abril 26, 2016

........ O QUE NÃO É, MAS FINGE SER - O DIABO na LITERATURA




“Tudo é muito mais misterioso do que se julga, e tudo isso aqui -
Deus, o universo e eu (Satã) - é apenas um recanto mentiroso
da verdade inatingível.”

(Fernando Pessoa, “A Hora do Diabo”)


Ilustrações:
GUSTAVE DORÈ, LUCA SIGNORELLI 
e WILLIAM BLAKE 


Em Guimarães Rosa transparece todo o misticismo do sertão, uma religiosidade quase medieval, baseada apenas nos dois extremos e marcada pelo medo, pelo pavor, em que há até mesmo a preocupação de não invocar o Demo, para que ele não forme forma, daí o Diabo ser tratado na linguagem rosiana por o que não existe ou o que não é, mas finge ser e expressões semelhantes. Relendo o mestre Rosa, nasceu a vontade de invocar o Rabudo na história da literatura, apoiando-me nas palavras sábias de William Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa filosofia.”. Afinal, ser capaz de considerar afirmações metafísicas denota sabedoria, cautela e intuição. Eu, acredito e não acredito no Senhor do Mal.

O protagonista deste ensaio se chama, em hebraico, Satã, isto é, o Adversário, o Inimigo. Em grego, o Diabo - o Acusador, o Caluniador. Ele é aquele que caiu do céu, como um raio, citado em “Lucas 10:18”. Arrastou consigo uma legião de anjos celestes, descrito em “Apocalipse 20:2”. As variadas denominações do Anjo Fulminante no meio popular revelam sua natureza dissimulada e camuflada. Conhecido como Semi-hazad, Azazel, Belial, Asmodeu (hebreus); o Eblis (muçulmano); The Old Man (Escócia); o Macaco de Deus (Idade Média); o Maligno, o Maldito, o Inimigo, o Tentador, o Maldito, o Pai da Mentira, o Príncipe das Trevas, o Cão, o Arrenegado, o Beiçudo, o Azucrim, o Porco, o Sujo, o Tição, o Coxo, o Anhangá, o Rabudo, como é chamado no Brasil.

Tão antigo quanto a própria literatura, Satã é um velho personagem literário, e muitos foram aqueles que registraram os passos claudicantes do Anjo Caído. Pode-se mesmo dizer que é nos tortuosos recônditos da mente humana que Lúcifer (do latim, “o portador da luz”) encontra refúgio após sua mítica expulsão das esferas celestiais. E, ao fazer do imaginário dos homens seu pandemônio, passa a inquietá-los com sua enigmática figura, inflamando-lhes o intelecto e, por conseguinte, tornando-se o cerne de discussões travadas não somente em âmbito religioso, mas também filosófico, literário e artístico.

Muitos não partilham da credulidade acerca da existência, poderes e possibilidades do Maligno, conhecido como o primeiro rebelde do cosmos - seguido por Eva, a segunda rebelde, e por Caim, o terceiro. Como antagonista de Deus, foi e continua sendo um expressivo personagem literário, cinematográfico, musical, teatral etc. Talvez seja sua maior estratégia, converter-se em ficção e nos convencer de que não existe, e assim existir eternamente, como afirmou Charles Baudelaire: “O melhor truque do Diabo é nos persuadir que ele não existe”. Sobre o tema espinhoso, o poeta britânico C.S. Lewis, definiu lucidamente: “Há dois erros idênticos e opostos nos quais nossa espécie pode cair acerca dos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O outro e nutrir um interesse excessivo e doentio neles. Os próprios diabos ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros e saúdam o materialista ou o fanático com o mesmo deleite.”.


Quando era muito jovem, antes dos vinte anos, escrevi vários contos com a participação especial do Coisa Ruim, entre eles “Fúria”, “Noites de Ninguém”, “Disse-me o Demônio”, “O Demônio Acossado” e “A Mão do Diabo Está Sobre Mim”. Dois deles se perderam. Com o tempo, descobri que o Maldito pode ser encontrado em centenas de volumes. Sua epopeia – ou odisseia - diabólica foi inúmeras vezes revisitada na literatura. Como é bem típico de escritores: creio, logo duvido; não creio, logo questiono. A grandeza tétrica e a tristeza atroz do Diabo foram lembradas em divinos poemas, tragédias vigorosas, romances requintados e peças de teatro de renome. 

O jesuíta Martins Terra, em sua obra “Existe o Diabo? Respondem os Teólogos” (1975), esclarece que a existência do Rabudo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé.“Se você não acredita em Deus, você é ateu, mas se não acredita no Diabo é igualmente ateu, já que a crença nele é um dogma de fé. Portanto, tínhamos os sem–Deus e agora temos o sem-Diabo. Não é sem razão que Jorge Luis Borges considerava a teologia como um gênero similar ao gênero fantástico”, opina a escritora brasileira Salma Ferraz.

No século III, o númida Lucius Caecilius Firmianus, conhecido como Lactantius, na obra “Divinae Institutiones” (c. 311), afirmou que Lúcifer teria sido nada menos, nada mais que o irmão do Logos, do Verbo, isto é da Segunda Pessoa da Trindade. O Inferno, a primeira parte da Divina Comédia (1321) de Dante Alighieri, sendo as outras duas o Purgatório e o Paraíso, é descrito com nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra. Dividido em trinta e quatro cantos, a viagem de Dante é uma alegoria através do que é essencialmente o conceito medieval de inferno, guiada pelo poeta romano Virgílio. Os mais variados pintores de todos os tempos reproduziam visualmente esta obra de viés épico e teológico, inclusive Sandro Boticelli, Gustave Dorè e Salvador Dalí. 

Em “Belfagor, o Arquidiabo que se Casou” (1549), a prosa envolvente de Nicolau Maquiavel nos conta com humor as desventuras de um Diabo que é mandado à terra para, como humano, verificar o que é o matrimônio. Certa vez, o autor declarou que ao morrer preferia ir parar no inferno, onde poderia se entreter com gente culta e engenhosa, a subir ao temeroso reino dos beatos. Christopher Marlowe e William Shakespeare usaram o Tentador como base para a representação estereotipada dos judeus em “A História Trágica do Doutor Fausto” (1604) e “O Mercador de Veneza” (1597) e dos nativos do Novo Mundo em “A Tempestade” (1611). O espanhol Calderón de la Barca colocou o Tinhoso no seu “Mágico Prodigioso” (1637).


No fim do século XVIII, a reação ao pensamento artístico neoclássico deu forma ao romance gótico fazendo do Diabo um sedutor maléfico. Na França, Jacques Cazotte publicou “O Diabo Apaixonado” (1772) enquanto que, na Inglaterra, M. G. Lewis lançou seu “The Monk” (1796). O romântico Friedrich Schiller fez apologia ao Senhor do Mal em “Bandoleiros” (1781). Alfred de Vigny e Mikhail Lérmontov, em 1840, fizeram de Satã herói de famosos poemas; Goethe, no seu “Fausto” (1808), colocou Mefistófeles como um dos protagonistas da sua história; Giosuè Carducci, agraciado com o prêmio Nobel, escreveu sobre ele; Giacomo Leopardi lançou um “Hino a Ariman” (1835): “Rei das coisas, autor do Mundo, arcana / Malvadez, sumo poder e suma / Inteligência, eterno / Dador dos males e regulador do movimento”; Victor Hugo lhe consagrou um livro inteiro, “O Fim de Satanás” (1886); Dostoievski o apresentou no seu romance mais famoso, “Os Irmãos Karamazov” (1880); e Ibsen o evocou com o nome de “Grande Curvo” no mais significativo de seus dramas, “Peer Gynt”(1867).

Algumas obras, pelo seu conteúdo blasfemo, poderiam ser reconhecidas como inspiradas pelo espírito satânico. Um desses livros é certamente “Leviathan” (1651), de Thomas Hobbes. Ele conclui que a vida consiste na “guerra de todos contra todos”. Em “Matrimônio do Céu e do Inferno” (1790), de William Blake, os provérbios do inferno tem um inconformismo irreverente. Assim como “O Assassínio como Uma das Belas Artes” (1827), de Thomas De Quincey, ou noutro criminoso diabólico retratado em “Caneta, Lápis e Veneno” (1891), de Oscar Wilde. A teoria do mal pelo mal foi exposta, com a costumeira implacável agudeza, por Edgar Allan Poe na célebre narrativa “O Demônio da Perversidade” (1845), no qual é descrita a atração do abismo. Reflexos satânicos podem ser encontrados ainda na obra de Petrus Borel, “Madame Putiphar” (1939). Borel fundou em 1884 um jornal com o título de “Satã”.

O demônio que, sendo orgulho de poder é também mediocridade satisfeita, como dizia Gogol, no livro “Testamento” (publicado postumamente em 1762), do abade Jean Meslier, falecido em 1729, é senhor de uma frase macabra que se tornou famosa no tempo da Revolução Francesa: “É preciso estrangular o último padre com as tripas do último rei”. A notoriedade do vigário escritor se deve à autoria de um tratado filosófico promovendo o ateísmo, descoberto após sua morte. 

O primeiro escritor que repetidamente enunciou a teoria da superioridade do Mal e a beleza da crueldade foi o Marquês de Sade. Talvez a verdadeira substância do sadismo seja o satanismo. Choderlos de Laclos elegeu para protagonista das suas “Ligações Perigosas” (1782), uma dama de têmpera demoníaca, a Marquesa de Marteuil. Também o Julian Sorel de “O Vermelho e o Negro” (1830), de Stendhal, tem reflexos diabólicos no seu sinistro maquiavelismo de ambicioso sem escrúpulos. Em Baudelaire, o intelecto satânico se destaca nas “Flores do Mal” (1857) e em certos frios e cruéis apólogos de “Pequenos Poemas em Prosa” (1869).

Por meio de escritores românticos, o imaginário literário quebrou o monopólio teológico da explicação demonológica para lançá-lo ao mundo onírico do fantástico, do grotesco e do maravilhoso. O mal reaparece na criação de E. T. A. Hoffmann; no romance gótico “Melmoth, o Errabundo” (1820), de Charles Maturin; nos “Cantos de Maldoror” (1869), do poeta Conde de Lautréamont; nos “Contos Cruéis” (1883), de Villiers de L`Isle-Adam; e no burlesco “Ubu Rei” (1896), de Alfred Jarry. No último poema de Arthur Rimbaud, “Uma Estação no Inferno” (1873), ele dialoga sem temor com o Rei do Inferno. Na trilha temática, “O Diabo e Tom Walker” (1824), conto de Washington Irving se inspirou parcialmente no “Fausto”; e “O Diabo e Daniel Webster” (1936), de Stephen Vincent Benét, fala de um fazendeiro azarado que vende sua alma ao Diabo para tornar-se próspero. No devido tempo, a dívida é cobrada. Um eminente advogado é chamado para defendê-lo, e por meio de uma habilidosa série de argumentos, vence a causa contra o Diabo e seu cliente é salvo da perdição.

O italiano Giovanni Papini publicou “O Diabo” em 1953. Inteligente e inusitado, expõe teorias e concepções bastante originais sobre Lúcifer, investigando acerca da sua origem e natureza, da rebelião e seus motivos, especula o “sofrimento” de Deus pela queda de seu anjo dileto, as relações perigosas entre Deus e o Diabo. Segundo Papini, “A criação da obra de arte exige e implica uma certa dose de sensualidade e uma certa dose de orgulho, e envolve por isso uma tal ou qual cumplicidade, nem sempre apercebida, com o Demônio. Um artista que não tenha qualquer familiaridade com o Adversário, seja embora para se esquivar dele e dominá-lo, não pode ser um verdadeiro artista”. Fecha seu livro com uma peça – em três atos –, “O Diabo Tentado” (1950), carregada de lirismo.

O católico George Bernanos, que se celebrizou com “Sob o Sol de Satã” (1926), era obcecado pelos íncubos e laços diabólicos, marcando toda a sua obra. Satã brilha no existencialismo de “O Diabo e o Bom Deus” (1951), de Jean-Paul Sartre. Em “Meu Fausto” (1946), além de Mefistófeles, Paul Valéry introduz três repugnantes demônios: Belial, Astaroth e Gungune. O alemão Thomas Mann, autor de “Doutor Fausto” (1947), causou polêmica ao dizer: “Que campo do humano, mesmo supondo que se trate do mais puro, do mais dignificantemente generoso, ficará totalmente inacessível ao influxo de forças infernais? Sim, cumpre até acrescentar: qual deles não necessitará nunca do fecundador contato com elas?”. Mais recentemente, o Arrenegado foi best-seller em “O Bebê de Rosemary” (1967), de Ira Levin.

Na Literatura Portuguesa, Eça de Queirós começa o conto “O Senhor Diabo” (1877) dizendo: “O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma”. Ele acredita que o Cão tem nostalgia do céu. Fernando Pessoa escreveu em inglês o enigmático “A Hora do Diabo” (1910), dizendo: “Mas essas chamas lançam, não luz, mas sim treva visível.”. José Saramago teve consagração mundial com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1992). Na literatura brasileira, o Cabrunco foi lembrado na peça teatral “Macário” (1852), de Álvares de Azevedo; no Machado de Assis dos contos “A Igreja do Diabo” (1884) e “O Anjo Rafael” (1869); Monteiro Lobato em “Bocatorta” (1921); na peça “O Auto da Compadecida (1957), de Ariano Suassuna; no romance “As Pelejas de Ojuara” (1985), do potiguar Nei Leandro de Castro; e principalmente em “Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, onde o demônio não tem corpo, não aparece, não fala. E tanto se faz mais forte quanto o seu silêncio e a sua ausência são presenças persistentes ao longo da narrativa. O escritor mineiro, por meio de Riobaldo, nosso Fausto sertanejo, afirma que “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele”.

Nos contos folclóricos brasileiros, de marcante influência europeia, a presença do diabo é uma constante. Entre eles, “Toca por Pauta”, recolhido por Luís da Câmara Cascudo. Abundantes ainda são os exemplos em Literatura de Cordel, como “A Mulher que Enganou o Diabo” (1985), de Manoel D'Almeida Filho, em que a esposa, mais astuta que o demônio, consegue libertar o marido do pacto que este havia feito. Ser de muitas faces, “O-Que-Nunca-Ri”, nas palavras de Riobaldo, tem acompanhado a humanidade desde os primórdios, incorporando ao longo dos séculos a tradição católica, além das crenças e divindades de outros povos.

Aquele cujo nome as pessoas preferem não pronunciar foi lembrado por William Shakespeare em “Rei Lear”: “O Príncipe das Trevas é um cavalheiro”. E, que os crentes em Deus não se enganem, Ele precisa ser um cavalheiro. Afinal, que méritos haveria se seu adversário, a essência do mal, fosse um mero idiota com chifres e rabo? Sem alardes, Satã é reconhecido não somente como criação literária, mas também como um dos protagonistas da vida real, da nossa história. Nas últimas décadas, a evolução da sua figura mítica deparou-se com a apropriação de suas características pela indústria do entretenimento. O Diabo atual é uma sombra ofuscada daquela figura terrível e devotada do imaginário popular de outros tempos. Desconfio que seja somente mais um disfarce. Sem dúvidas, o Azucrim continua comprando almas e mandando/desmandando no mundo.


FONTES

“Cartas do Diabo ao Seu Aprendiz” (1942)
de C. S. Lewis

“O Diabo” (1953)
de Giovanni Papini

“Dicionário do Folclore Brasileiro” (1954)
de Luís da Câmara Cascudo

Grande Sertão: Veredas (1956)
de Guimarães Rosa

“O Diabo – As Percepções do Mal 
da Antiguidade ao Cristianismo Primitivo” (1991) 
de Jeffrey Burton Russell

 “Dicionário de Símbolos” (1997)
de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant

“Lúcifer­ – O Diabo na Idade Média” (2003)
de Jeffrey Burton Russell

“Anjos Caídos” (2008) 
de Harold Bloom


abril 10, 2016

................................ De SÚBITO, LORD BYRON!




para os “Meninos d’Avó”

Quando conquistou tudo o que todos querem cortejar, a pobre recompensa não valeu os custos: juventude desperdiçada, alma aviltada, honra perdida, são os teus frutos, ó paixão triunfante!

(Byron, “Fragmento 11 do canto XVII”)


Sou calmo – mas não sou calmo demais;
Modesto – mas com autoconfiança;
Paciente, sim – porém sem muita paz;
Mutável – sem que se note mudança;
Tímido – mas às vezes muito audaz;
Alegre, mas sem rir, porque isso cansa;
Como se a minha minha pele, numa tez,
Tivesse, onde não tem, duas ou três.

(Tradução de Augusto de Campos)

Fotografias:
JOSÉ RICARDO CORTE-REAL
(exclusivamente para o livro Se Um Viajante numa Espanha de Lorca
de Antonio Nahud, 2005)


Na primavera deste ano, George Gordon, conhecido pelo título aristocrático de LORD BYRON (1788 - 1824. Dover, Reino Unido), regressou a Sintra. Há vento e algum calor. Nem sombra da auréola de neblina ambientando a vila de mistério. Noite azul profundo, perfumada por ervas aromáticas; silêncio absoluto, harmonia e sensações. Como se um segredo extraordinário fosse revelado. Nesta paisagem sensorial, um pouco acima do Museu do Brinquedo, na Casa da Avó, poetas e admiradores do lírico, chamados “Meninos d’Avó”, iniciam mais um dos habituais encontros poéticos. De súbito, numa deslocação instantânea além-morte, o lendário LORD BYRON surge com grosso volume de papéis entre os dedos, atravessa o salão e se senta, discretamente, pedindo uma taça de vinho tinto a Paula, dona do local, e desenhista nos momentos de ócio.

O belo porte do poeta romântico cintila e seus olhos não escondem um destino plúmbeo, melancolia acentuada e caráter excepcional. Pronto para conceder poemas inéditos, guardados durante quase dois séculos, desvendando a Serra da Lua e sua concentração de energia visionária. A passagem do poeta inglês por Sintra, em julho de 1809, deu origem a versos: “Ó minha Sintra, és cá um Paraíso glorioso / mas o capacete de neblina que trazes sempre na tromba / Faz-me sentir saudoso / da minha solarenga Albiona / Bem, sempre é melhor fugir para Missalonga com um marujo português / E quem fala assim não é coxo / Como eu”. Retratou a cidade como bela e enigmática, não tendo em grande conta o caráter dos portugueses, poemando críticas duras que ainda hoje silvam como um látego em Childe Harold’s Pilgrimage”.

lord byron
Ele se lembra de tudo, os olhos piscando como asas de colibri – um adormecimento ou um princípio de desmaio, fadado a se tornar forma espectral. Está como no centro de um palco, ao alcance do meu olhar semicerrado a acompanhar os seus movimentos. O que faz BYRON na Casa da Avó? O que é a Casa da Avó? Oxente, caro leitor. Explico direitinho. Local fundado durante a I Guerra Mundial por uma velha camponesa viúva, avó Madalena, estirpe de muitos filhos e netos, dois deles ainda vivos. Uma casa de pasto (restaurante popular com receitas caseiras) mantendo a velha tradição, conduzida com boa vontade por Paula e Luis Ribeiro. Quinzenalmente, os “Meninos d’Avó” se reúnem para ler ou ouvir poesia na pequena sala do restaurante, entre taças de vinho e, por vezes, um suculento Bacalhau à Brás. Noites temáticas (a mais recente, “Revolução, poemas de Pablo Neruda e José Gomes Ferreira) homenageiam poetas, mas quase sempre o tema é livre. Por aqui passaram figuras supimpas: Paulo Brito e Abreu, Fátima Freitas, Risoleta Pinto Pedro e outros.

Carlos Pinto e José Ricardo – nosso amigo-irmão Zezinho -, respectivamente engenheiro de som e fotógrafo, presentes, atentos, embora jamais abram a boca para a récita. Atores mostram sua verve, de Rui Mário, do Tapafuros, a Nuno Vicente, do Utopia. Rui Lopo, Jorge Telles de Menezes e Rui Bráz dirigem sutilmente o espetáculo, dando preferência ao espontâneo. Menezes, autor do alucinante “Selenographia in Cynthia”, interpreta poemas pausadamente, sentido, voz grave, carregada de vivências. Nesta noite em que recebemos a visita de BYRON, lê poetas germânicos do pós-guerra, traduzidos por ele. É um grande escritor, poeta, ensaísta e tradutor à procura de um editor sensível. Superando a timidez e a tendência para mergulhar na emoção intensa e contida, pouco a pouco, tomo o gosto da “performance interiorizada”. Considero-me, com deleite, um dos “Meninos d’Avó”. Este é o panorama, a geleia geral: poetas abrem a boca e lançam poemas.


Entre nós, entusiasmados espíritos delirantes, LORD BYRON, voz aveludada, clara e firme, sem esconder rasgos de sensibilidade, fala sobre poesia. Durante o sarau continua com uma série de leituras carismáticas, pontuando reflexões literárias cheias de desenvoltura. Sua beleza luminosa, estampa de cinema, provoca encabulamentos. Êxtase. Pareço arder e, ao mesmo tempo, sou tomado por gélido e discreto embaraço. O poeta nos diz seu nome: António Cortez. Ah, Byron, pseudônimo, alter-ego, heterônimo, personagem, verso vivo, possessão espetacular! Cortez, António Cortez, admirável.

Depois da meia noite, cumprida a missão, ele parte, despedindo-se amável e prometendo voltar. Imagino um indômito alazão negro à sua espera. Enfeitiçado, levanto os olhos e vejo o fundo dos seus olhos. Lá está a sua história, a história de um aventureiro, um leque de vivências. Um sujeito elegante, várias relações amorosas de ambos os sexos, deixando como legado uma obra de profundo interesse. Ele escandalizou a sociedade tanto com seus poemas quanto pela sua vida mundana. É tratado como um gênio da poesia e o maior romântico inglês.


Criação marcada pelo pessimismo, cinismo, ironia e revolta contra o mundo. Critica a sociedade de maneira exaltada, impetuosa e até violenta. Seu caráter poético ligado à tristeza da alma humana. Um grande painel autobiográfico. Rotulado como louco, devido ao desprezo pelas regras de comportamento social, socialmente rejeitado e, também, invejado pela originalidade literária e gênio criador. Inquieto e aventureiro, ânsia libertária, tal qual escreveu no poema “O Corsário”. Deixou pensamentos célebres, como este: “O passado é sem dúvida o melhor profeta do futuro”. Na tentativa de transformar sua vida em seus escritos – ou seria o contrário? – ele se encheu de dívidas - por estar sempre dando orgias e festas extravagantes.
        
Nasceu em Londres no congelante 22 de Janeiro de 1788, família à beira da ruína econômica, malformação congênita num dos pés, provocando um visível coxear. Ainda assim o nosso protagonista se destacaria em esportes como boxe e natação. A mãe, Catherine, focalizava no filho único as desgraças que aconteciam na sua vida. Aos nove anos, faleceu seu tio avô – quinto LORD BYRON - deixando o sobrinho neto como depositário do título familiar. Jovem de beleza invulgar, no Trinity College de Cambridge foi apelidado de “bom garoto” pelo carisma e excelente disposição. Em 1806, aos 18 anos, publica o primeiro poemário, “Horas Ociosas”, mal recebido pela crítica. Nessa altura, a Inglaterra prosperava em plena evolução industrial. O poeta, dando rédeas à sua ânsia de aventura, iniciou em 1809 uma viagem por vários países mediterrâneos: Portugal, Espanha, Grécia, Turquia. Passou alguns dias em Sintra, começando a escrever “As Peregrinações de Childe Harold” – seu alter-ego literário -, protagonista de mil avatares poéticos.
        

Cantadas por vozes relevantes da literatura portuguesa – Luís Vaz de Camões, Gil Vicente, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Ramalho Urtigão, Teixeira de Pascoaes, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira e José Saramago, entre tantos – e do romantismo inglês – William Beckford, Robert Southey - as paisagens idílicas de Sintra encantam viajantes e turistas de ocasião. É um grandioso cenário de uma natureza pagã e sagrada. Deslumbrou LORD BYRON, que soube apreciar a solidão dos lugares misteriosos, escrevendo: “a vilazinha de Sintra é talvez a mais bela de todo o mundo”. Admirador de Beckford, escritor milionário que influenciou sua obra e se instalou poucos anos na admirável Quinta e Palácio de Monserrate, escreveu sobre a vivenda lusa do autor de “Vathek” (1786): “Aqui moraste, e aqui sonhaste ser feliz, vendo ao longe a montanha: a beleza imutável. Agora, este local parece amaldiçoado: teu palácio está só como tu próprio és só”.

Na sua carta a Francis Hodgson, escrita a 16 de Julho de 1809, disse estar apaixonado pela paisagem da mística e mítica vila, deixando-se fascinar pela exuberância natural em versos como “The Glorious Eden”. O mesmo ardor e magnificência do local reconhecidos mais de meio século depois pelo escritor português Eça de Queirós. O autor de “Os Maias” (1888) interpretou Sintra com uma visão pessoal e emotiva, recordada sob a expressão “Sintra Queirosiana”, e se pode afirmar que ela está presente em quase toda sua fértil obra. Antes do idílio de BYRON, outro poeta britânico, Robert Southey, estendeu os olhos pela cenografia sintrense: “o mais abençoado torrão de todo o globo habitável”.


Hospedado na Estalagem dos Cavaleiros, as aventuras e desventuras de BYRON em terra portuguesa são narradas num livro de Alberto Teles, publicado em 1879. A fama do furacão romântico cresceu e o regresso em 1811 de sua peripécia européia foi aclamado nos melhores salões londrinos. Todos queriam tê-lo como convidado e lhe atribuíram centenas de romances com mulheres e homens. Mas foi Annabella Mibanke quem o levou ao altar em Janeiro de 1815. Onze meses mais tarde nasceu Augusta Ada, enquanto a polêmica e o escândalo salpicavam a vida do poeta. Acusado publicamente de sodomia e incesto, foi abandonado pela esposa. Diante de terríveis rumores e provável julgamento, ele decidiu deixar o seu país sem intenção de regressar.
        
Esteve em Bruxelas e na Suíça, fazendo amizade com Mary e Percy Shelley, John Polidori e Claire Clairmont. Com os novos amigos e, por que não dizer, amantes, navegou por lagos e organizou veladas literárias propondo a criação de novelas macabras. Polidori inspirou-se em BYRON para escrever “O Vampiro”, semente de um gênero, enquanto Mary Shelley concebeu “Frankenstein”, aproximando-se do mito do novo Prometeu. Se estabelecendo na Itália, o irreverente poeta incrementou sua já por si fértil criatividade, apoiando causas libertadoras e publicando textos como “Manfred”.


Em 1822, com apenas 34 anos, mergulhado numa tristeza cada vez mais abrumadora, resolveu combatê-la viajando pela Grécia, disposto a lutar pela liberdade dos gregos frente ao poder otomano. Recebido como herói, em pouco tempo, ferido, contraiu uma febre que o levou à morte a 19 de Abril de 1824. Faleceu na praia, dizendo para um amigo que o acompanhava: “É chegada a ocasião de descansar!”. Poeta de amores perdidos, recorreu à simbologia dos elementos naturais para cantar seu dilema existencial. Com ironia e uma certa ruptura com o romantismo, denunciou um leque de preocupações muito adiante do seu tempo. Donjuanesco, temperamento forte, sensualidade vibrante e grande poder de comunicação, produziu poemas de fúria inaudita, emblemáticos na violência que o escritor exercia sobre si próprio. Egocêntrico, morreu sem encontrar as atenções nem ouvir os aplausos que julgava merecidos.
        
Tumultuoso, sutil - o encontro com LORD BYRON nesta noite voluptuosa de primavera, atmosfera enigmática e perfumada. O percebido relato nesta crônica. Sem nenhuma invenção. George Gordon, o Byron, poeta romântico e desiludido, ou Cortez, parte numa visão sobrenatural. Toma um caminho tão solitário como o das estrelas. Eu deixo a Casa da Avó. Impossível sufocar a convulsão que me arranca dos laços terráqueos. A caminho da estação ferroviária, as pontas dos ramos das árvores se incendeiam em faíscas de luz violeta, e os troncos passam gradualmente do púrpura ao negro.

Horizonte de pálida iluminação, teia de néon, destacando o serpentário da Serra, num belo efeito plástico. Noite sombria, inquietante, duma suavidade de efeitos mágicos. Solto o choro, feliz. Das trevas e do mais oculto nascem fábulas azuladas, a luz do bem querer e irresistíveis esperanças.


POEMA DE BYRON

Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás - pobre caveira fria -
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! Amei! Bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! Empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais vale guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
- Taça - levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do réptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
...Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...

(Tradução de Castro Alves)


FRASES DE BYRON

“A recordação da felicidade já não é felicidade; a recordação da dor ainda é dor.”

“Todo aquele que conseguir a alegria deve partilhá-la.”

“Todas as tragédias terminam em morte e todas as comédias em casamento.”

“No amor alternam a alegria e a dor.”

“A amizade é o amor sem asas.”

“O amor nasce de pequenas coisas, vive delas e por elas às vezes morre.”

“Para todos os ofícios, exceto o de censor, é indispensável uma aprendizagem: os críticos fazem-se antecipadamente.”

“A adversidade é o primeiro caminho para a Verdade.”

“E, afinal de contas, o que é uma mentira? É apenas a verdade mascarada.”

“As novidades agradam menos do que impressionam.”

“O ódio é de longe o mais longo dos prazeres: amamos depressa, mas detestamos com vagar.”

“Na sua primeira paixão, a mulher ama o seu amante; em todas as outras, do que ela gosta é do amor.”

“É mais fácil morrer por uma mulher do que viver com ela.”

“O casamento vem do amor, assim como o vinagre do vinho.”

“Enxugar uma só lágrima merece mais honesta fama do que verter mares de sangue.”

“Quem ama mente.”

“O entusiasmo é uma embriaguez moral.”

“Quando tiramos a vida aos homens, não sabemos nem o que lhes tiramos, nem o que lhes damos.”

“Uma amante pode ser tão incômoda quanto uma esposa, quando se tem apenas uma.”

“Terrível é que não é possível viver com as mulheres, nem sem elas.”

“A vida é como o vinho: se a quisermos apreciar bem, não devemos bebê-la até à última gota.”

“É quando pensamos conduzir que geralmente somos conduzidos.”

“Sabemos tão pouco do que estamos a fazer neste mundo, que eu me pergunto a mim próprio se a própria dúvida não está em dúvida.”

“Só a mágoa deveria ser a instrutora dos sábios. Tristeza é saber.”


lord byron