junho 12, 2016

.................................. O SERTÃO ENCANTADO de ROSEMBERG CARIRY


“O Sertão é o nervo e o osso do Nordeste”
ARIANO SUASSUNA

Mais um dia finda dando início a um espetáculo de cores no céu. De maneira dramática, enxerga-se a beleza da terra sofrida. Ali está o Sertão reafirmando a cada dia, a cada sol, a cada lua, seu valor. Ele continua seco, quente e esperançoso. Sobrevive pela generosidade, dignidade e imaginação do seu povo. Continua sendo o eixo que norteia e reconduz o Brasil às suas entranhas e à sua essência. Zonas de flora raquítica, fauna escassa, pouca água. A única fartura é o sol ardente, devorando seus próprios filhos. O sol está em todos os cantos. À noite, quando “morto o sol, a terra vai sonhar”, assim bem dito por Ariano Suassuna, num dia de lua cheia e avermelhada, as estrelas desenham no céu uma constelação de delírios.

Terra de Chicós, Quadernas e Joões Grilos. “Heróis infortunados, anônimos e altivos de uma epopeia pobre; heróis que, em seu pauperismo descarnado, sofrem, lutam e reagem, e que pelo simples fato de sobreviverem na dureza e na adversidade, participam da epopeia brasileira que a nossa Arte deve perenizar”, dizia Ariano. Dentro deste universo complexo e de incontável riqueza cultural, social e geográfica, ergue-se arte e pensamento extensos e intensos. No imaginário popular sertanejo, esta poderosa criatividade, brotando a identidade brasileira através da arte, que está também nos causos fantásticos, nas rezas de agradecimentos e clamor.


Os vidrilhos e as lantejoulas dos sertanejos são valiosos, contem sonhos. Animal encantado, protegido por matas e sóis, sertões e montanhas das luas, esta corajosa criação não vai além de seus domínios, e o espírito de bonitos cantares fica à espera do toque de clarim dos homens de boa vontade. Afinal, enfrenta a feiura e a cinzenta vida injusta, abrindo as portas da grandeza para o seu sofrido povo – inclusive, destacando a literatura de uma infinidade de escritores de excelência. Artistas afiados como faca-de-ponta, música de viola ou de rebeca, xilogravuras retratando cajus e mandacarus, folhetos cantando tramas de cangaceiros endemoniados. Metamorfose e alegoria. Eles festejam quimeras. E a realidade trágica e esperançosa da nação sertaneja.

Entre tanta gente de importância, recordo o cearense ROSEMBERG CARIRY (Farias Brito, Ceará, em 4 de agosto de 1953), que encontrou no Sertão sua inspiração e seu rumo como poeta-cineasta. Estudioso do universo libertário e sanguinário dos cangaceiros, de Jesuíno Brilhante a Lampião, assisti ao seu filme “Corisco e Dadá” (1996) pouco sabendo sobre sua equipe técnica. O longa é um susto de beleza. Imediatamente procurei ver “Lua Cambará - Nas Escadarias do Palácio” (2002), do mesmo artista de olhar fantástico e cuidadoso. São obras que mostram a luta pela sobrevivência nos Sertões miseráveis do Nordeste, restituindo a nossa história e as raízes da cultura popular.

rosemberg cariry e ariano suassuna
O indômito ROSEMBERG CARIRY desenvolve também trabalho como poeta, tendo ativa participação em movimentos artísticos e literários do Ceará. Publicou quatro livros de poesia, “Despretencionismo” (1975), “Semeadouro” (1981), “S de Seca SS” (1983) e “Inãron ou na Ponta da Língua Eu Trago Trezentos Mil Desaforos” (1985); e um de contos, “A Lenda das Estrelinhas Magras” (1984). Sua arte, união entre o erudito e o popular, é uma criação encantada.


POEMAS de ROSEMBERG CARIRY

ESTRANGEIRO

Sou estrangeiro como o homem
Que, atravessando o espelho,
Encontrou-se no país das sombras
E na densa floresta se esqueceu
De que forma brilhava a sua luz.

Sou aquele que, ao voltar,
Entrou na própria casa
E descobriu que a casa não era sua;
Não mais conseguiu reconhecer
os livros, os discos, as fotografias
dos amigos e não mais falou o idioma
do novo mundo que inventou.

Sou estrangeiro, do outro lado da alma,
Perguntando: o que eu sou?
Sou Bosch e seus fantasmas?
Sou Goya em sua fase negra?
Sou Santo Antão e as tentações?
Sou Jó insistindo em crer num Deus
Que o sonha dentro de um sonho
Que um outro sonho inventou?

Ai, sou uma criança tuareg
Que no deserto está perdida
Quer falar mais está muda
E não entende os enigmas
da esfinge que grita:
Me devora ou te decifro.

Sou um estranho estrangeiro
Fora do lugar, fora da lei,
Tão fechado em seus segredos
Como os ideogramas Maias,
Como a linguagem das baleias
E os selos das catedrais.

Assim estrangeiro, nascido
de um sonho, vivo a sonhar
Com  um país que me habita
E no qual estou exilado.
Por ser um país sonhado
É um país que não existe
A não ser como um deserto,
Onde o homem se procura
E, um dia, talvez possa,
No espelho do sagrado,
A sua alma encontrar.

(1999)


A SEPARAÇÃO

As frágeis asas do amor estão partidas:
A floresta, o rio, o sol,
A janela, a ponte, a rua...
Tudo que foi forma, cor, perfume,
De repente, desencantou-se
Em silêncio e em matéria bruta.

Ai, é tão frágil a vida,
É tão fugaz o corpo
E tão pequeno o sonho
Para conter a dor profunda.
Os mistérios da morte
Já não revelam a vida
E qualquer toque na minha pele é dor:
As frágeis asas do amor estão partidas.

Na ausência da amada eu me habito
E os fantasmas dos desejos
Fazem estragos em minha alma.
Estou faminto, sem o pão da vida
Ofertado em comunhão;
Estou sedento, sem o vinho do encontro
Na embriagues dos olhos;
Estou sozinho no mundo,
Sem o lume da esperança
Para me guiar na noite escura.
Olho as estrelas no céu,
Penso-me pássaro, mas não posso voar:
as frágeis asas do amor estão partidas.

(1999)


BIBLIOTECA DE SELESTAT

As palavras... cada letra gravada
em fogo, na pele da memória.

As palavras... cada idéia marcada
em sangue, na pedra da história.

O segredo, pela escrita revelado,
abrindo-se flor-e-verbo sobre a página
vermelho-sangue da história.

O sagrado, pela escrita guardado,
abrindo-se flor-enigma sobre a árvore
na floresta da memória.

Quantos homens, antes de mim,
arderam no fogo-poesia
que  se ilumina em palavras?

Quantos homens, depois de mim,
se iluminarão em poesia
dentro do fogo-palavras?

Quem, por acaso, sobre o túmulo
do poeta que se perdeu da memória,
depositará a flor-poesia
que, não gravada em palavras,
de ser livro se esqueceu
na floresta da história?

(1998)


rosemberg cariry

junho 04, 2016

.................................... O POÉTICO CHET BAKER: JAZZ e DROGAS



publicado no Cultural
jornal A Tarde (BA), 2003.

Vinculado ao melhor jazz e a drogas pesadas, estabeleceu um estilo ao mesmo tempo suave e vibrante, numa mostra de pura emoção. Trompetista e cantor, CHET BAKER (1929 - 1988) construiu uma carreira tão brilhante que nem seu vício em heroína conseguiu destruir sua reputação. Além da habilidade musical, ainda era dono de uma beleza que rivalizava com James Dean. Drogado e inconsequente, faltava aos compromissos profissionais, era expulso de hotéis por arruaça e vagava na noite num luxuoso descapotável.  Vetado de se apresentar em clubes de jazz na Costa Oeste, e também em Nova York, passou longa temporada na Europa, registrada em retratos que revelam olhares melancólicos e rugas precoces.

No trompete, um virtuosismo insuperável. De capacidade inesquecível, tornou-se uma lenda musical, um das peças chaves da história do jazz. Respeitado por críticos em todo o mundo, influenciou uma legião de músicos. Ouvi falar dele pela primeira vez através da cantora Jussara Silveira, e do amigo-jornalista Luís Wilde. No finalzinho dos 1980, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, finalmente conheci sua música e sua trágica história. No documentário dirigido por Bruce Weber, um CHET BAKER jovem, belo e vulnerável emana romantismo; nos últimos anos, decadência e ruína humana. Produzido no ano em que o artista morreu, apresenta sua figura disforme tocando na penumbra de um estúdio de gravação. No mesmo dia, comprei a trilha sonora de “Let’s Get Lost”.


Colecionar seus discos passou a ser um vício. Na Tower Records, em Londres, adquiria semanalmente cada um deles. Visitei um dos seus redutos mais célebres, o Club Ronnie Scott’s. Em Barcelona, fui ao Jamboree, Plaza Real, lugar em que se apresentou em dezembro de 1963. Em espanhol, li sua autobiografia “Memórias Perdidas”. Obra irregular, válida pela escrita vertiginosa. Muito melhor o cru relato de Billie Holliday, “Lady Sings the Blues”; o ácido “Beneath the Underdog”, do contrabaixista Charlie Mingus; e as impressões sinceras da vida de Duke Ellington em “Music is my Mistress”.

A criação musical de CHET BAKER me influenciou na escrita. Eu o citei algumas vezes em entrevistas, crônicas, poemas, contos. Tornou-se um amante platônico. Falei sobre ele com diversas pessoas. Costumo ler ouvindo suas interpretações antológicas, de “Imagination” (Burke-Van Hursen) a “Stella by Starlight” (Young-Washington), passando por “Retrato em Preto e Branco” (Tom Jobim). A versão do clássico “My Funny Valentine” (Rodgers-Hart) é de arrepiar, superando a interpretação da magnífica Sarah Vaughn. Com ele descobri o jazz como gênero musical por excelência. Toca-me profundamente. Sublime.


Num bar lisboeta, no Bairro Alto, passei um tempão com o cantor Emílio Santiago, chetmaníaco de carteirinha, falando sobre a música e a vida do nosso ícone. Soube então que o jazzista, mal resolvido sexualmente, costumava levar um bonito adolescente como companhia em gravações e apresentações musicais. Na boêmia pública, somente garotas fabulosas. Por seus diversos casos, a imprensa fofoqueira insistia em chamá-lo de tarado. Um heroinômano tarado? Duvido. Nenhum viciado em heroína é louco por sexo. A droga basta. É o gozo “supremo”.


Faleceu em Amsterdã, aos 58 anos, com cara de muito mais idade, e então se tornou uma lenda do jazz. Morte bizarra, cercada de mistérios. Teria ele se suicidado, ou apenas estava tão drogado que caiu da janela do hotel? No final dos anos 1950, sua história quase chegou às telas na pele do bonitinho e insosso Robert Wagner. Recentemente, por um triz não foi rodada uma superprodução protagonizada por Leonardo DiCaprio. A viúva do artista, a ex-modelo inglesa Carol Jackson, mãe de três filhos seus, ficou empolgada com o projeto. Ano passado, Ethan Hawke estrelou Born to Be Blue, recriando o trompetista. 

Ele foi batizado como Chesney Henry Baker. Nasceu em Yale, Oklahoma, ano da Grande Depressão, no dia 23 de dezembro de 1929. Os pais incentivaram sua vocação musical. Influenciado pelo pai, um guitarrista country, envolveu-se com a música e aos 11 anos, após uma mudança para o subúrbio de Los Angeles, começou sua carreira musical tocando acordeão, cantando e fazendo parte do coral da igreja. Aos 13 anos ganhou do pai um trompete. O instrumento seria seu companheiro até o fim da vida. Em 1952, impressionou o lendário Charlie Parker, o Bird, inventor do bebop, sendo contratado para apresentações no Canadá. Esta turnê representa a sua efetiva entrada no hall dos profissionais de alto nível do jazz. Quando terminou, Parker voltou a Nova York e disse a Miles Davis e Dizzy Gillespie: “Tem um trompetista branco lá na Costa Oeste que vai jantar vocês.”


A voz de CHET BAKER, quase um sussurro, um fio de sentimento. Nem todos aceitam sua musicalidade discreta, melancólica e romântica. Alguns criticam a linearidade, ausência de contrastes, apego aos registros médios. Em meados dos anos 1950, já uma estrela, tocando em parceria com Stan Getz, consumia diariamente dez gramas de heroína e dez gramas mais de cocaína. Acossado pela polícia, passava temporadas em hospitais e no cárcere. Nas memórias, diz que tanto os momentos de sufoco como os de glória lhe foram indiferentes. Único e universal, ele foi retratado ainda jovem pelo fotógrafo William Claxton, originando o livro “Young Chet”.

Em 1952, após findada sua turnê com Charlie Paker, montou junto a Gerry Mulligan um quarteto que foi uma verdadeira sensação. Eles levaram multidões a um pequeno club situado no Wilshire Boulevard de Los Angeles, ganhando proeminência nacional em pouco tempo. Em 1954, liderado por CHET BAKER, o quarteto viajou por todo território norte-americano com shows que eram sucesso de público e crítica. Ainda em 1954 ganhou os prêmios de Melhor Trompetista de Jazz pelas revistas 
Down Beat e Metronome. Em Hollywood atuou no filme “Hell's Horizon” (1955), um drama de guerra. Mas rejeitou uma oferta de contrato com um estúdio cinematográfico. Nos anos seguintes, as drogas começaram a lhe criar problemas sérios. Em 1950 foi preso pela primeira vez.  Por volta de 1956 foi internado no Hospital de Lexington e preso em Riker's Island. O vício em heroína transformou sua vida numa sucessão de prisões e hospitalizações. Seu nome repercutiu de maneira negativa pela imprensa mundo afora.


Em 1955 resolveu conquistar a Europa. Logo no início da excursão, seu pianista Dick Tzwardik morreu vítima de uma overdose de heroína em um hotel em Paris. Depois de retornar de sua primeira turnê europeia, lançou em 1958 um disco com Stan Getz, um dos maiores saxofonistas da história do jazz. No outono de 1959, CHET BAKER viajou outra vez para o velho continente. Em 1964, foi deportado da Alemanha para os Estados Unidos, viagem na qual seu trompete foi roubado. Quatro anos depois, brutalmente surrado por cinco narcotraficantes, na Califórnia, perdeu quase todos os dentes. Para sobreviver, trabalhou num posto de gasolina e viveu da caridade alheia, até um produtor musical pagar sua dentadura. 

Passou três anos reaprendendo a dominar seu instrumento, prejudicado pela condição dentária. Conseguiu tocar novamente, apesar de isso lhe causar dores terríveis por causa da pressão do bocal. Ajudado por Dizzy Gillespie, conseguiu um contrato. Nunca mais parou, resultando na melhor fase de sua carreira. A sua volta ao mundo do jazz se deu por volta de 1974, num concerto no Carnegie Hall, junto à Gerry Mulligan e diversos outros grandes músicos. Retornou a Europa em 1975, pois o mercado norte-americano não estava favorável ao jazz. Transformado em um mito, onde quer que se apresentasse o local estava sempre lotado.


Protótipo do inconformista, CHET BAKER é eterno pela sensibilidade musical extrema. Ela supera a existência afundada no inferno das drogas, a dura sobrevivência artística, a velhice autodestrutiva. Nos últimos anos de vida, tocava curvado, sentado num banco, e deu muito vexame. “Toco cada canção como se fosse a última”, costumava dizer. Admiro sua produção artística de aproximadamente 200 discos. É um artista nato. O seu trompete desfilando suavemente notas musicais, e a voz pequena e afinadíssima, ficaram na história. 


TRÊS DISCOS de CHET
(01)
THE BEST OF GERRY MULLIGAN QUARTET WITH CHET BAKER

Coletânea do início da carreira. Energia indescritível do sax de Mulligan e do trompete de Chet. 
Destaque para “My Funny Valentine”.

(02)
CHET BAKER SINGS

Não há como negar que a sua maneira de cantar é inigualável. Com este álbum ele elevou 
seu nome na cena do jazz. Aqui nasceu um estilo de fazer música. 

(03)
MY FAVORITE SONGS: THE LAST GREAT CONCERT 

Este não é o seu último concerto. Mas faz um belo apanhado 
do que foi a sua carreira.

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