janeiro 19, 2019

................................................. HILDA HILST: POESIA e DESILUSÃO



“Perdi o caminho do de dentro de mim mesmo. vou esmaecendo. girassóis e sombras, ouro e luto, contrastes. (...) entrei no lago Averno. lá não há pássaros. é a estrada do sem fim o lago Averno. aí uns grandalhões me sorriram: vai entrar no lago sim. escureceu. vi uma trilha de fogo, e anjos dourados sobre negros cavalos.”
de “Estar Sendo, Ter Sido”

Ilustrações:
MIRA SCHENDEL
(Zurique, Suíça. 1919 - 1988)


A palavra derradeira que ouvi da poeta HILDA HILST soou terrível, como um tiro: “Judas!”, ofendeu-me, descontrolada. Era o final de um bonito relacionamento de quase três anos, causado por um modesto ensaio de 14 páginas, “Hilda Hilst - Inquieta e Atormentada”, sobre sua vida e obra, escrito com a finalidade de presenteá-la de forma especial no seu aniversário de 62 anos. Dias antes, enviei cópias do texto a antigos amigos da autora de “A Obscena Senhora D” (1982), pedindo confirmação a respeito dos fatos abordados. Um deles (ou mais de um?) aproveitou a situação para cortar a minha cabeça, já que em todos os reinos existem ciumeiras e intrigas. Afastado da abelha-rainha, não mais voltei a vê-la. Logo eu, um garotão maluco por ela. Amava passar finais de semana na decadente e acolhedora Casa do Sol, próxima a Campinas. 

Eu a encontrei pela primeira vez em uma primavera de 1990. Ventava com violência, nuas as árvores da Alameda Tietê, em São Paulo. No silêncio da tarde que findava, pensei em Ícaro aproximando-se do sol, nas galáxias em que Alice Carroll se perdeu, no ventre da baleia com Pinocchio. Reconheci a figura pequena, cabelos louro-avermelhados enrolados em um coque, um cachecol de lã enterrado no pescoço, suéter de gola rolê, calças confortáveis, olhos cintilantes, sorriso honesto. Estava inseguro. Ela fez que não ouviu a pergunta inicial, cortando com a afirmação na crença em livros a serem relidos. “A Montanha Mágica, por exemplo”, insistiu, forjando a posição de ícone. Sentia-me jovem demais, incapaz de captar as frases anárquicas e inteligentes do maduro anjo exterminador. Parecia radiante, mas eu terminaria por descobrir que escondia um coração ferido.

Entrevistei-a informalmente para divulgar o segundo livro da trilogia erótica, “Contos D’escárnio – Textos Grotescos”, futura publicação da Editora Siciliano, onde eu atuava como assessor de comunicação e leitor crítico. Contou-me o início: escritora desde 1950, em 1969 o crítico literário Anatol Rosenfeld elogiou publicamente suas peças inéditas, surgindo o deleite. Por fim, pedi exemplares da sua obra difícil de encontrar. Simpática, enviou-me o material esgotado em livrarias: “Da Morte Odes Mínimas” (1979), “Cantares de Perda e Predileção” (1983), “Com Meus Olhos de Cão e Outras Novelas” (1986), entre outros. Leitura hipnótica, fruição da insensatez.
Bedecilda e Apolônio,
pais de Hilda

Um deles, “O Caderno Rosa de Lori Lamby” (1990), muito me interessou na ocasião. Risível, viciosa e apavorante pequena obra-prima. Relata com humor o imaginário de uma menina-Lolita de oito anos, sem pudor, que se corresponde com os homens que favorece sexualmente. Para Eliane Robert Moraes, este livro depravado “se inscreve numa das mais nobres tradições de literatura erótica, aquela que, para citar apenas alguns autores do século, passa pela obra de Guillaume Apollinaire, Pierre Louys e Henry Miller”.

Expressando-se por um tratamento experimental da linguagem, HILDA HILST escrevia poesia, novelas, crônicas e peças góticas de teatro, tornando-se um mito maior do que seus livros curtos, estilizados e de pouca repercussão. Encantado com a voz bonita, articulada e grave, desfiando histórias picantes, eu ria sem limites com o deboche demolidor da idosa dama desiludida. Conversávamos fervorosamente sobre extraterrestres, experiências místicas, Deus, poesia, filmes, atores, cineastas, pinturas etc. Perguntava-me sobre a infância, impressionada com meu nascimento em uma fazenda de cacau. Muitas vezes eu cozinhava, preparava chás e lanche, já que a escritora não sabia fritar um ovo. Nos braços, a levava para dormir, embriagada, além de divulgar sua produção literária na mídia, dentro de minúsculas possibilidades, e insistir com ela para que concedesse entrevistas. Num dos melhores momentos, comovido, acompanhei o nascimento dos versos de “Do Desejo” (1992), profundos como um oceano, que ela finalizou sem qualquer correção, como nos livros anteriores.
hilda menina

Percebi imediatamente que HILDA HILST nunca estava satisfeita, queixando-se quase sempre, ranzinza, revoltada, amargurada. Nada era bom o bastante, nem os prêmios literários, nem as traduções de sua obra para o francês e o italiano, nem os elogios de consagrados críticos literários. Ela me parecia iluminada e fraterna, mas vivia em uma luta constante entre o instinto de sobrevivência e a autodestruição.

NINHO de VÍBORAS

Acusado injustamente, o boicote me fez perder um bom emprego e fecharam-se as portas de diversos conhecidos, escritores e jornalistas. Assim, aprendi de supetão que o mundo literário é um ninho de víboras, tão selvagem como qualquer campo de batalha. Qual foi o motivo da censura imperdoável ao tal controverso ensaio? O que escrevi, a poeta de “Cantares de Perda e de Predileção” (1983) contava abertamente, encantadora e sarcástica, rodeada de estudantes de letras ou poetas de todo o Brasil, como uma moderna Sherazade, entre uma dose de uísque e outra, muitos cigarros, enquanto assistíamos a telenovela das oito, sem jamais pedir segredo e amparada em uma confiança inabalável no passado irreverente.


O ponto vulnerável talvez fosse uma vivência relatada oralmente estampada no papel. Por que eu deveria seguir os passos de narradores da biografia da polêmica escritora, omitindo fatos essenciais e ficando na exuberância superficial? Eles, quando contam algo incômodo, em carne viva, entornam mel, praticamente pedindo perdão ao leitor e, principalmente, bajulando a biografada. É difícil cavar o fosso entre o mito e a realidade. Segundo um dos personagens de Dostoievski, “um homem saciado não pode compreender um faminto e nem mesmo um faminto pode compreender um outro”. HILDA HILST nunca se preocupou em ocultar sua vida privada. Parecia não ser importante para ela.

Na intimidade conheci seus segredos, vontades e pavores, como inquilino de fim-de-semana na casa herdada de sua mãe no Parque Xangrilá. A Casa do Sol é um celeiro de energia concentrada, fronteira de vários mundos. Não tinha tapetes no chão, nem cortinas nas janelas. O fungo desenhava mapas miúdos nas paredes. Floresta majestosa de livros que se erguiam em todos os cantos: Ibsen, Tchekhov, Balzac, Stendhal, Goethe. Papéis, lápis, canetas orientais. Uma sala espaçosa, confortável. Amplas janelas que davam para um pomar.
hilda e lygia fagundes telles

Numa extremidade discreta, a gravura emoldurada de uma dama da Revolução Francesa, que a autora acreditava ser uma reencarnação sua. Cristais e uma lareira habitada por morcegos. Caixas, arcas, armários coloniais. O escritório no quarto era o centro da residência. Ali, em torno de frustrações e desejos, escreveu seus melhores livros. No jardim, palmeiras, mangueiras e uma figueira centenária, que atende súplicas. O ponto preferido dos “espíritos da natureza”. “Eles se materializam e se deixam ver quando querem”, ensinou-me.

ALÉM de BONITA, PENSA e ESCREVE

O ensaio percorre labirintos ouvidos, diversas vezes, dos lábios da madura poeta: o pai, fazendeiro de café e jornalista, Apolônio Almeida Prado Hilst, tentando seduzi-la em um manicômio; a demência irrecuperável da mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, após encontrar o amante bem mais jovem, um piloto, com outro homem na sua própria cama; na Livraria Planalto, no centro de São Paulo, a mocinha saboreando chá quase que diariamente com Oswald de Andrade e sua turma, e ouvindo deles: “além de bonita, pensa e escreve”; a virgindade perdida aos 20 anos, sem compromisso, por livre e espontânea vontade; anos de futilidade e luxúria, vestida com modelitos Dener, Casa Vogue ou Madame Rosita; namorados ricos que lhe ofereciam joias, peles, viagens para o exterior e até um Mercedes-Benz; musa de Carlos Drummond e Vinícius de Moraes;

os pileques e farras no seu sofisticado apartamento na Alameda Santos, na grande São Paulo, decorado com peças antigas, compondo um cenário a Luis XVI, em festa permanente; penteava-se com Jambert; perfume L’expression de Jacques Fath; casacos de vison, Mercedes Benz à disposição, rodeada de prata e champanhe francês com uma turma de famosos que incluía Jô Soares, Mira Schendel, Cassiano Gabus Mendes, Renata Pallotini, Bráulio Pedroso, Massao Ohno, Lupe Cotrim, Raul Cortez, Eva Wilma, Cacilda Becker, entre outros; amantes descartáveis recolhidos em bares, restaurantes e rodovias; horror a mulheres e crianças, as quais chamava de “crionças”, e a levou a fazer diversos abortos;
dener e hilda

coisas notáveis em matéria de mediunidade; gravações de vozes do além através de ondas radiofônicas; vultos assombrados passeando pelo jardim; alcoolismo; velhice mal-resolvida, incomodada com rugas, flacidez, cabelos brancos ou a pele clara cheia de manchas de senilidade; o planeta Marduk, seu destino depois da morte etc. Tamanha parafernália deveria fazer parte de qualquer biografia séria de HILDA HILST, um dos maiores ícones literários brasileiros do século 20. Ela os contava com detalhes para quem quisesse ouvir, entre uma torrente de palavrões, muitas vezes caindo na gargalhada, noutras se ensopando de lágrimas.

Uma de suas recordações antológicas tinha como cenário o ano de 1957. A alegoria da rica em Paris, onde passou seis meses. Cassinos, festas, boates, shows. Marlon Brando filmando na capital francesa um futuro fiasco chamado “Os Deuses Vencidos / The Young Lions”, de Edward Dmytryk. HILDA HILST, tiara de brilhantes na testa, vestida por Christian Dior, muitos martinis na cabeça, subornou o porteiro do Hotel Ritz, batendo à porta do apartamento do astro. Disse: “Monsieur Brando, sou uma jornalista brasileira e quero passar a noite com você. Vim de longe para isso”. A beleza da jovem não o comoveu. Aos 33 anos, oxigenado, baixo, de foulard e chambre de seda cor de vinho, nada do instinto selvagem, rebelde, magnético. Deixou à vista o ator francês Christian Marquand, nu, deitado na cama de casal. Seria o parceiro do sexo oral fotografado e exibido nos tribunais por uma das esposas do astro, Anna Kashfi. E assim aconteceu a primeira derrota amorosa da poeta.
dante e hilda

LUCIDEZ e LIBERDADE

Mesmo descartado, jamais deixei de amá-la, guardando na memória sua beleza, inteligência, cultura e talento. Foi uma das criaturas mais admiráveis e lúcidas que conheci. Na semana da sua morte, morando na Espanha, realizei um ritual em sua homenagem, em pleno inverno catalão nas montanhas dos Pirineus, lendo seus poetas mais amados: Holderlin, John Donne, Rainer Maria Rilke, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, T. S. Elliot, René Char, Saint John Perse e Federico Garcia Lorca. HILDA HILST morreu solitária, depois de longos meses de enfermidade, com falência múltipla dos órgãos, em 3 de fevereiro de 2004, às 3 da manhã, magrinha, alojada numa aparência de 90 anos, ela que foi uma das mulheres mais lindas da sua época.

Parecida com a atriz sueca Ingrid Bergman, namorou astros de Hollywood (Tony Curtis, Jeff Chandler e Dean Martin) e o milionário Howard Hughes (do filme de Martin Scorsese, “O Aviador / The Aviator”, 2004); recusou pedido de casamento de Vinícius de Moraes e o assédio de Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicava poesias eróticas e a seguia timidamente pelas ruas do Rio de Janeiro. “Lygia (Fagundes Telles) apresentou-me a Drummond, e entre nós havia comoção”, relembrava. “Fui lindíssima, sofisticada e, inteligente. Nunca uma dessas dondocas sem nada no crânio”, garantia. Acreditava não ter nascido para a felicidade e o matrimônio.


AVERSÃO ao MOVIMENTO CONCRETISTA

Levantava por volta das dez horas, passava óleo de amêndoa na pele e caminhava lentamente até o canil, alimentando 15 cães vira-latas. Depois iniciava o trabalho, em uma máquina Olivetti portátil. Vivia com o salário razoável de artista residente da Universidade de Campinas, que terminaria por ser cortado. Aproximamo-nos profundamente. Ouvíamos sinfonias de Gustav Mahler. Leituras de poesias. Entre o lirismo e o escracho, esbravejava contra a mediocridade renitente, não apreciando o relato com começo, meio e fim.

Tinha aversão ao concretismo. “A mídia cultua os irmãos Campos. São apenas uns pedantes”, afirmava. Duvidava da consagração acadêmica, no exterior, de Machado de Assis. “É mentira. Machado só é lembrado no Brasil porque faz parte do currículo escolar, caso contrário seria esquecido e não faria falta”, afirmava. Egocêntrica e hipocondríaca, tomava vitaminas em excesso por uma simples gripe. Odiava ser chamada de poetisa, dizia que diminuía a grandeza do ofício, e renegava quase todos os escritores e poetas brasileiros, apreciando somente Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Jorge de Lima.

SENTIR MAIS, DEFINIR MENOS

Mesmo com sua obra completa (40 livros em 19 volumes) sendo publicadas pela Editora Globo, e arquivo no Cedae da Unicamp, disponível para pesquisas, a escritora lutava contra o esquecimento - o desdém do público e da crítica. De ascendência ibérica do lado da mãe e franco-alemã do lado do pai (os Hilst vieram da Alsácia, região entre a França e a Alemanha), nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, e estudou Direito na Faculdade do Largo do São Francisco, sem nunca ter exercido a profissão. Estreou em 1950, com o volume de poemas “Presságio”. Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, prosa e teatro. Lia em francês, inglês e espanhol, mas não falava bem nenhum idioma.

De rara beleza, comportara-se na juventude de maneira avançada, numa desregrada vida boêmia, escandalizando a sociedade paulista e despertando paixões sem futuro. Em 1966, depois da leitura de “Cartas a El Greco / Raport Catre El Greco”, última obra do grego Nikos Kazantzakis, escrita em 1956, resolveu abandonar o mundano, procurando a cintilância do invisível. Mudou-se para a Casa do Sol, transformando radicalmente seu cotidiano, enxergando entidades e tendo vivências fora do corpo. O exílio voluntário pouco adiantou. Jornalistas, diretores teatrais, professores universitários, místicos, atores, escritores e nomes notórios procuravam por ela. A caixa postal estava sempre recheada. Gentilíssima, hospedava muitos deles, mas jamais incentiva carreiras literárias ou respondia cartas. Não oferecia amor, mas a análise, a gênese, dialética e perspectivas.
anotações de hilda

Publicou uma série de obras em ficção e poesia (seu teatro, ruim, permaneceu inédito muito tempo), destacando-se a obra prima “Fluxo-Floema” (1970), “Qadós” (1973, livro favorito dela), “Da Morte. Odes Mínimas” (1980) e “Amavisse” (1989). Em 1992, escandalizou o mercado editorial e leitores fiéis com “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, pequena e risível novela supostamente pornográfica.

Quando não estava enfastiada, em noites de finíssimo timing cômico, protegida por ávidos adoradores que cortejavam o tom da sua graça, ela contava e recontava o passado frenético, enquanto grilos cantavam no jardim, pássaros noturnos varavam a escuridão e sombras macabras, quase vivas, sugeriam terror. Ela amava ervas, águas, bichos, insetos, o oculto. Sabendo que o homem moderno é um encurralado, consultava frequentemente o “I Ching”, os olhos expressando magnetismo e tensão. Compromissada com o desconhecido, envolvida em presságios e premonições, fazia viagens astrais e prognósticos, via bolas douradas no infinito e nebulosos vultos masculinos, de lábios violáceos, em trajes de época. 

Após pesquisar o trabalho desenvolvido pelo pintor sueco Friedrich Jurgenson e mais tarde pelo Instituto Max Planck, de Munique, HILDA HILST experimentou gravar vozes do além. Anunciou sem calafrios que Deus não é onipotente, estaria condenado à solidão. Como a liturgia de secular missa barroca, lia aproximadamente oito horas por dia, seja em português, inglês, espanhol ou francês. Tinha 1,62 de altura, medo de avião, não dirigia automóvel, preferia a cor azul-turquesa. Desiludida, franca, arguta e amável, cultuava um humor impagável e uma memória imutável de emoções por atacado: descrevia com perfeição a aura doentia do escritor mineiro Lúcio Cardoso, percebida em um encontro três décadas antes.


À PROCURA de DEUS

Conheci HILDA HILST meses antes da publicação de “Contos D'Escárnio / Textos Grotescos” (1990). Na ocasião, ela era mais comentada por uma espécie de anedotário do que pela leitura de seus escritos. Chamada de louca, visionária, bruxa, cortesã e até de porca histérica em reportagem do jornal francês “Libération”. Porém, quisessem ou não, já era um dos pilares da literatura brasileira. Sua vasta obra, poesia ou prosa, é densa, marcada pela busca incessante da individualidade e pela ingratidão de um deus não-religioso.

Hermética, vasculhava uma realidade além do visível, do palpável, do pensamento lógico. Utilizava a linguagem vigorosamente, como meio de desestruturação, reformulação e catarse. “Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem de ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir na cara”, dizia. Entretanto, exagerava. Bem-sucedida ainda em vida, comentada, estudada, elogiada. Pouco lida, evidente. O crítico literário Leo Gilson Ribeiro disse certa vez sobre ela: “o maior escritor vivo em língua portuguesa”.
nahud, sérgio, hilda e aldo

Brilhante e desbocada, sentia saudades da juventude rica e glamourosa, paparicada por todos. Paupérrima nos últimos anos de vida, sofria, pedindo dinheiro emprestado e driblando credores. Vendeu pouco a pouco suas obras de arte e o patrimônio que possuía para suprir necessidades imediatas. A péssima situação financeira fez com que escrevesse para a Fundação Nestlé rogando leite para alimentar seus estimados cães. Na conturbada biografia, calçada em alegrias e tragicidades fervorosas, incluem-se amizades vulcânicas, vertiginosas, entre a generosidade e a tormenta. O temperamento inconstante a fez perder muitas delas, às vezes em controvérsias irreversíveis ou brigas homéricas, como o episódio do lançamento de uma antologia: ela quebrou um copo e ameaçou sangrar a escritora Edla van Steen, pois esta não parava de chamá-la, sussurrando, de meretriz. Caio Fernando Abreu morou um ano na Casa do Sol, fez primorosas entrevistas com a escritora e resenhas sobre seus livros, depois se tornou persona non grata para todo o sempre. Nunca entendi a inimizade deles, nem ele nem ela conseguiam explicar claramente. Ela o acusava de falsidade, perversidade, de escrever uma literatura estúpida. Ele sofria.

O MEDO de AMAR
Adicionar legenda

Certa vez, em um dos nossos passeios no enfeitiçado jardim da Casa do Sol, pouco antes do anoitecer, afetiva e misteriosa, disse-me ter medo de amar. HILDA HILST acreditava que ninguém era feito para um outro: “Essa história de bossa alma gêmea é parvoíce. Coisa de folhetim e filmecos melosos”, afirmou áspera, preferindo acariciar o dorso indomável da fera-solidão. Zombava do amor. Considerada semelhante à francesa Jeanne Moreau, um dos atributos femininos de sucesso dos anos 60, depois de esnobar vasta fieira de pretendentes, escolheu o formoso escultor sem tostão Dante Casarini. Casou-se principalmente pela pressão da mãe conservadora, cansada de vê-la solteira e alvo de línguas ferinas.

Cúmplice, Dante foi um bom companheiro. Anos depois, trocado por um escritor de origem espanhola, José Luís Mora Fuentes, de 17 anos (ela beirava os 40), solidário, continuou a ampará-la. Houve uma época em que ela se apaixonou pelo jornalista e boxeador João Ricardo Barros Penteado e, bem mais adiante, pelo primo Wilson Hilst, vinte anos mais jovem. Ciumento e dominador, ele costumava presenteá-la com flores e chocolates, contudo, sua paranoia renitente acabou por levá-lo a aprisioná-la, durante dias, em um quarto.

Teve uma espécie de obstinação romântica por Júlio de Mesquita Neto, apelidado por ela de Lili e um dos diretores do jornal “Estado de S. Paulo”. Escreveu para ele os extraordinários poemas de amor de “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão” (1974), musicados anos depois por Zeca Baleiro. Ele não aceitava a vida libertária da poeta e evitou a união. Ela acreditava que jamais amaria de corpo e alma. Seu temperamento parecia não compreender tal sentimento, por mais que escrevesse sobre ele. Talvez tenha amado seus cães feios e barulhentos, sua literatura, uísque, cigarro e sua própria figura na flor da juventude. 

A sua narrativa passa do lirismo ao escracho. Intercala prosa poética, teatro e poesia. Apresenta uma forma singular de pontuação. A sintaxe é meio telegráfica. O estilo é totalmente livre. Recorre às suas lembranças ficcionais e faz referências à autores como Ovídio, William Shakespeare, Jorge de Lima, Yukio Mishima, Francis Bacon, Vieira, Oscar Wilde. Seu universo ficcional aponta afinidades principalmente com o de James Joyce. Essa aproximação não é só em relação aos aspectos formais, como a narrativa centrada na consciência da personagem. Ela pode ser constatada também no senso cômico dos personagens, que beira o grotesco, a ironia, a sátira.


Via “Qadós” (1973) como seu melhor livro. Levou um ano escrevendo-o. Doce e generosa, podia ser também rancorosa e infeliz. Com um negativismo intrínseco, culpava a “combustão existencial”. Não acreditava nos caminhos agrestes da literatura brasileira. Esbravejava contra a mediocridade renitente, não apreciando o relato, a história factual. Queixava-se dos editores, “nunca consegui um editor que me amasse, um Jerôme Lindon”. Essa cólera em relação ao mercado editorial, que não distribuía nem divulgava os seus livros, levou-a a criar a falada trilogia erótica.

O medo da demência e do anonimato era o demônio de HILDA HILST. Começou a escrever para se livrar do fantasma da esquizofrenia, desde que seu pai enlouqueceu aos 33 anos. Alto, bonito, intelectual, escrevia poesia e crítica literária, sob o pseudônimo de Luiz Bruma, para um jornal de Jaú. Aos 16 anos, clima ambíguo e nebuloso, beirando o incesto, em visita ao sanatório, apresentou seus primeiros poemas. Ele não os leu. Por causa desse pavor da loucura, fez da palavra um exercício espiritual. Escrevia para não ser consumida de forma descartável. De natureza religiosa, múltipla em fervor místico, em sua metafísica e indagação filosófica. O grotesco, o lúdico e a bandalheira, aliados a erudição e ao experimentalismo da linguagem. Pode ser dito de sua obra o mesmo que José Lins do Rêgo escreveu a propósito da literatura de Lúcio Cardoso: “carne incendiada de pecado”.
nahud e hilda

CARTA a ANTONIO NAHUD

“Você me fala do teu poço, Nahud, baiano bonito, o poço há de ser sempre, as vezes com água mais clarinha, outras vezes com lama, bosta etc. Todos nós que escrevemos somos, queiram os outros ou não, diferentes mesmo, não há jeito. Eu sei que nada tenho a ver com as bestas-feras que habitam o planeta, acho mesmo que somos totalmente diversos, o olho vê mais fundo, a comoção é intensa, maior, fulgurante, tudo nos toca nos comove, nos mata nos aterroriza, o planeta Terra é muito bonito mas ficará amerdalhado totalmente logo mais, tenho profundo desprezo pelos homens políticos de agora de sempre, são todos uns filhos da maior puta, e nós nas mãos deles, cago para todo o Sistema de bosta, pra tudo, não desejo coisas além da solidão muito grande, só aqueles que fazem parte da minha família, isto é os escritores, os de intensidade verdadeira, os que sofrem de piedade e compaixão, as vezes penso que não vou aguentar continuar a existir vendo tanta crueldade, tanto horror. Também meu poço existe, também não tenho nada a ver com cidades, as vezes vou para SP para lançar um livro, como você sabe, chego lá tomo mil porres, ninguém tem nada a dizer, é a mesma baboseira de todos. Nahud, nós todos temos problemas, saiba viver com os seus, te foi dado essa coisa tão difícil que é o ato de escrever, o sentir agudo o talento, você é um escritor e pronto, arranje um trabalho de bosta qualquer, meio período, mude-se para um pequeno lugar, você não é casado, não tem filhos para sustentar, escolha o lugar onde quer morar, arranje umas colaborações em revistas jornais, escolha a tua própria vida, faça a sua própria vida...”

25 de dezembro de 1990

TEXTO INÉDITO de HILDA HILST

“O grande escritor que foi John Cowper Powys (“In Defense of Sensuality”), homem extraordinário e cultíssimo teceu loas à masturbação, e ressaltava a importância da mesma como forma de dominar impulsos perigosos. Pensem na eficácia desse ato supimpa libertando instintos assassinos e sádicos. E hoje então, meu povo, diante da Aids que grassa como guanxuma grama capim, que maravilha seria! Atenção: exibicionistas não! O ato pode ser realizado entre castas paredes, ah! teu corpo nu entre castas paredes, invente, imagine por exemplo um tanque de nenúfares (procure no dicionário), ou um bidê coalhado de maçãs, branco e carmim, teu neurônio ativado relembrando coalhadas e beijos, benditos  instantes entre o teu-eu e o teu-sim. Ah! a derme cravada de desejo! Ternas ou torpes associações, relembranças, tudo tudo menos isso de sair por aí esfolando boi vaca bode cachorro gato e depois criancinhas homens mulheres. Vamos a campanha da mão em concha!”
“A Mão em Concha” (1990)

CORRESPONDÊNCIAS

“Hilda, grande figura:
Conte, conte as coisas que às vezes atrapalham V., se acha que com isso elas se desatrapalharão um pouco. Eu farei o mesmo. Conversaremos muito, e chegaremos a grandes conclusões sobre a vida, que, segundo os últimos autores, não é bem aquela coisa ruim que a gente pensava que fosse - e sim um negócio meio chato, com alguns clarões matutinos: por exemplo, V. e suas cartas.
Se bem que, falando sério, não acredito muito na viabilidade do seu projeto de sermos "muito amigos e muito honestos um para o outro", assim por meio de cartas, e na base de um conhecimento meteórico de uma noite em casa de amigos e de uma conversa de bar. Sinto-me muito literário diante de V., muito defendido pelas minhas barbas brancas (que não aparecem, mas que V. por certo enxerga em mim), e V. por sua vez muito dona de si na sua beleza, na sua mocidade, na sua aisance de jovem que sabe dos seus poderes em face dos homens, e ainda por cima inteligente e ainda por cima poetisa. Não, Hilda, por enquanto o que nós somos um para o outro é obscuro e difícil de explicar, mas desconfio que V. seja ou esteja simplesmente curiosa - afinal, um velho poeta modernista, como é que será por dentro?”

CARLOS DRUMMOND de ANDRADE
6 de novembro de 1950.

“Sinto, Hildinha, a necessidade de penetrar numa outra dimensão, num outro nível de existir. Têm me doído o corpo e suas solicitações. Também não quero negar a carne, sei que se esse corpo nos foi dado é para que o usemos da maneira mais intensa possível, até ultrapassá-lo, até conseguir, através dele, atingir o mais alto. Acontece que, quase sempre, as vontades do corpo são baixas e escuras. Também por causa dessa maldição (?) homossexual, você sabe, os rituais, os bares especializados, essas coisas. É tão difícil. Quando cedo a isso, por desespero, tenho terríveis crises de consciência, depois. Crises que sei inúteis, desgastantes, porque mais dia menos dia voltará a ciranda do sexo. Se fosse possível um relacionamento claro entre duas pessoas, se eu conseguisse encontrar alguém que me completasse, que fosse completado por mim, que me saciasse o corpo para que o espírito pudesse voar. Espero isso, quase sempre sem procurar. Mas quando caio na procura, volto decepcionado, ferido, frustrado, enfraquecido. As pessoas têm medo da entrega. É mais fácil, menos comprometedor, diluir-se na ciranda dos bares, das saunas, do deboche. As pessoas têm medo de se doarem. E seria tão bom, tão melhor. Essa é a minha maior preocupação espiritual, e não tenho conseguido divisar a solução, o equilíbrio. Não quero a prisão da carne, também não quero a sua perdição.  Não quero tornar-me nem amargurado nem debochado. Não sei.”

CAIO FERNANDO ABREU
14 de maio de 1972.


A CASA do SOL



desenho de hilda

janeiro 06, 2019

................................ CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA 02



“Solidão é o modo que o destino encontra para levar o homem a si mesmo.”
HERMANN HESSE
(Calw, Alemanha. 1877 - 1962)

Ilustrações:
ERNST LUDWIG KIRCHNER
(Aschafemburgo, Alemanha. 1880 - 1938)


Durante três meses, em 2005, viajei de trem e carona, sem pouso certo. Semanas na Alemanha, Itália e Áustria, principalmente na Floresta Negra germânica e na Toscana.

Escrevi o que vi, senti e imaginei, resultando no livro inédito CRÔNICAS da FLORESTA NEGRA. Terminei por perdê-lo. Recentemente encontrei uma cópia em uma velha pasta. Uma belíssima surpresa.

São seis crônicas, uma dezena de poemas e um único ensaio: “Investigação de um Poeta Acima de Qualquer Suspeita: Rilke no Castelo de Duíno”. Pretendo publicá-los neste blog.

Confira a segunda narrativa.

A ENCRUZILHADA dos DESTINOS

Nunca fui turista, sou um eterno viajante. O turista não encara a intensidade dos lugares desconhecidos, é demasiado assustador para sua realidade. Ele não está interessado na poesia do cotidiano, na análise delicada dos fenômenos, na beleza secreta do viajar. Circula às pressas, sem entrega, como se estivesse diante de uma série de cartões-postais. Nesta valorosa viagem germânica, aprendi que para superar dificuldades, repelir dores e gozar alegrias, devo continuar cultivando o estado contemplativo. As condições favoráveis para a felicidade são difíceis de alcançar e, uma vez encontradas, diluem-se como miragens num piscar de olhos. Aqui, na Floresta Encantada, observo o mundo da forma e da ausência de forma. Sou um inseto de luz flutuando na escuridão. A visão penetrante vai fundo no fado dos homens e dos bichos, na maneira como percebem a Vida. Um exercício que dissipa a obscuridade, desenvolvendo o auto-conhecimento.

As criaturas deste Rainbow são personagens de uma aventura milenar. Muitos não sabem que existem, outros procuram caminhos para aliviar o vazio. Eles são muitos, de diversas expressões e intenções, gozando uma temporada aparentemente ilimitada. O “Círculo da Comida”, em cujo centro se ergue uma enorme fogueira, é uma encruzilhada concentrando milhares de estranhos, cada um com seu destino único, sentados à espera da ração de frutas, legumes e verduras. O sofrimento humano parece inexistente. Um idoso xamã, lunático, trajado numa minúscula tanga, rodopia, elevando um longo cajado e acompanhado por um fiel pastor-alemão. A cabeça calva coroada de delicadas flores-do-campo, a barba antiga e grisalha, olhos glaucos e pele rígida curtida ao Sol. Um animal raro, um sátiro, o Louco do Tarot apanhando cinzas na fogueira, soprando-as nos nossos rostos, um por um, e gritando: "Love! Love!". Como será o cotidiano desta figura fora daqui? Suporta o caos urbano?

Vivo a beatitude e, na pureza local, faço constantemente exercícios espirituais e poéticos. Sob a influência do misterioso, o poeta cigano divaga em um frenesi longínquo, ciente que o tempo histórico é uma ilusão da consciência; não existe tal cronologia. Seduzido pela paisagem de sonho e a concentração humana, rabisco palavras louvando o fundo do oceano de si mesmo, de nós, de qualquer ser; versos invocando a natureza. A simplicidade, por ventura, favorece o perfume das palavras.

Na obscuridade, sinto o céu de Goethe (Frankfurt am Main, Alemanha. 1749 - 1832), Friedrich Hölderlin (Lauffen, Alemanha. 1770 - 1843) e Thomas Mann (Cidade Livre de Lübeck, Alemanha. 1875 - 1955). O caminho da Via Láctea é o caminho. Ao longe e em volta, montanhas e a Floresta Negra. Existem, e agradam-me à vista, imerso na magia. Andara, Mata Atlântica, Chapada Diamantina e outras formosuras, visíveis e invisíveis, completam-se no meu raciocínio íntimo. São dias em que não preciso de consolo. Nesse conforto, nessa tranquilidade, repouso o espírito. Não pertenço a um lugar determinado, movo-me suave e firme, algumas vezes com a certeza da melancolia, mas nem sempre.

Em Berlim, Colônia ou Munique sangra a ferida dos duros anos da Segunda Guerra, se ajusta contas com o passado de carnificinas e paisagens devastadas. Nas calçadas, tijolos dourados de metal resplandecente exibem nomes, datas de nascimento e desaparecimento - recordam o massacre de 6 milhões de judeus. Adolf Hitler é o símbolo número um da maldade resultante da retórica ditatorial. A Alemanha rendeu-se a 8 de Maio de 1945, findando a guerra na Europa. Passaram-se 60 anos, o mundo deu muitas voltas, mas a II Guerra jamais vai deixar de ser uma infâmia na história recente da humanidade. De onde escrevo, neste lugar de contentamento, ocorreu na época uma terrível batalha resultando em milhares de mortos. A arcaica patifaria humana.

Tive pesadelos bizarros com o holocausto anti-semita e, para a minha agonia, com o nefasto Josef Goebbels, ministro da Propaganda na infâmia hitleriana, que me convidou educadamente para conhecer o bunker do Fuhrer. Noutra noite, sozinho, ouvi uma voz feminina piedosa, clara, sussurando “Viktor! Viktor!”. No dia seguinte encontrei um humilde túmulo, em uma parte obscura da clareira, cuja lápide trazia o ano de 1944 e um nome, Gustav. Seria um jovem soldado nazista? Um ingênuo que não conseguiu regressar à casa da família? Sua casa ruiu enquanto estava no campo de batalha? Não teria mudado o caráter ao ser possuído por um regime de terror e crime? A guerra é um dos piores aspectos da nossa estupidez. Espantoso e pungente refletir sobre a guerra; invasões, deportações, guetos, campos de extermínio; a crise econômica e moral; dificuldades dos sobreviventes em retomarem suas vidas, o desespero e a readaptação dos mutilados; a esperança em dias melhores.

Gosto da Alemanha, da sua gente amável e do silêncio dramático das cidades. Sinto-me em casa, embora sofra com o frio. Entre tantos lugares que vivi ou passei, a Alemanha foi paixão à primeira vista. Desperta-me uma série de identificações. Na Bavária, gritei ao vento: “Onde está, Ludwig II? Em que castelo formoso chora ao ouvir óperas de Wagner?”. Desde adolescente assisto em cinematecas filmes com o selo de qualidade UFA (Universum Film Aktiongesellschaft), um importante estúdio de cinema alemão. Aprendi a amar suas ambiciosas produções pilotadas por diretores como Fritz Lang, Friedrich Wilhelm Murnau, Ernst Lubitsch, Paul Leni. Bem como atores da estirpe de Conrad Veidt, Peter Lorre, Brigitte Helm, Pola Negri, Joseph Schildkraut, Lil Dagover, Rudolf Klein-Rogge, Paul Wegener, Zarah Leander, Werner Krauss.

Tenho uma perene atração por “Dr. Mabuse / Dr. Mabuse der Spieler” (1922), “Metropolis / Idem” (1926) e “M - O Vampiro de Dusseldorf / M” (1931); pelo erotismo da Lola-Lola de Marlene Dietrich, em “O Anjo Azul / Der Blaue Engel” (1930), que marcou época. Adaptado de um romance de Heinrich Mann, o clássico de Josef von Sternberg narra a degradação de um professor (criação magistral de Emil Jannings) apaixonado por uma cantora de cabaré. Jannings ganhou o Oscar de Melhor Ator em 1928 e se tornou um rosto indispensável em muitos filmes de propaganda do III Reich. Ele está inesquecível como o miserável porteiro de "O Último Homem / Der Letzte Mann" (1924) ou o Mefistófeles de "Fausto / Faust" (1926).

A Alemanha sempre lançou e exportou talentos, do corrosivo Billy Wilder ao lendário condutor de melodramas Douglas Sirk, incluindo fotógrafos excepcionais como Eugène Schuftan e Michael Ballhaus. A década de 70 trouxe outra boa fase para o cinema alemão, revelando Wim Wenders, Robert van Ackeren, Ulli Lommel, Volker Schlondorf, entre outros. O mais autoral e incisivo dessa época, Rainer Werner Fassbinder, é autor de maravilhas como “O Casamento de Maria Braun / Die Ehe der Maria Braun” (1978) ou “O Desespero de Veronica Voss / Die Sehnsucht der Veronica Voss” (1981); e por atrizes em estado de graça: Hanna Schygulla, Eva Mattes, Margit Carstensen, Barbara Sukowa etc.

No clarão da tarde, escrevendo e comendo amoras, framboesas e cerejas, recebo o sorriso de um rosto sugerindo um brando contentamento. Vou ao encontro dela, sentando-me ao seu lado. A poeta marroquina Amél ri outra vez. “Sto molto bene. È come un sogno, e adoro il sognos”, diz em italiano. Olhos rasgados, incisivos, faiscante. Eu a conheci numa noite de Lua Nova, dias passados, no “Angel Walk” (O Caminho do Anjo). Uma experiência vasta, perturbadora, sensual. Mais de cinqüenta pessoas, em fila dupla, olhos fechados, acariciam “anjos” que atravessam o túnel carnal. Participei e senti emoções autênticas. “A vida é curta”, garante Amél, sem nenhum motivo aparente. A vida é curta, confirmo. Levanto-me, atravesso a clareira, deixando a encruzilhada, o coração palpitando em triunfo inocente. Caminho pela Floresta com desmedida fé, procurando trilhas do bem e contente por estar só e em paz. Recebo na cara a atmosfera vertiginosa da tarde úmida e pálida. Quem se esconde dentro de mim? Qual é a transcendência?

Alemanha, agosto de 2005

CONFIRA a PRIMEIRA CRÔNICA
“Relâmpagos Rasgando a Noite”