março 10, 2016

......... O ENGENHOSO FIDALGO D. QUIXOTE de LA MANCHA


Ilustrações: 
GUSTAVE DORÈ, OCTAVIO OCAMPO
 e SALVADOR DALÍ

publicado na revista beco das palavras
Em janeiro de 1605 apareceu a primeira edição de EL INGENIOSO HIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA, idealizado por um maduro e sofrido espanhol. De imediato se transformou num êxito de vendas em vários países. O autor, MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA (1547-1616), sem educação formal, dramaturgo sem fortuna, pouco antes trabalhava como cobrador de impostos nas aldeias, montado num asno, e ao mesmo tempo escrevia poemas, novelas e peças teatrais. A falência do banco de Simón Freire de Lima, onde depositadora parte do arrecadado, conduziu-o a uma série de infortúnios que abalou a sua reputação e o levou ao confinamento presidiário.

Não era novato em prisões, durante cinco anos foi prisioneiro de corsários e um dos dois mil escravos do harém masculino do rei da Argélia. Sem imaginar a significância que a sua obra adquiriria na literatura universal, CERVANTES escreveu a primeira parte das andanças de Alonso Quijano, um fidalgo de uns 50 anos que perdeu o juízo de tanto ler novelas de cavalaria (muitos populares na época), numa prisão de Sevilha. Meses antes de morrer, famoso, finalizou a saga do “covarde-heroico”, como o escritor Arturo Pérez-Reverte define DOM QUIXOTE.

miguel de cervantes
Não é uma obra fácil de classificar. DOM QUIXOTE tem diversos traços barrocos – como a preocupação com o ponto de vista, o rebusco deliberadamente excessivo de linguagem e o tropo recorrente do engano, dos erros que ameaçam nossas tentativas de ver e, especialmente, interpretar o mundo. Para Michel Foucault, o Quixote dramatiza a própria transição entre a episteme renascentista e a clássica. O foco desta dramatização é o próprio Quixote, um personagem que vê o mundo inteiro através de uma lente de similitude – tudo se reduz e retorna à realidade dos romances de cavalaria.

UMA VIDA SEM SOSSÊGO

A existência errante, numa história de privações, levou CERVANTES à batalha de Lepanto, planejada para dar um golpe mortal nos turcos e onde o escritor terminou por inutilizar a mão esquerda para sempre. Não se sabe o dia exato do seu nascimento, nem a cidade onde nasceu (sabe-se da província, Alcalá de Henares), tampouco onde foi enterrado. Nos últimos anos de vida escreveu sem parar, em verso e prosa, cada vez mais original e vitalista, com popularidade crescente: manuais de crítica literária, dramaturgia cômica, novelas. Além de excelentes prólogos. É a época de “Novelas Exemplares” (1613), “El Viaje al Parnaso” (1614), “Ocho Comedias y Ocho Estremeces Nuevos” (1615), “Los Trabajos de Persiles” (1616), “Segismunda” (1616).

Nascido numa família mergulhada na penúria, MIGUEL DE CERVANTES peregrinou em várias cidades em busca de melhores condições de vida, influenciando sua produção literária. Aos 21 anos, em Madri, estudou retórica e arte poética por um breve tempo, fez versos e ensinou letras para crianças. Ao participar de um duelo, ferindo o oponente, procurou evitar a prisão e o corte da mão direita, severa pena estabelecida pela justiça real, fugindo para Roma. Servindo, cerca de um ano, ao cardeal Giulio Acquaviva, visitou Milão, Florença, Palermo, Veneza, Parma, Ferrara.

A Itália renascentista em vigorosa abolição artística, destacando escritores e pintores, influenciou a criação do escritor. Alistando-se como voluntário no exército, na expedição Liga Santa, novamente é ferido numa sanguinária batalha de afirmação imperial que dizem ter vitimado 30 mil soldados numa só manhã. Passou seis meses se recuperando, conhecendo a italiana Silena, em Nápoles, futura mãe do seu filho Promontório. Nada mais se sabe desse relacionamento. O silencio de CERVANTES em relação à sua vida afetiva é quase total, para desespero dos biógrafos.

PRISÕES e COBRANÇAS

Saudoso da Espanha, retorna. Na travessia marítima, seu barco é capturado pelos turcos, tornando-se prisioneiro durante cinco anos com infrutíferas tentativas de fuga. A duras penas, a família paga o resgate de 500 escudos de ouro, um alto preço, e CERVANTES volta a Madri. Nos meses seguintes, tenta trabalho em Lisboa e nas Índias, mas nada consegue. Em 1583, conhecido como homem de letras, autor de “La Galatea” e obras teatrais aplaudidas (“Los Tratos de Argel”, “La Destrucción de Numancia” etc.), engravida Ana de Villafranca, uma mulher casada. Estigmatizado, abandona a corte moralista.

Em Esquivias, num pequeno povoado, casa-se com uma garota de menos de 20 anos, Catalina de Salazar y Palacios, de certa nobreza de sangue. Desta união, nascem vários filhos. Atormentado psicologicamente, deixa a família para trabalhar na Andaluzia como coletor de azeite e cereal para a Armada Real. Durante muitos anos ocupa esse ofício ingrato, levando-o a conflitos constantes com a igreja e os camponeses. O seu próximo trabalho, cobrando tributos na província de Granada, não o livra de uma pobreza cada vez mais agravada. Como disse, termina na prisão e, assim, inicia a escrita da obra-prima DOM QUIXOTE, finalizada em 1615 com 126 capítulos e quase mil páginas, dezoito anos passados.

CANTO À LIBERDADE

Havia uma grande rivalidade entre CERVANTES e Lope de Vega. Foram amigos por certo tempo, antes que a vaidade e a inveja os separassem. Os eruditos consideram, inclusive, que o prólogo de DOM QUIXOTE, carregado de sonetos, goza de Lope seu famoso esnobismo. O certo é que Cervantes inventou o romance moderno, enchendo páginas com aventuras que divertem e fazem pensar. Ítalo Calvino, o sensacional escritor italiano, disse que o episódio do protagonista-título lutando contra moinhos de vento é tão memorável que é mencionado mesmo por quem não leu o livro.


O peruano Mario Vargas Llosa, em “Uma Novela para o Século XXI”, enxerga a ficção como tema central da obra de Cervantes, pois o personagem que marcha em honra da amada Dulcinéia perde a razão por fantasias literárias. Lembra, também, que é um canto à liberdade, como confirma Quixote ao dizer “La libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; com ella no pueden igualarse los tesoros que incierra la tierra ni el mar encubre.”

DOM QUIXOTE: MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS

CERVANTES é a alma da Espanha. William Faulkner lia DOM QUIXOTE a cada ano. Especialistas em literatura aconselham que é preciso lê-lo pelo menos três vezes antes de morrer. Obra magistral, considerada a mais perfeita em língua espanhola e um dos trabalhos literários mais aclamados de todos os tempos, relata a trajetória errante de um cavaleiro e seu fiel escudeiro, Sancho Panza. O acerto ao criar um personagem cuja demência consiste em desfazer ofensas e amparar debilitados, implica numa ânsia eterna e desesperada por justiça. Sancho, o gordo da dupla, homenageia as pessoas simples, muitas vezes mais sábias e sensatas que os próprios patrões.

o filme de g. w. pabst
Juntos, com maior ou menor proveito, Dom Quixote, montado no cavalo Rocinante, e Sancho cruzaram os séculos, através da paisagem ibérica, em especial a região de Castilha e La Mancha, chegando a Zaragoza e Barcelona, vendo o mar pela primeira vez. Das páginas do livro clássico passaram para espetáculos teatrais, dança, circo, ilustrações, pinturas, quadrinhos, animação e cinema. Nem sempre tiveram sorte. O cinema, por exemplo, nunca fez uma versão digna do livro. Em 1933, Georg Wilhelm Pabst rodou sua adaptação protagonizada por Feodor Chaliapin Sr., uma potencia do teatro russo. Outros célebres atores repetiram o feito: Peter O’Toole, Fernando Fernán-Gómez, Fernando Rey, John Lithgow, Jean Rochefort.

A bufonesca disparidade da dupla foi melhor recompensada nas artes plásticas. Eles foram uma tentação inspiradora para desenhistas, escultores e pintores, desde a publicação até os dias de hoje. A fecundidade desta aliança foi captada por monstros sagrados como Goya, Delacroix, Corot, Gustae Doré, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Daumier ou Pollock, entre dezenas de outros.

Em 2002, 100 conceituados escritores de 54 países escolheram DOM QUIXOTE como o melhor livro de todos os tempos. Segundo a Unesco, depois da Bíblia, é a obra mais lida mundialmente. Uma assombrosa unanimidade une milhares de leitores. Como poucos livros, ele nunca deixou de ser lido, citado, admirado, respeitado e interpretado de diversas formas, renascendo ano após ano no imenso mar que são os sentimentos, curiosidades, vontades e frustrações humanas presentes no seu enredo.
                                                                   

Publicado no jornal A Tarde
Cultural