“Perdi o caminho do de dentro de mim mesmo. vou esmaecendo.
girassóis e sombras, ouro e luto, contrastes. (...) entrei no lago Averno. lá
não há pássaros. é a estrada do sem fim o lago Averno. aí uns grandalhões me
sorriram: vai entrar no lago sim. escureceu. vi uma trilha de fogo, e anjos
dourados sobre negros cavalos.”
ESTAR SENDO, TER SIDO
Ilustrações:
MIRA SCHENDEL
(Zurique, Suíça. 1919 - 1988)
A palavra derradeira que ouvi da poeta HILDA HILST soou terrível,
como um tiro: “Judas!”, ofendeu-me, descontrolada. Era o final de um bonito
relacionamento de quase três anos, causado por um modesto ensaio de 14 páginas,
“Hilda Hilst - Inquieta e Atormentada”, sobre sua vida e obra, escrito com a
finalidade de presenteá-la de forma especial no seu aniversário de 62 anos.
Dias antes, enviei cópias do texto a antigos amigos da autora de “A Obscena
Senhora D” (1982), pedindo confirmação a respeito dos fatos abordados. Um deles
(ou mais de um?) aproveitou a situação para cortar a minha cabeça, já que em
todos os reinos existem ciumeiras e intrigas. Afastado da abelha-rainha, não
mais voltei a vê-la. Logo eu, um jovem maluco por ela. Amava passar finais de
semana na acolhedora Casa do Sol, próxima a Campinas.
Entrevistei-a informalmente para divulgar o segundo livro da
trilogia erótica, “Contos D’escárnio – Textos Grotescos”, futura publicação da
Editora Siciliano, onde eu atuava como assessor de comunicação e leitor
crítico. Contou-me o início: escritora desde 1950, em 1969 o crítico literário
Anatol Rosenfeld elogiou publicamente suas peças inéditas, surgindo o deleite.
Por fim, pedi exemplares da sua obra difícil de encontrar. Simpática, enviou-me
o material esgotado em livrarias: “Da Morte Odes Mínimas” (1979), “Cantares de
Perda e Predileção” (1983), “Com Meus Olhos de Cão e Outras Novelas” (1986),
entre outros. Leitura hipnótica, fruição da insensatez.
Um deles, “O Caderno Rosa de Lori Lamby” (1990), muito me
interessou na ocasião. Risível, viciosa e apavorante pequena obra-prima. Relata
com humor o imaginário de uma menina-Lolita de oito anos, sem pudor, que se
corresponde com os homens que favorece sexualmente. Para Eliane Robert Moraes,
este livro depravado “se inscreve numa das mais nobres tradições de literatura
erótica, aquela que, para citar apenas alguns autores do século, passa pela
obra de Guillaume Apollinaire, Pierre Louys e Henry Miller”.
Expressando-se por um tratamento experimental da linguagem, HILDA
HILST escrevia poesia, novelas, crônicas e peças góticas de teatro, tornando-se
um mito maior do que seus livros curtos, estilizados e de pouca repercussão. Encantado
com a voz bonita, articulada e grave, desfiando histórias picantes, eu ria sem
limites com o deboche demolidor da idosa dama desiludida. Conversávamos
fervorosamente sobre extraterrestres, experiências místicas, Deus, poesia,
filmes, atores, cineastas, pinturas etc. Perguntava-me sobre a infância,
impressionada com meu nascimento em uma fazenda de cacau. Muitas vezes eu
cozinhava, preparava chás e lanche, já que a escritora não sabia fritar um ovo.
Nos braços, a levava para dormir, embriagada, além de divulgar sua produção
literária na mídia, dentro de minúsculas possibilidades, e insistir com ela para
que concedesse entrevistas. Num dos melhores momentos, comovido, acompanhei o
nascimento dos versos de “Do Desejo” (1992), profundos como um oceano, que ela
finalizou sem qualquer correção, como nos livros anteriores.
hilda menina |
NINHO de VÍBORAS
Acusado injustamente, o boicote me fez perder um bom emprego e fecharam-se
as portas de diversos conhecidos, escritores e jornalistas. Assim, aprendi de
supetão que o mundo literário é um ninho de víboras, tão selvagem como qualquer
campo de batalha. Qual foi o motivo da censura imperdoável ao tal controverso
ensaio? O que escrevi, a poeta de “Cantares de Perda e de Predileção” (1983)
contava abertamente, encantadora e sarcástica, rodeada de estudantes de letras
ou poetas de todo o Brasil, como uma moderna Sherazade, entre uma dose de
uísque e outra, muitos cigarros, enquanto assistíamos a telenovela das oito, sem
jamais pedir segredo e amparada em uma confiança inabalável no passado
irreverente.
O ponto vulnerável talvez fosse uma vivência relatada oralmente estampada no papel. Por que eu deveria seguir os passos de narradores da
biografia da polêmica escritora, omitindo fatos essenciais e ficando na
exuberância superficial? Eles, quando contam algo incômodo, em carne viva,
entornam mel, praticamente pedindo perdão ao leitor e, principalmente, bajulando
a biografada. É difícil cavar o fosso entre o mito e a realidade. Segundo um dos
personagens de Dostoievski, “um homem saciado não pode compreender um faminto e
nem mesmo um faminto pode compreender um outro”. HILDA HILST nunca se preocupou
em ocultar sua vida privada. Parecia não ser importante para ela.
Na intimidade conheci seus segredos, vontades e pavores, como
inquilino de fim-de-semana na casa herdada de sua mãe no Parque Xangrilá. A
Casa do Sol é um celeiro de energia, fronteira de vários mundos.
Não tinha tapetes no chão, nem cortinas nas janelas. O fungo desenhava mapas
miúdos nas paredes. Floresta majestosa de livros que se erguiam em todos os
cantos: Tchekhov, Balzac, Stendhal, Goethe. Papéis, lápis, canetas
orientais. Uma sala confortável. Amplas janelas que davam para um
pomar.
hilda e lygia fagundes telles |
ALÉM de BONITA, PENSA e ESCREVE
O ensaio percorre labirintos ouvidos, diversas vezes, dos lábios
da madura poeta: o pai, fazendeiro de café e jornalista, Apolônio Almeida Prado
Hilst, tentando seduzi-la em um manicômio; a demência irrecuperável da mãe,
Bedecilda Vaz Cardoso, após encontrar o amante bem mais jovem, um piloto, com
outro homem na sua própria cama; na Livraria Planalto, no centro de São Paulo,
a mocinha saboreando chá quase que diariamente com Oswald de Andrade e sua
turma, e ouvindo deles: “além de bonita, pensa e escreve”; a virgindade perdida
aos 20 anos por livre e espontânea vontade; anos de
futilidade e luxúria, vestida com modelitos Dener, Casa Vogue ou Madame
Rosita; namorados ricos que ofereciam joias, peles, viagens para o exterior
e até um Mercedes-Benz; musa de Carlos Drummond e Vinícius de Moraes;
os pileques e farras no seu sofisticado apartamento na Alameda
Santos, na grande São Paulo, decorado com peças antigas, compondo um cenário a
Luis XVI, em festa permanente; penteava-se com Jambert; perfume L’expression de
Jacques Fath; casacos de vison, Mercedes Benz à disposição, rodeada de prata e champanhe francês com uma turma de famosos que incluía Jô Soares,
Mira Schendel, Cassiano Gabus Mendes, Renata Pallotini, Bráulio Pedroso, Massao
Ohno, Lupe Cotrim, Raul Cortez, Eva Wilma, Cacilda Becker, entre outros; amantes
descartáveis recolhidos em bares, restaurantes e rodovias; horror a mulheres e
crianças, as quais chamava de “crionças”, e a levou a diversos abortos;
dener e hilda |
Uma de suas recordações antológicas tinha como cenário o ano de
1957. A alegoria da rica em Paris, onde passou seis meses. Cassinos, festas,
boates, shows. Marlon Brando filmando na capital francesa um futuro fiasco
chamado “Os Deuses Vencidos / The Young Lions”, de Edward Dmytryk. HILDA HILST,
tiara de brilhantes na testa, vestida por Christian Dior, muitos
martinis na cabeça, subornou o porteiro do Hotel Ritz, batendo à porta do
apartamento do astro. Disse: “Monsieur Brando, sou uma jornalista brasileira e
quero passar a noite com você. Vim de longe para isso”. A beleza da jovem não o
comoveu. Aos 33 anos, oxigenado, baixo, de foulard
e chambre de seda cor de vinho, nada do instinto selvagem, rebelde, magnético.
Deixou à vista o ator francês Christian Marquand, nu, deitado na cama de casal.
Seria o parceiro do sexo oral fotografado e exibido nos tribunais por uma das
esposas do astro, Anna Kashfi. E assim aconteceu a primeira derrota amorosa da poeta.
Mesmo descartado, jamais deixei de amá-la, guardando na memória
sua beleza, inteligência, cultura e talento. Foi uma das criaturas mais
admiráveis e lúcidas que conheci. Na semana
da sua morte, morando na Espanha, realizei um ritual em sua homenagem, em pleno
inverno catalão nas montanhas dos Pirineus, lendo seus poetas mais amados:
Holderlin, John Donne, Rainer Maria Rilke, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, T.
S. Elliot, René Char, Saint John Perse e Federico Garcia Lorca. HILDA HILST morreu
solitária, depois de longos meses de enfermidade, com falência múltipla dos
órgãos, em 3 de fevereiro de 2004, às 3 da manhã, magrinha, alojada numa
aparência de 90 anos, ela que foi uma das mulheres mais lindas da sua época.
Parecida com a atriz sueca Ingrid Bergman, namorou astros de
Hollywood (Tony Curtis, Jeff Chandler e Dean Martin) e o milionário Howard
Hughes (do filme de Martin Scorsese, “O Aviador / The Aviator”, 2004); recusou
pedido de casamento de Vinícius de Moraes e o assédio de Drummond, que lhe dedicava poesias eróticas e a seguia pelas ruas do
Rio de Janeiro. “Lygia (Fagundes Telles) apresentou-me a Drummond, e entre nós
havia comoção”, relembrava. “Fui lindíssima, sofisticada e, inteligente. Nunca
uma dessas dondocas sem nada no crânio”, garantia. Acreditava não ter nascido
para a felicidade e o matrimônio.
AVERSÃO ao MOVIMENTO CONCRETISTA
Levantava por volta das dez horas, passava óleo de amêndoa na pele
e caminhava lentamente até o canil, alimentando 15 cães vira-latas. Depois
iniciava o trabalho, em uma máquina Olivetti portátil. Vivia com o salário de artista residente da Universidade de Campinas, que terminaria por
ser cortado. Aproximamo-nos profundamente. Ouvíamos sinfonias de Gustav Mahler.
Leituras de poesias. Entre o lirismo e o escracho, esbravejava contra a
mediocridade, não apreciando o relato com começo, meio e fim.
Tinha aversão ao concretismo. “A mídia cultua os irmãos Campos.
São apenas uns pedantes”, afirmava. Duvidava da consagração acadêmica, no exterior,
de Machado de Assis. “É mentira. Machado só é lembrado no Brasil porque faz
parte do currículo escolar, caso contrário seria esquecido e não faria falta”,
afirmava. Egocêntrica e hipocondríaca, tomava vitaminas em excesso por uma
simples gripe. Odiava ser chamada de poetisa, dizia que diminuía a grandeza do
ofício, e renegava quase todos os escritores e poetas brasileiros, apreciando somente
Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Jorge de Lima.
Mesmo com sua obra completa (40 livros em 19 volumes) sendo publicadas
pela Editora Globo, e arquivo no Cedae da Unicamp, disponível para pesquisas, a
escritora lutava contra o esquecimento - o desdém do público e da crítica. De
ascendência ibérica do lado da mãe e franco-alemã do lado do pai (os Hilst
vieram da Alsácia, região entre a França e a Alemanha), nasceu em Jaú, interior
de São Paulo, em 21 de abril de 1930, e estudou Direito na Faculdade do Largo
do São Francisco, sem nunca ter exercido a profissão. Estreou em 1950, com “Presságio”. Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, prosa e teatro. Lia em francês, inglês e espanhol, mas não falava
nenhum idioma.
De rara beleza, comportara-se na juventude de maneira avançada,
numa desregrada vida boêmia, escandalizando a sociedade paulista e despertando
paixões sem futuro. Em 1966, depois da leitura de “Cartas a El Greco / Raport
Catre El Greco”, última obra do grego Nikos Kazantzakis, escrita em 1956, resolveu
abandonar o mundano, procurando a cintilância do invisível. Mudou-se para a
Casa do Sol, transformando radicalmente seu cotidiano, enxergando entidades e tendo
vivências fora do corpo. O exílio voluntário pouco adiantou. Jornalistas,
diretores teatrais, professores universitários, místicos, atores, escritores e
nomes notórios procuravam por ela. A caixa postal estava sempre recheada.
Gentilíssima, hospedava muitos deles, mas jamais incentiva carreiras literárias ou
respondia cartas. Não oferecia amor, mas a análise, a gênese, dialética e
perspectivas.
anotações de hilda |
Quando não estava enfastiada, em noites de finíssimo timing cômico, protegida por ávidos
adoradores que cortejavam o tom da sua graça, ela contava e recontava o passado
frenético, enquanto grilos cantavam no jardim, pássaros noturnos varavam a
escuridão e sombras macabras, quase vivas, sugeriam terror. Ela amava ervas,
águas, bichos, insetos, o oculto. Sabendo que o homem moderno é um encurralado,
consultava frequentemente o “I Ching”, os olhos expressando magnetismo e
tensão. Compromissada com o desconhecido, envolvida em presságios e
premonições, fazia viagens astrais e prognósticos, via bolas douradas no
infinito e nebulosos vultos masculinos, de lábios violáceos, em trajes de
época.
Após pesquisar o trabalho desenvolvido pelo pintor sueco Friedrich Jurgenson e mais tarde pelo Instituto Max Planck, de Munique, HILDA HILST experimentou gravar vozes do além. Anunciou sem calafrios que Deus não é onipotente, estaria condenado à solidão. Como a liturgia de secular missa barroca, lia aproximadamente oito horas por dia, seja em português, inglês, espanhol ou francês. Tinha 1,62 de altura, medo de avião, não dirigia automóvel, preferia a cor azul-turquesa. Desiludida, franca, arguta e amável, cultuava um humor impagável e uma memória imutável de emoções por atacado: descrevia com perfeição a aura doentia do escritor mineiro Lúcio Cardoso, percebida em um encontro três décadas antes.
À PROCURA de DEUS
Conheci HILDA HILST meses antes da publicação de “Contos
D'Escárnio / Textos Grotescos” (1990). Na ocasião, ela era mais comentada por
uma espécie de anedotário do que pela leitura de seus escritos. Chamada de
louca, visionária, bruxa, cortesã e até de porca histérica em reportagem do
jornal francês “Libération”. Porém, quisessem ou não, já era um dos pilares da
literatura brasileira. Sua vasta obra é densa, marcada pela
busca incessante da individualidade e pela ingratidão de um deus não-religioso.
Hermética, vasculhava uma realidade além do visível, do palpável,
do pensamento lógico. Utilizava a linguagem vigorosamente, como meio de
desestruturação, reformulação e catarse. “Existe um grande preconceito contra a
mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência
muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles
detestam e te cortam. Você tem de ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir
na cara”, dizia. Entretanto, exagerava. Bem-sucedida ainda em vida, comentada,
estudada, elogiada. Pouco lida, evidente. O crítico literário Leo Gilson Ribeiro disse certa vez sobre ela: “o maior escritor
vivo em língua portuguesa”.
nahud, sérgio, hilda e aldo |
O MEDO de AMAR
Adicionar legenda |
Cúmplice, Dante foi um bom companheiro. Anos depois, trocado por um
escritor de origem espanhola, José Luís Mora Fuentes, de 17 anos (ela beirava
os 40), solidário, continuou a ampará-la. Houve uma época em que ela se
apaixonou pelo jornalista e boxeador João Ricardo Barros Penteado e, bem mais
adiante, pelo primo Wilson Hilst, vinte anos mais jovem. Ciumento e dominador, ele
costumava presenteá-la com flores e chocolates, contudo, sua paranoia renitente
acabou por levá-lo a aprisioná-la, durante dias, em um quarto.
Teve uma espécie de obstinação romântica por Júlio de Mesquita
Neto, apelidado por ela de Lili e um dos diretores do jornal “Estado de S.
Paulo”. Escreveu para ele os extraordinários poemas de amor de “Júbilo, Memória
e Noviciado da Paixão” (1974), musicados anos depois por Zeca Baleiro. Ele não
aceitava a vida libertária da poeta e evitou a união. Ela acreditava que jamais
amaria. Seu temperamento não compreendia tal
sentimento, por mais que escrevesse sobre ele. Talvez tenha amado seus cães
feios e barulhentos, sua literatura, uísque, cigarro, sua figura na
flor da juventude.
A sua narrativa passa do lirismo ao escracho. Intercala prosa poética,
teatro e poesia. Apresenta uma forma singular de pontuação. A sintaxe é meio
telegráfica. O estilo é totalmente livre. Recorre às suas lembranças ficcionais
e faz referências à autores como Ovídio, William Shakespeare, Jorge de Lima, Yukio Mishima,
Francis Bacon, Vieira, Oscar Wilde. Seu universo ficcional aponta afinidades
principalmente com o de James Joyce. Essa aproximação não é só em relação aos
aspectos formais, como a narrativa centrada na consciência. Ela
pode ser constatada no senso cômico, que beira o
grotesco, a sátira.
Via “Qadós” (1973) como seu melhor livro. Levou um ano escrevendo-o.
Doce e generosa, podia ser também rancorosa e infeliz. Com um negativismo
intrínseco, culpava a “combustão existencial”. Não acreditava nos caminhos
agrestes da literatura brasileira. Esbravejava contra a mediocridade renitente,
não apreciando o relato, a história factual. Queixava-se dos editores, “nunca
consegui um editor que me amasse, um Jerôme Lindon”. Essa cólera em relação ao
mercado editorial, que não distribuía nem divulgava os seus livros, levou-a a
criar a falada trilogia erótica.
O medo da demência e do anonimato era o demônio de HILDA HILST.
Começou a escrever para se livrar do fantasma da esquizofrenia, desde que seu pai enlouqueceu
aos 33 anos. Alto, bonito, intelectual, escrevia poesia e crítica literária,
sob o pseudônimo de Luiz Bruma, para um jornal de Jaú. Aos 16 anos, clima
ambíguo e nebuloso, beirando o incesto, em visita ao sanatório, apresentou seus
primeiros poemas. Ele não os leu. Por causa desse pavor da loucura, fez da
palavra um exercício espiritual. Escrevia
para não ser consumida de forma descartável. De natureza múltipla em
fervor místico e indagação filosófica. O lúdico
e a bandalheira, aliados a erudição e ao experimentalismo. Pode ser dito de sua obra o mesmo que José Lins do Rêgo escreveu a propósito da literatura de
Lúcio Cardoso: “carne incendiada de pecado”.
CARTA a ANTONIO NAHUD
“Você me fala do teu poço, Nahud, baiano bonito, o poço há de ser
sempre, as vezes com água mais clarinha, outras vezes com lama, bosta etc.
Todos nós que escrevemos somos, queiram os outros ou não, diferentes mesmo, não
há jeito. Eu sei que nada tenho a ver com as bestas-feras que habitam o
planeta, acho mesmo que somos totalmente diversos, o olho vê mais fundo, a
comoção é intensa, maior, fulgurante, tudo nos toca nos comove, nos mata nos
aterroriza, o planeta Terra é muito bonito mas ficará amerdalhado totalmente
logo mais, tenho profundo desprezo pelos homens políticos de agora de sempre,
são todos uns filhos da maior puta, e nós nas mãos deles, cago para todo o
Sistema de bosta, pra tudo, não desejo coisas além da solidão muito grande, só
aqueles que fazem parte da minha família, isto é os escritores, os de
intensidade verdadeira, os que sofrem de piedade e compaixão, as vezes penso
que não vou aguentar continuar a existir vendo tanta crueldade, tanto horror.
Também meu poço existe, também não tenho nada a ver com cidades, as vezes vou
para SP para lançar um livro, como você sabe, chego lá tomo mil porres, ninguém
tem nada a dizer, é a mesma baboseira de todos. Nahud, nós todos temos
problemas, saiba viver com os seus, te foi dado essa coisa tão difícil que é o
ato de escrever, o sentir agudo o talento, você é um escritor e pronto, arranje
um trabalho de bosta qualquer, meio período, mude-se para um pequeno lugar,
você não é casado, não tem filhos para sustentar, escolha o lugar onde quer
morar, arranje umas colaborações em revistas jornais, faça a sua própria vida...”
25 de dezembro de 1990
TEXTO INÉDITO de HILDA HILST
“O grande escritor que foi John Cowper Powys (“In Defense of
Sensuality”), homem extraordinário e cultíssimo teceu loas à masturbação, e
ressaltava a importância da mesma como forma de dominar impulsos perigosos.
Pensem na eficácia desse ato supimpa libertando instintos assassinos e sádicos.
E hoje então, meu povo, diante da Aids que grassa como guanxuma grama capim,
que maravilha seria! Atenção: exibicionistas não! O ato pode ser realizado
entre castas paredes, ah! teu corpo nu entre castas paredes, invente, imagine
por exemplo um tanque de nenúfares (procure no dicionário), ou um bidê coalhado
de maçãs, branco e carmim, teu neurônio ativado relembrando coalhadas e beijos,
benditos instantes entre o teu-eu e o
teu-sim. Ah! a derme cravada de desejo! Ternas ou torpes associações,
relembranças, tudo tudo menos isso de sair por aí esfolando boi vaca bode
cachorro gato e depois criancinhas homens mulheres. Vamos a campanha da mão em
concha!”
“A Mão em Concha” (1990)
CORRESPONDÊNCIAS
“Hilda, grande figura:
Conte, conte as coisas que às vezes atrapalham V., se acha que com
isso elas se desatrapalharão um pouco. Eu farei o mesmo. Conversaremos muito, e
chegaremos a grandes conclusões sobre a vida, que, segundo os últimos autores,
não é bem aquela coisa ruim que a gente pensava que fosse - e sim um negócio
meio chato, com alguns clarões matutinos: por exemplo, V. e suas cartas.
Se bem que, falando sério, não acredito muito na viabilidade do
seu projeto de sermos "muito amigos e muito honestos um para o
outro", assim por meio de cartas, e na base de um conhecimento meteórico
de uma noite em casa de amigos e de uma conversa de bar. Sinto-me muito
literário diante de V., muito defendido pelas minhas barbas brancas (que não
aparecem, mas que V. por certo enxerga em mim), e V. por sua vez muito dona de
si na sua beleza, na sua mocidade, na sua aisance de jovem que sabe dos seus
poderes em face dos homens, e ainda por cima inteligente e ainda por cima
poetisa. Não, Hilda, por enquanto o que nós somos um para o outro é obscuro e
difícil de explicar, mas desconfio que V. seja ou esteja simplesmente curiosa -
afinal, um velho poeta modernista, como é que será por dentro?”
CARLOS DRUMMOND de ANDRADE
6 de novembro de 1950.
“Sinto, Hildinha, a necessidade de penetrar numa outra dimensão,
num outro nível de existir. Têm me doído o corpo e suas solicitações. Também
não quero negar a carne, sei que se esse corpo nos foi dado é para que o usemos
da maneira mais intensa possível, até ultrapassá-lo, até conseguir, através
dele, atingir o mais alto. Acontece que, quase sempre, as vontades do corpo são
baixas e escuras. Também por causa dessa maldição (?) homossexual, você sabe,
os rituais, os bares especializados, essas coisas. É tão difícil. Quando cedo a
isso, por desespero, tenho terríveis crises de consciência, depois. Crises que
sei inúteis, desgastantes, porque mais dia menos dia voltará a ciranda do sexo.
Se fosse possível um relacionamento claro entre duas pessoas, se eu conseguisse
encontrar alguém que me completasse, que fosse completado por mim, que me
saciasse o corpo para que o espírito pudesse voar. Espero isso, quase sempre
sem procurar. Mas quando caio na procura, volto decepcionado, ferido,
frustrado, enfraquecido. As pessoas têm medo da entrega. É mais fácil, menos
comprometedor, diluir-se na ciranda dos bares, das saunas, do deboche. As
pessoas têm medo de se doarem. E seria tão bom, tão melhor. Essa é a minha
maior preocupação espiritual, e não tenho conseguido divisar a solução, o
equilíbrio. Não quero a prisão da carne, também não quero a sua perdição. Não quero tornar-me nem amargurado nem
debochado. Não sei.”
CAIO FERNANDO ABREU
14 de maio de 1972.
Um comentário:
Obrigado
lindo texto
maravilhosa hilda
perturbadora hilst
Postar um comentário