outubro 27, 2019

......................................................................................................... CHUVA



Do livro “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” (2012)
Conto de ANTONIO NAHUD

“Entretanto a chuva caía com cruel persistência. Ficava-se com a sensação de que no fim o céu iria ficar seco, mas a água continuava a cair torrencial, vertical e pesadamente sobre o telhado de zinco, com uma monotonia de enlouquecer. Estava tudo úmido e pegajoso. Havia bolor nas paredes e nas botas que estavam no chão. Ao longo das noites mal dormidas os mosquitos zumbiam no seu cantar irritado.”
W. SOMERSET MAUGHAM
(Paris, França. 1874 - 1965)
CHUVA (1921)

Ilustrações:
JOSÉ PANCETTI
(Campinas, São Paulo. 1902 – 1958)



Chove torrencialmente há dias. Água pesada, bruta, religiosa na sua ladainha, com pingos se confundindo com a imensidão do mar. Mas basta a chuva parar por uma ou duas horas para uma multidão surgir, como formigas viciadas na rotina laboral. Nesses momentos, da varanda, Gilda acompanha a romaria de surfistas, turistas italianos, artesãos, drogados, jovens meretrizes, vagabundos, vendedores ambulantes e nativos descalços. Indiferente à chuva, ela se volta para as frondosas mangueiras sob o céu cor de chumbo. O céu do lugar é um dos mais intensos e bonitos que já viu, embora não recorde outros céus. 

O esquecimento é um dos motivos que a faz sentir prazer em viver, pois não vive em função da memória, deixando progressivamente desaparecer da mente montanhas de informações acumuladas. Ainda ontem, uma colega de trabalho falou de “Sonhos”, filme de Akira Kurosawa, lembrando detalhes e Gilda apenas recordou de uma cerejeira em flor. Ao contar à irmã que estava cultivando orquídeas, esta remeteu ao pai praticando a mesma tarefa na infância delas, colhendo espécies nativas nas matas de cacau e transportando-as para as árvores do quintal da casa grande. Gilda confessou, envergonhada, nada lembrar, deixando a irmã abismada. Temos certo hábito de entender a memória como algo que define a nossa vida. Contudo, não será errado dizer que a memória sabota verdades. Ela procura a verdade noutra parte do mais oculto, talvez no próprio esquecimento, pouco convicta de que a verdade, a honestidade, e ao inverso, a mentira e o logro, tenham alguma importância. 

Crê que as ações humanas são absolutamente insignificantes, idênticas ao latido de um cão ou ao voo de um bando de pardais.  Hoje é um domingo em que nada quer fazer, passando horas mortas lendo “Confissões”, de Rousseau, onde este sozinho, doente, refugiado numa casa de campo perdida nas montanhas do Dauphiné, está persuadido de um vasto complô tramado contra sua pessoa. São recordações tristes e pungentes, de infortúnios e traições. Ela põe o livro de lado, esfomeada, mas resiste, firme no jejum que já dura três dias. Aprecia ficar sem comer por livre e espontânea vontade, o corpo se fragilizando místico. Termina por adormecer na rede, sonhando com formas geométricas luminosas. 

Ao acordar, ainda chove torrencialmente. As dunas estão ensopadas. Gilda subitamente pensa na arte, na grandeza possível da obra de arte que aponta para além dela mesma. Sexta passada, vencendo o desânimo, reuniu algumas pessoas no seu apartamento, misturando poetas, fotógrafos, dondocas, pintores, jornalistas, atores e marqueteiros políticos. Afogada no álcool e na futilidade, percebeu que todos se divertiam, inclusive ela, entretanto no dia seguinte seria capaz de jurar que se aborreceu terrivelmente. Ao apagar as luzes da varanda, absorvida no ritmo do balanço da rede e na fúria da chuva, surge subitamente na tirana memória os olhos de um amor perdido. Nem recorda a cor deles, porém enxerga a felicidade sequestrada. Hoje é uma mulher só.



antonio nahud

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