamento, morreu. Cissy Pascal era uma antiga modelo e pianista clássica. Costumava limpar a casa toda nua. Foi a sua musa, já que ele não escreveu nada antes de a conhecer e pouco escreveu depois de ela ter falecido.
 
09
Após perder a esposa, em 1954, entrou em profunda depressão, recaiu no alcoolismo e tentou o suicídio. Viria a morrer, quatro anos depois, em 1959, aos 70 anos, em San Diego, nos Estados Unidos, deixando expresso o desejo de ser cremado e colocado junto às cinzas da sua amada.
 
10
Em 1994, a Praça Raymond Chandler, em Los Angeles, foi designada monumento histórico-cultural. Situa-se na esquina das avenidas Hollywood e Cahuenga, o local exato do escritório de Philip Marlowe. A Los Angeles que RAYMOND CHANDLER descreveu é uma paisagem moralmente bárbara, mas bela – palmeiras a contraluz, a beleza das manhãs e o ambiente enigmático das noites. Terra de atores de segunda categoria, produtores fracassados, gângsteres, prostitutas, tiras corruptos, atrizes decadentes e figurões em busca de oportunidade para ganhar um bom dinheiro, seja limpo ou não.
 

POEMA PARA CISSY
 
RAYMOND CHANDLER
 
Há um momento após a morte
em que o rosto se torna belo
e os suaves olhos fatigados se fecham;
em que a dor acabou
e a antiga, antiga inocência do amor
gentilmente retorna e fica por perto
apenas por mais um instante.
 
Há um momento após a morte (que sequer é um momento)
em que as coloridas roupas penduradas no armário perfumado
e o sonho perdido fenecem lentamente;
em que os vidros e o copo de prata e o espelho vazio
e os três compridos fios de cabelo na escova
e o lenço dobrado e a cama refeita
com seus gordos travesseiros (onde nenhuma cabeça
se pousará) é tudo que restou de um grande sonho selvagem.
 
Mas existem sempre as cartas.
Eu as seguro nas mãos, amarradas numa fita verde,
com firme pureza entre os suaves e fortes dedos do amor.
As cartas não morrerão, esperando pelo estranho que virá lê-las.
Virá lentamente, emergindo da névoa do tempo e da mudança.
Virá lentamente, desafiador, pelo correr dos anos
cortará a fita e as espalhará a sua volta
e cuidadosamente as lerá página por página.
 
E a antiga inocência do amor voltará
Virá lentamente, emergindo da névoa do tempo e da mudança,
suave como uma borboleta por uma janela aberta no verão
só por mais um momento, em silêncio, para estar perto,
mas o estranho nunca saberá. O sonho acabou.
O estranho sou eu.
 
Tradução de Newton Goldman
 

FRAGMENTOS
 
“Sou detetive particular há já bastante tempo. Sou solitário, solteiro, quarentão e pobre. Já estive preso mais do que uma vez e não trato casos de divórcio. Gosto de beber, de mulheres, de xadrez e de mais umas coisas. Os tiras não gostam muito de mim, mas conheço alguns com quem me dou bastante bem. Se algum dia derem cabo de mim num beco escuro, como pode acontecer a qualquer um com a minha profissão, ninguém ficará chorando de pena”.
 
“O que importa onde descansamos depois de morrermos? Que diferença pode haver entre um reservatório imundo e uma torre de mármore, no topo de uma alta colina? Estamos mortos, dormimos o grande sono e essas preocupações não nos incomodam. Petróleo e água são o mesmo que vento e ar, para nós. Dormimos o sono eterno, sem nos importarmos com a perversidade que nos matou nem onde caímos.