dezembro 09, 2019

.............................. CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 03




“Fôra a Itália que o chamara – a Itália de que ele tinha sempre nostalgia – quando quis reacender no espírito a flama mística que se extinguia”
A REVOADA dos ANJOS (1926)
MANUEL RIBEIRO
(Albernoa, Beja, Portugal. 1878 - 1941)

Ilustrações:
PAOLO SALVATI
(Roma, Itália. 1939 - 2014)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a terceira narrativa.


03
O CHAPÉU MÁGICO


para Marcelo, meu mano


Há nuvens de pequenos dragões num voo hipnotizante. Em questão de segundos transformam-se na solidão das florestas, em um punhado de pétalas de flores vaporosas, em tantas outras coisas reais ou imaginárias. Está visto que perdi o juízo! Sob a Lua Cheia, faias enfileiradas brilham exaltando o jardim de Baco. Um morcêgo ronda a clareira, beirando cardos de cor violácea, espinhosos, surpreendidos pela claridade lunar. A brisa dengosa desliza nas folhas secas. Deve ser bem tarde, mas não sei que horas são, nem mesmo se o amanhecer se aproxima. Aqui nunca sei as horas exatas, não há relógios e não aprendi a calcular o tempo através da natureza. Agora só me resta ficar onde estou, deitado na barraca, respirando lentamente, refrescado pelo luar, acariciado pelas suaves brisas dos bosques, à espera do sono.

Do outro lado do recanto sombreado por árvores, presto atenção no australiano Michael, um ragazzo magro, de bom coração. Ele deixa de lado a leitura de “Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei” (1994), de Paulo Coelho, dedilhando acordes clássicos na viola. Percorre o mundo, solitário, tendo como meta conhecer a beleza, as idéias e a cultura de diversos países, preparando-se para um dia fundar a sua própria comunidade alternativa. Ao encontrá-lo ontem, à beira do córrego, caminhamos de mãos dadas pela Floresta. O ar estava impregnado de um perfume de alfazema e frutos silvestres. Subimos numa faia, lentamente, galho a galho. Do alto, suspiramos, fascinados pela imensidão das montanhas da Toscana.

Ouvia-se o som de um instrumento de percussão, com batidas indolentes. Michael pensou durante um bom tempo, olhou para o céu, depois para a copa das árvores e acompanhou o voo de uma ave de rapina, antes de inesperadamente dizer-me: “Quando o Sol brilha, ilumina o mundo inteiro, apesar da cegueira dos humanos”. Ri, sentindo um bem-estar especial, e tendo a convicção de que cada dia é único e ponto final. Nunca haverá uma outra vez. Dizia a mim mesmo que não podia ser real estar na Itália, na copa de uma árvore, meio bicho-preguiça, nu, em uma montanha de 1200 metros de altura, quase tocando o céu, ouvindo uma frase sentida. Seria um capricho da fantasia? Do arcano A Lua?

Cheguei recentemente de Florença, passando alguns dias aos pés do Davi (1504) de Michelangelo. Dentro de mim, a tensão desagradável do confronto direto com a multidão típica do verão europeu: as atrocidades do turismo, monótonos hotéis, cidades repletas de estrangeiros que não sabem o que fazem e por que o fazem. Por que tiram tantas fotografias? Ah, entendo, senhora, passou uma semana no Brasil, mas o que conheceu em um resort na Bahia? Não se interessou pelo comportamento dos nativos ou a visão de uma árvore, na selva, com bromélias floridas derramando nos galhos e frutos da cor do ouro?

Ocorreu-me que uma viagem é uma espécie de resumo da própria passagem pela vida. Qualquer uma delas deveria ser um prazer bastante profundo e pessoal, e assim resultaria satisfatória. Sacudindo o incômodo, vaguei por ruas de iluminação amarelada, feito desorientado bicho sobrenatural. O poder da arte e da história resplandecendo em cada prédio, esquina, monumento, praça, ponte, arcada, pátio. Desperto parte das noites, deixava Viale Michelangelo, onde dormia, andando sem pensar em nada de concreto, sem mapa ou direção, envolvido em uma solitária simpatia e compreensão por aquela cidade de magnífica personalidade. Os jardins do Palazzo Pitti, o Duomo, Piazzas Santo Spirito e Santa Croce, com jovens dispostos a vender erva. A bela igreja-panteão, que contem as cinzas de Dante, e as capelas Bardi e Peruzzi enriquecidas com pinturas de Giotto.

Vi a cidade nua, desértica, e eu caminhando por ela com os mesmos olhos emocionados da Isabel Archer de “O Retrato de uma Senhora / The Portrait of a Lady” (1881), idealizando a liberdade, a felicidade e o conhecimento da Itália (a idéia de felicidade da protagonista de Henry James é viajar numa carruagem, numa noite escura, por estradas desconhecidas). Florença é descuidada, suja, caótica, mas estar nela é se deixar tomar por um movimento invisível, subterrâneo, glacial. “Que é que se passa comigo?”, perguntei-me desolado. Nunca conversava, salvo uma vez ou outra por uma questão de delicadeza. Todavia, na última noite entre os fantasmas de Dante, Sandro Boticelli e Hannibal Lecter, conheci dois jovens marroquinos que lá vivem: Rachid e Ahmed. Sentamos na murada beirando o Rio Arno, de costas para a Piazza Mentana, com a visão privilegiada da Ponte Vecchio. Fumamos cigarros, dividimos uma cerveja e conversamos longamente sobre futebol, mulheres e culinária. Depois de uma pausa inusitada, imposta pela passagem de um assustado grupo japonês, eu disse: “O Marrocos é uma beleza. Voltaria lá com prazer muitas outras vezes”. Eles sorriram, orgulhosos. Nada melhor do que um elogio sincero para quebrar as barreiras da desconfiança.

Agora à Floresta, tendo visto o que se passa à frente e atrás, posso avançar, fazer com conhecimento de causa o que é conveniente face às circunstâncias. Durante um momento infinito olho dentro da noite. O sono demora a chegar. De vez em quanto a Lua surge entre as folhas das árvores, cada vez mais pequena, cada vez mais longe, cada vez mais surreal. Pensamos que a vida é um poço inesgotável, mas a morte não se deixa enganar e a caminho. Quantas vezes mais sentirei a força da paixão? Talvez duas ou três. Talvez nem tanto. E, no entanto, tudo parece interminável. E não é, tudo se acaba.

Coleciono na memória imagens miraculosas que nunca mais voltarei a ver: os bondosos amigos portugueses em volta da fogueira; um neo-zelandez de olhos azuis interpretando uma canção de Leonard Cohen; o sorriso singelo de Farina, mãe da telúrica Naima; a flauta mágica do francês de longas madeixas negras; o corpo escultural da holandesa Freda num contorcionismo absoluto; a delicadeza das irmãs Pety e Sabina; as cartas de tarot jogadas pelo italiano Fúlvio; a voz aveludada de Josephina; os chás vibrantes do argentino Nestor; o interessante diálogo com o veneziano Gabrielli em torno de “A Divina Comédia / La Divina Commedia” (1304), de Dante; os olhos apaixonados de Alicia; Garrit e sua guitarra; as carícias alucinantes de Patrick; a massagem infalível de Helga; a carne voluptuosa do andrógino ariano “Peninha” e de um moreno israelense que nunca soube o nome,  e a infinitude de um azul profundo. Todos esses milagres ajudaram-me a passar por uma transformação.

Analiso o mal que fiz ou causei, embrutecido e estúpido. O mal que na cegueira aprovei. Nas florestas, os pássaros, animais selvagens e árvores nunca dizem nada desagradável e vivem juntos de um modo harmônico. O próprio Rainbow tem como sustentáculo a antiga lenda indígena norte-americana dos Hopi. Fala de um futuro superpovoado, rios poluídos, florestas destruídas, animais em extinção e guerra por todos os lados. Nessa tragédia, viveriam seres resistentes ao caos: os Guerreiros do Arco-Íris. Poderia passar como argumento de história em quadrinhos com consciência social, mas é uma bela crença, ideal para o absurdo dos dias de hoje.

Os milagres, inacreditáveis, quiçá surrealistas, existem vez ou outra. Basta estar aberto às múltiplas interpretações, deixando-se levar por aventuras sem fim. Um toque n’alma da fascinante viagem de Alice, a menina curiosa falando com o sorridente Gato de Cheshire, o estressado Coelho de colete, a infeliz Tartaruga, Cartas de baralho, um Chapeleiro louco, Lagarta fumando pipa, Grifo etc. A minha porção Lewis Carroll prontifica-se para “Onde místicas memórias se entrelaçam / Como coroas de flores raras, que um peregrino / Colhesse em longínqua Terra Prometida!”.

Depois de muitos anos, encontrei “Tex” ao lado de uma fogueira, edição número 538, “Colorado Belle”. Uma agradável magia. Tenho-o como o gibi mais amado por meu Pai, ele comprava-o semanalmente. Deitado no velho sofá, acendia um cigarro e lia-o do início ao fim. Admirava o bravo rápido no gatilho, contos desenhados do gênero western, caravanas, tiroteios, desertos, cactos, saloons, mercenários, abutres, cidades fantasmas, batalhas, funerais e um herói de bom coração. O musculoso Tex Willer, prisioneiro dos Navajos, casa-se com a filha do chefe e, com a morte deste, torna-se senhor das Terras Altas e Baixas, destacando-se por sua valentia e senso de justiça.

Criado por Gianluigi Bonelli na Milão dos anos 50 e realizado graficamente por Aurelio Galleppini, Tex atravessou fronteiras. Ao lado do leal pistoleiro, seu filho Kit Willer e dos amigos Kit Carson e Tigre Jack. Com pouca fortuna, Giuliano Gemma, mais conhecido por “O Dólar Furado / Un Dollaro Bucato” (1965), deu vida no cinema ao mito. A popularidade de Tex na Itália – a pátria de Sergio Leone, do western-spaghetti e das trilhas-sonoras de Ennio Morricone – continua intacta, dando origem inclusive a uma conhecida pizza com seu nome. Tem linguiça, queijo e espinafre como ingredientes. Uma boa combinação. Provei mais de uma vez com um apetite feroz.

A doce canção é silenciada. Ciao, Tex! Buona notte, Michael! Uma estrela cadente corta o céu. Fecho a barraca e, logo a seguir, o saco-cama, sussurrando um dos hits do Rainbow italiano: Magico, magico / Il capello è magico / Se non hai un soldo, donaci l’amore”. A Itália e o Amor. Que gente apaixonada e apaixonante! Nem mesmo a sombra fascista do bufo primeiro-ministro Silvio Berlusconi consegue abatê-los. De súbito, compreendo que fui presenteado com um chapéu mágico. Dele vem luz e sombra; as longas e proveitosas horas em silêncio diante do Sol e da Lua; o fortalecimento emocional na figura de Leonardo, na música de Giuseppe Verdi, nos bosques da Toscana ou nos aspectos mais verdadeiros, mais profundos de qualquer lugar. Por muito que envelheça, que fique fatigado e por vezes sem esperança, não deixarei de lado a alegria de viajar. Que aventura! Que Verão! Que Terra boa! Ouço nitidamente a voz da Lua.

Floresta Abetone, Toscana, Itália
agosto de 2005

CONFIRA as CRÔNICAS ANTERIORES

01
RELÂMPAGOS RASGANDO a NOITE

02
A ENCRUZILHADA dos DESTINOS

outubro 27, 2019

......................................................................................................... CHUVA



Do livro “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” (2012)
Conto de ANTONIO NAHUD

“Entretanto a chuva caía com cruel persistência. Ficava-se com a sensação de que no fim o céu iria ficar seco, mas a água continuava a cair torrencial, vertical e pesadamente sobre o telhado de zinco, com uma monotonia de enlouquecer. Estava tudo úmido e pegajoso. Havia bolor nas paredes e nas botas que estavam no chão. Ao longo das noites mal dormidas os mosquitos zumbiam no seu cantar irritado.”
W. SOMERSET MAUGHAM
(Paris, França. 1874 - 1965)
CHUVA (1921)

Ilustrações:
JOSÉ PANCETTI
(Campinas, São Paulo. 1902 – 1958)



Chove torrencialmente há dias. Água pesada, bruta, religiosa na sua ladainha, com pingos se confundindo com a imensidão do mar. Mas basta a chuva parar por uma ou duas horas para uma multidão surgir, como formigas viciadas na rotina laboral. Nesses momentos, da varanda, Gilda acompanha a romaria de surfistas, turistas italianos, artesãos, drogados, jovens meretrizes, vagabundos, vendedores ambulantes e nativos descalços. Indiferente à chuva, ela se volta para as frondosas mangueiras sob o céu cor de chumbo. O céu do lugar é um dos mais intensos e bonitos que já viu, embora não recorde outros céus. 

O esquecimento é um dos motivos que a faz sentir prazer em viver, pois não vive em função da memória, deixando progressivamente desaparecer da mente montanhas de informações acumuladas. Ainda ontem, uma colega de trabalho falou de “Sonhos”, filme de Akira Kurosawa, lembrando detalhes e Gilda apenas recordou de uma cerejeira em flor. Ao contar à irmã que estava cultivando orquídeas, esta remeteu ao pai praticando a mesma tarefa na infância delas, colhendo espécies nativas nas matas de cacau e transportando-as para as árvores do quintal da casa grande. Gilda confessou, envergonhada, nada lembrar, deixando a irmã abismada. Temos certo hábito de entender a memória como algo que define a nossa vida. Contudo, não será errado dizer que a memória sabota verdades. Ela procura a verdade noutra parte do mais oculto, talvez no próprio esquecimento, pouco convicta de que a verdade, a honestidade, e ao inverso, a mentira e o logro, tenham alguma importância. 

Crê que as ações humanas são absolutamente insignificantes, idênticas ao latido de um cão ou ao voo de um bando de pardais.  Hoje é um domingo em que nada quer fazer, passando horas mortas lendo “Confissões”, de Rousseau, onde este sozinho, doente, refugiado numa casa de campo perdida nas montanhas do Dauphiné, está persuadido de um vasto complô tramado contra sua pessoa. São recordações tristes e pungentes, de infortúnios e traições. Ela põe o livro de lado, esfomeada, mas resiste, firme no jejum que já dura três dias. Aprecia ficar sem comer por livre e espontânea vontade, o corpo se fragilizando místico. Termina por adormecer na rede, sonhando com formas geométricas luminosas. 

Ao acordar, ainda chove torrencialmente. As dunas estão ensopadas. Gilda subitamente pensa na arte, na grandeza possível da obra de arte que aponta para além dela mesma. Sexta passada, vencendo o desânimo, reuniu algumas pessoas no seu apartamento, misturando poetas, fotógrafos, dondocas, pintores, jornalistas, atores e marqueteiros políticos. Afogada no álcool e na futilidade, percebeu que todos se divertiam, inclusive ela, entretanto no dia seguinte seria capaz de jurar que se aborreceu terrivelmente. Ao apagar as luzes da varanda, absorvida no ritmo do balanço da rede e na fúria da chuva, surge subitamente na tirana memória os olhos de um amor perdido. Nem recorda a cor deles, porém enxerga a felicidade sequestrada. Hoje é uma mulher só.



antonio nahud

outubro 03, 2019

....................................... O MUNDO VIOLENTO de ELLROY




“O papel da literatura é induzir compaixão mostrando às pessoas o que o mundo realmente é e explicando como se dão mudanças pessoais nos indivíduos.”
JAMES ELLROY

Ilustração: 
EDWARD HOPPER
(Upper Nyack, Nova York, EUA. 1882 - 1967)

Em entrevista ao jornalista ANTONIO NAHUD, em Madri, Espanha, 2001, o autor fala sobre seu novo romance.


Poeta urbano impiedoso, JAMES ELLROY (Los Angeles, Califórnia, EUA. 1948) afirma que seus livros de prosa pessimista “cospem o mal, cospem o diabólico”. A sua biografia revela uma infância dura, expulso da escola e de casa, dormindo em parques e sob viadutos, drogas, álcool em excesso, delinquência juvenil, cárcere e violência ininterrupta – tudo narrado, anos depois, no livro “Meus Lugares Obscuros”. Depois veio a literatura, a redenção. Tinha mais de 30 anos quando publicou o primeiro livro. Diz que escreve romances policiais porque é obcecado por crimes violentos desde a infância, quando a mãe foi encontrada morta por um dos inumeráveis amantes dela, em Los Angeles. Ele tinha 10 anos.

Em Madri, apresentou seu mais recente romance, “Seis dos Grandes”, um calhamaço de quase 900 páginas e segunda parte da “Trilogia Americana”, iniciada há cinco anos com “América”. É uma narrativa documentada por fatos policiais e notícias de jornais, produto do trabalho de documentação do autor. A trama se inicia no dia do assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963, numa série de conflitos raciais. Um agente do FBI chega a Dallas para eliminar um suposto assassino e estuprador negro. O sangue jorra forte à sombra da Ku Klux Klan, J. Edgar Hoover, a máfia, o tráfico de drogas e os anticastristas, ou seja, todo a infâmia do império norte-americano, ao lado de assassinos de aluguel com sentimentos e prostitutas com escrúpulos.

Ele diz que não lê os colegas “para não ser influenciado”. Considera-se “como Tolstói para o romance russo e Beethoven para a música”. Não tem televisão nem telefone celular. Escreve à mão e conta com uma secretária para digitar seus livros. Autor de muitos romances (“A Dália Negra”, “Jazz Branco”, “Sangue na Lua” etc.), considerado o mestre atual do policial noir, comparado a Raymond Chandler e Dashiel Hammett, chegou ao sucesso com “Los Angeles: Cidade Proibida” (1997), graças à adaptação para o cinema de Curtis Hanson, com Russel Crowe, Kevin Spacey e Kim Basinger.

O escritor tem hoje 53 anos, mas aparenta mais. É esguio e elegante. Com mais de 1,90m de altura e alma atormentada, JAMES ELLROY diz que o sonho norte-americano é feito de lixo, violência e mentiras. Confira a entrevista:

Seus personagens são severamente julgados. Não entendo como o comparam a Raymond Chandler, escritor cujos detetives e mulheres fatais são amorais.

Procuro uma viagem moral, descrevendo homens e mulheres nessa viagem. Julgo meus personagens com severidade e creio que este novo livro tem uma forte base moral, além de honra, amor, humor e decência. Quanto a Chandler, era um péssimo escritor. Não entendia bulhufas de policiais.

O senhor parece preferir os policiais aos detetives particulares.

Claro. Os investigadores privados não entendem nada do assunto. São amadores bisonhos.

Acredita que os escritores devem julgar costumes e pessoas como um cronista da miséria moral?

Não sou cronista, sou um escritor. Não opinaria sobre a pena de morte, os distúrbios raciais em Cincinnati ou o governo Bush. Não sou um crítico cultural dos EUA. Não aceito esse tipo de limitação. Não gosto de me encerrar em categorias literárias.

Como gostaria de ser definido?

Um conservador. Sou a favor da pena de morte. Há certas pessoas que não merecem viver… Aprovo o controle do comércio de armas. Sou um homem que odeia o niilismo, odeia a promiscuidade, odeia a rebeldia institucionalizada, odeia os psicopatas e odeia o rock and roll. Parece incrível, mas gosto de música clássica.

Qual o seu leitor ideal?

Escrevo fundamentalmente para a gente que quer escapar da realidade e se meter em novos mundos, mesmo que neste mundo encontre o maligno. Eu respeito meus leitores escrevendo de maneira visceral, com muitas descrições e um uso consciente da repetição, linguagem própria e rica em detalhes e uma trama complexa.

Como traduziria os Estados Unidos?

A melhor coisa dos EUA é o capitalismo, o quase apartheid do sistema de governo, as duas casas do Congresso, direitos de Estado. É um fato que é uma república que representa a democracia. E acredito ser imperativo que os EUA permaneçam como um poder dominante. Tenho uma visão mais militar que social da história.

Qual o seu presidente dos EUA favorito?
           
São dois grandes presidentes do século 20: Roosevelt e Ronald Reagan. Roosevelt iniciou os programas sociais e Reagan ofereceu suspensão de impostos para todo mundo.

Diversas obras suas foram adaptadas para o cinema com muito sucesso. “Los Angeles: Cidade Proibida” foi indicado para nove Oscars e ganhou dois. Gosta dos filmes que foram feitos a partir de seus livros?

É só uma forma de ganhar dinheiro. Eles ferram seu livro com o roteiro e lhe dão um bom dinheiro. O melhor filme feito de um de meus livros foi “Los Angeles: Cidade Proibida”. Me rendeu um bom dinheiro. É uma versão mais romântica de meu livro, que é muito mais sobre corrupção institucional e racismo. Mas também reconheço isso como um trabalho de arte que não criei.

O que tem feito além de promover seu mais recente romance?

Ando estudando a história do fascismo, para o próximo livro. Descobri que não há diferença entre fascismo e comunismo.

O que se deve esperar de “Seis dos Grandes”?

A leitura de uma obra-prima, ou melhor, a segunda obra-prima de três obras-primas chamadas “Trilogia Americana”. Tomo personagens e fatos verídicos e fictícios e os uno de tal forma que o leitor crê que tudo é real.

 
 
 
 
 
 
 
 

 

setembro 03, 2019

................ ZUENIR VENTURA - TESTEMUNHA de seu TEMPO




Jornalismo e literatura são irmãos gêmeos que nasceram muito diferentes 
e que hoje são mais parecidos do que nunca.
ZUENIR VENTURA

Fotos:
GERMAN LORCA
(São Paulo, SP. 1922)

Por ANTONIO NAHUD. 2007


Autor do best-seller “1968 – O Ano que não Terminou”, lançado em 1988 e atualmente na 40ª. edição, o mineiro, criado no Rio, ZUENIR VENTURA (Além Paraíba, Minas Gerais. 1931) se define como carioca: Como todo bom mineiro, e vice-versa. Em quase meio século como repórter, redator e editor, trabalhou em publicações brasileiras famosas, entre elas, o “Jornal do Brasil” e as revistas “Senhor”, “O Cruzeiro” e “Fatos & Fotos”. Ganhou o prêmio Wladimir Herzog de Jornalismo em 1989 e o Esso de Reportagem em 1994. É colunista do jornal “O Globo”, da revista “Época” e do site www.nomimino.com.br       

Autor de realista e humorado, ele publicou “Cidade Partida” (1994), sobre a chacina em Vigário Geral; “O Rio de J. Carlos” (1998), em parceria com o cartunista Cássio Loredano; “Inveja – Mal do Século” (1998) etc. Também roteirizou o documentário “Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje” (2003). Nesta entrevista, diz: “O leitor deve desenvolver antídotos contra o poder da imprensa”. Confira a entrevista:

O escritor precisa ter um papel transparente na sociedade?

Para o escritor, não deve ser obrigação desempenhar uma função social. Mas se ele estiver envolvido com seu tempo, acabará tendo esse papel, querendo ou não.

Como traduz o mercado literário nacional?

O mercado literário brasileiro se caracteriza por um paradoxo: apresenta uma extraordinária produção (há editoras que publicam um livro por dia) e um baixo consumo. Lê-se pouco por razões econômicas e culturais: os livros são caros, os leitores não têm dinheiro e nem o hábito da leitura.

As editoras estão atentas para absorver os novatos? Existe um caminho a se seguir? Que conselhos daria aos editores?

Não é que não estejam preparadas. O problema é que as editoras são empresas e, como tal,  não podem correr riscos econômicos. Elas precisam ter lucro. Editar um novato é sempre uma aventura. Não sei que conselhos daria a elas. Aos jovens, eu sugeriria que publicassem pela internet.


Julga que a literatura brasileira contemporânea é essencial?

Essencial, não sei. Mas importante, sim.

Já encontrou o equilíbrio entre jornalismo e literatura? Esse dualismo existe? Por exemplo, sofreu pressões, como escritor, para pender para um lado ou para o outro?

Acho que me inclino mais para o jornalismo. Mas não acredito que as duas atividades sejam incompatíveis.

Um dos méritos da sua linguagem é consolidar uma visão de mundo, de certo universo brasileiro antenado. Ela é também genuinamente universal, pelo que contém de drama humano. Como foi chegar a essa síntese desde “1968 – O Ano que não Terminou”?

Para isso, o jornalismo foi fundamental, como linguagem e como temática. Ele é que permite essa imersão na atualidade, sempre prenha de dramas e comédias.

Qual foi a sua intenção ao escrever “1968”? Esperava a repercussão recebida?

Foi recuperar um tempo que a ditadura tentou apagar da história, pela censura e pelo esquecimento. De jeito nenhum esperava a repercussão que teve. Achava que não passaria da primeira edição e ele já está na 40ª.

Machado de Assis nasceu, morreu e falou do Rio de Janeiro do século XIX. Nascido em Minas, acha que é sua sina exorcizar os demônios cariocas?

Como todo bom mineiro sou carioca, e vice-versa. Daí minha obsessão pelo Rio, que, como cantou Fernandinha Abreu, é o purgatório da beleza e do caos.

Temos uma crítica literária que reconhece uma obra literária sem se ater basicamente ao que já está consolidado?

Na universidade deve haver, mas nos jornais e revistas é difícil, até porque é da natureza da imprensa trabalhar com o já consumido e consolidado.

É mais fácil atacar ou elogiar alguma coisa ou alguém do que fazer crítica de verdade?

É muito mais fácil atacar. Aliás, está na moda falar mal. É hoje um marketing de grande sucesso.

Certa vez declarou que “o ideal seria que o leitor, o ouvinte e o espectador olhassem para a imprensa sempre com uma certa desconfiança”. Ainda pensa assim? A imprensa está em crise?

Continuo pensando assim. O leitor deve desenvolver antídotos contra o poder da imprensa. O mito de que somos o “Quarto poder” nos fez muito mal. Não temos que ser poder, mas contra-poder. Quanto à crise, pelo menos uma ela está vivendo: a crise da linguagem escrita. Estamos perdendo a guerra contra o áudio-visual.


A nossa imprensa tem um certo fascínio pelas coisas ruins ou será uma tendência mundial, de uma sociedade banalizada que precisa de chacoalhadas sórdidas?

Acho que é um problema planetário. Para nós, jornalistas, de maneira geral, notícia boa é notícia ruim, o que é uma deformação. Mas o leitor também não é inocente nessa história.

Ao passar pelas revistas “Senhor” e “O Cruzeiro”, duas mitológicas publicações, o que levou delas?

A revista “Senhor” foi uma das mais bem sucedidas experiências de vanguarda jornalística. Muitas de suas inovações, principalmente no plano gráfico, ainda são atuais. Quanto à revista “Cruzeiro”, ela foi uma escola de reportagem.

O que acha do jornalismo ensinado nas universidades?

Acho que a solução para o ensino de jornalismo seria uma parceria da universidade com as empresas. Em vez de uma ficar falando mal da outra, as duas deveriam desenvolver uma troca permanente de experiências.

A crônica de costumes é literatura ou jornalismo? Ou seria uma coisa e outra?

Eu diria que é simplesmente crônica, esse gênero democrático e generoso, situado entre o jornalismo e a literatura e onde cabe tudo.

Você tem uma epígrafe que o acompanhe? Um mote que o defina aos participantes do I Encontro Natalense de Escritores?

Não vim à Terra para julgar nem para condenar; vim para olhar e depois contar. Não sou juiz nem promotor, sou uma testemunha de meu tempo. Um jornalista.