abril 19, 2015

........................................ CARMEN – O DIABO FEITO MULHER



Antonio Nahud. Cultural - jornal A Tarde (BA) 



Ilustrações:
ALASTAIR (BARÃO HANS HENNING VOIGT)


Nunca houve uma mulher na literatura como CARMEN. Nem a sanguinária Lady Macbeth, a insatisfeita Emma Bovary, a apaixonada Anna Karenina ou a ambígua Capitu, entre outras ilustres celebridades retratadas em dezenas de clássicos, superam seu magnetismo enigmático e erótico. Das páginas do francês Prosper Mérimée ela saltou para a ópera, balé flamenco, artes plásticas, poesia e mais de meia centena de adaptações cinematográficas. A beleza selvagem da cigana andaluza inspirou atrizes, divas eruditas e bailarinas lendárias como Pola Negri, Rita Hayworth, Dolores Del Rio, Sarita Montiel, Viviane Romance, Dorothy Dandridge, Maria Callas, Teresa Berganza, Victoria de los Ángeles, Alicia Alonso e Maia Plisetskaya, entre outras. 

Símbolo da mulher indomável, de espírito rebelde e valente, que cultua a liberdade pessoal em uma sociedade em que o dinheiro e a posição social são as preocupações mais importantes, CARMEN representa o mito da mulher fatal por excelência, uma nova Pandora, dotada de abundantes dons espirituais e de impressionante sensualidade, porém mentirosa, perversa, cruel, vingativa, mas também carismática, alegre e generosa. Gozando de notoriedade, pode ser comparada com outras fêmeas voluptuosas que aparecem em muitas culturas: Salomé, Judith, Lilith, Kitsune, são exemplos que ilustram a homenagem que a tradição popular faz a este personagem conquistador. No relato enfeitiçado de Don José, ela o seduz e ele não pode viver sem sua presença, repetindo várias vezes que ela é o “diabo”. O leitor pouco a pouco conhece a condição da protagonista de prostituta, ladra, instigadora ao crime, maléfica, etc., e, ainda assim, como José, sente-se atraído por ela, por sua força nascida do eterno feminino, do encanto obscuro:

Era una belleza extraña y salvaje, un rostro que al pronto extrañaba, pero no se podía olvidar. Sobre todo, los ojos tenían una expresión voluptuosa y feroz a la vez que no he encontrado después en ninguna mirada humana. Ojo de gitano, ojo de lobo”.

MÉRIMÉE: UMA VOCAÇÃO ESPANHOLA


O criador de Carmen, o historiador e escritor Prosper Mérimée (1803-1870), nasceu em Paris, pertencendo a geração romântica. Tinha em Stendhal o seu melhor amigo, unidos por afinidades como o ceticismo religioso, a sensualidade e também a atração pela Espanha. Aos 21 anos, publica em um jornal quatro artigos sobre a arte dramática espanhola e em 1830 faz sua primeira viagem ao país que tanto o impressiona, admirando a Andaluzia, a formosura das mulheres, o vinho de Jerez, as touradas e a obra de Cervantes. Faz amizade com Doña Manuela, condessa de Montijo, e suas filhas, Paca (futura duquesa de Alba) e Eugenia (futura imperatriz dos franceses). A condessa, confidente de toda uma vida, foi de valiosa ajuda, sobretudo para a preparação de algumas obras de Mérimée, facilitando pesquisa e estadia - em seus palácios de Carabanchel e Madri -, e o recomendando as suas amizades. Ela narrou casos que impressionaram o escritor, como o do oficial que matou a amante, uma bailarina, por ciúmes, ou do problema familiar criado por seu cunhado ao se apaixonar por uma cigana. Ambas as notícias constituíram, fundidas, o embrião de “Carmen”

gustave doré
Em 1840, Merimée publica “Colomba”, inspirada novela sobre uma vingança familiar com outro personagem feminino cruel da ampla galeria misógina do autor. Mas a Espanha não se afasta do seu pensamento: faz uma segunda viagem ao país, dez anos depois da primeira. Em 1844, torna-se membro da Academia Francesa, e no ano seguinte publica a irresistível novela “Carmen”, na Revue des Deux Mondes. Numa carta diz que a escreveu em oito dias, depois de imaginá-la durante quinze anos. A obra passou quase despercebida, sem grande buchicho, numa época em que a França estava acostumada a receber bailarinos flamencos e a leituras com o fértil país vizinho como pano de fundo - no mesmo ano da publicação desta novela, surgiu uma nova tradução do “Quixote” e Théophile Gauthier lançou “Poésies Nouvelles”, que inclui “Espanha”. Prosper Mérimée faz a última viagem a Espanha em 1863. Mesmo com graves problemas de saúde, nunca deixou de escrever, e uma das suas obras-primas pertence ao gênero fantástico, escrita no final da sua intensa vida, “Lokis” (1866), sobre um homem-urso. No ano seguinte a sua morte, a comuna revolucionária queima sua casa em Paris, e no incêndio desaparecem o arquivo e documentos valiosos do escritor. Embora com uma média de duas edições anuais desde o lançamento, “Carmen” só seria um fenômeno popular ao pegar carona no êxito internacional da ópera de Bizet, uma adaptação da novela estreada em Paris no ano de 1875. 

A ORIGEM DE CARMEN


Em “Cartas de Espanha”, do próprio Mérimée, ele revela que o nome da protagonista surgiu de uma jovem, Carmencita, a que faz menção na quarta carta (“As Bruxas Espanholas”), que lhe serviu comida em uma venda de Murviedro (antigo nome de Sagunto, Valência); era cigana, prostituta, jogadora de cartas de adivinhação e de rara beleza. Nascia CARMEN, pomba-gira de carne-e-osso vivendo a temática tradicional do amor fatal, que originou obras literárias tão famosas e excepcionais como “Romeu e Julieta” (1595) ou “Manon Lescaut” (1731), e renovando o mito da fêmea nefasta. Quando ela é apresentada no capítulo II, há uma clara alusão ao mito de Vênus, deusa do amor, polígama, saindo das águas:

gustave doré
“Una tarde, a la hora en que no se ve ya nada, estaba yo fumando apoyado en el pretil del paseo, cuando una mujer coronó la escalera que conduce al río y vino a sentarse cerca de mí. Tenía en el pelo un gran ramo de jazmín, cuyos pétalos exhalan de noche un olor embriagador. Estaba vestida con sencillez, quizá pobremente, toda de negro, como la mayor parte de las modistillas al anochecer. Las mujeres de buen tono no van de negro más que por la mañana; por la noche, se visten a la francesa. Al llegar cerca de mí, la bañista dejó deslizarse sobre los hombros la mantilla que le cubría la cabeza, y en la obscura claridad que cae de las estrellas me parcaté de que era menuda, joven, bien proporcionada, y que tenía los ojos muy grandes”

CARMEN significa fórmula mágica em latim; seu significado medieval, poema; na tradução francesa, charme, agrado, encanto. Tudo isso pode ser aplicado simbologicamente ao personagem, que mesmo importante, complexo, e dando título a obra, em nenhum momento o autor revela os sentimentos mais íntimos, pensamentos, convicções.

ESTRUTURA NARRATIVA


A história tem como cenário a Andaluzia, resultado das vivências da primeira viagem de Prosper Mérimée. Linguagem sóbria, sintética, longe do melodrama, justamente ao contrário da ópera que triunfou pela expressividade e ardor amoroso da música de Bizet (como não se emocionar com “L`amour est un Oiseau Rebelle”?), porém pecando no libreto simplório de Ludovic Halévy e Henry Meilhac, que se empenha em converter Carmen em um protótipo amável, vítima de superstições e da sociedade da época, porém definitivamente uma mulher de “bom coração”. Mérimée evita derramamentos sentimentais. Nos dois primeiros capítulos de “Carmen”, o escritor francês usa aparentemente o autobiográfico, corriqueiro na literatura de viagens, apresentando-se como personagem-narrador: o viajante-arqueólogo figurando nos feitos contados (o que dá um tom de autenticidade). 

Escrita rápida, algo seca, dominada por frases curtas e diálogos nervosos. Este estilo frio deu lugar a momentos de formidável emoção. A obra, marcada por horrores, passa uma cumplicidade que beira a compaixão. As cores são importantes para o argumento, e algumas delas se repetem: CARMEN é o vermelho e o negro, José o amarelo. Traduzida ao espanhol em 1891, quarenta e seis anos após o lançamento na França, o pequeno romance foi mal recebida pelos espanhóis, considerado insultante ao tratar de seres marginalizados - o que não é verdade, os costumes relatados são fiéis, frutos de rigorosa pesquisa, observação e conhecimento. Futuramente teria o valor reconhecido e Mérimée, como em tantos outros países, seria lembrado principalmente por esta criação primorosa.

CONTEÚDO TRÁGICO


A curta novela é uma história de amor e sangue, narrando a confissão de um condenado à morte, Don José, um ex-sargento que se torna assassino, fugitivo, contrabandista e bandido temido, tudo pelo amor de uma mulher frívola e inconstante. Ele conta como CARMEN foi responsável por sua desgraça, arrastando-o ao mal como autoridade diabólica. Militar, desertou por ela, e finalmente a matou, possuído por ciúmes. O autor, Prosper Mérimée, inventa haver conhecido ao bandido e a cigana. Novela de paixão, termina tragicamente; de uma fatalidade guiada pelo destino, junto a elementos como o diabólico e a magia; o contrabando como forma de contornar a pobreza; a conivência dos poderosos com facínoras renegados; a fama dos toureiros, autênticos ídolos que, pela arte e audácia, arrastam, atrás de si, verdadeiras multidões. Théophile Gauthier, Marcel Proust, Anatole France, André Gide e muitos outros escritores desenvolveram o tema. Em “Poema del Cante Jondo”, Federico García Lorca fala de uma cigana velha, porém ainda perigosa:

La Carmen está bailando / por las calles de Sevilla. / Tiene blancos los cabellos / y brillantes las pupilas. / ¡Niñas, / corred las cortinas! (...)”.

No Brasil, Glória Perez renovou o mito em uma telenovela famosa de 1987, na Rede Manchete, protagonizada por Lucélia Santos em estado de graça; o polêmico Gerald Thomas criou a sua própria mulher fatal em “Carmen com Filtro”, de 1986, com outra atriz admirável, Bete Coelho. Gustave Doré e Pablo Picasso (38 gravuras publicadas em 1949 em uma edição de 320 exemplares) ilustraram as aventuras da bela cigana. CARMEN, indomável, usa seus atributos para subjugar aos machos que atravessam seu caminho, mantendo-se fiel a sua raça e ao destino, dona do seu corpo, motivo da sua própria morte nas mãos de um homem que tem por ela uma paixão obsessiva, exclusiva. Este, o vasco José Lizarrabengoa, uma das vítimas da sua sedução, um escravo do desejo, que tem todas as facetas de um apaixonado patético, sobrevive como uma criação comovente, vibrante, forte, que enamora o leitor.

PROJEÇÃO DO MITO


Em 1921, a mítica atriz catalã Margarita Xirgu (que montaria com êxito nos anos seguintes obras teatrais de Lorca), estreia em Sevilha um drama espanhol inspirado em “Carmen”. O inconformista Peter Brook monta a versão operística em 1981, numa densa concepção intimista intitulada “A Tragédia de Carmen”. Carlos Saura e Antonio Gades, nos anos 1980, apresentam com sucesso em vários países a Carmen flamenca, ou seja, canto e dança ciganos. O espetáculo geraria um dos melhores filmes de Saura. A novela, usada em mais de cinquenta adaptações cinematográficas, algumas delas com sucesso de crítica e de público, esteve no imaginário de cineastas de prestígio: Cecil B. DeMille (“Carmen”, 1915), Ernest Lubitsch (“Amor Cigano”, 1918), Jacques Feyder (“Carmen”, 1926), Raoul Walsh ("Os Amores de Carmen", 1927), Charles Vidor (“Os Amores de Carmen”, 1948), Otto Preminger (“Carmen Jones”, 1956), Jean-Luc Godard (“Prenome Carmen”, 1983), Francesco Rosi (“Carmen”, 1984), etc. A mais recente “Carmen” das telas, de 2003, do espanhol Vicente Aranda, protagonizada por Paz Vega e Leonardo Sbaraghlia, é uma das mais fiéis e cativantes em seu refinado erotismo e cenas do cotidiano típico de um Goya.


Obcecado pelo livro, escrevo “Homem sem Caminho”, versão livre, transportada aos tempos atuais, com imigrantes marroquinos morrendo no Estreito de Gibraltar e brasileiros tentando melhores oportunidades na Europa. A minha CARMEN é um marginal cigano, o objeto erótico Gorka, e a própria Pomba-Gira; José é Torquato Lubião, um músico sem destino e sem dinheiro. O cenário continua sendo a Andaluzia, plena de contrastes, onde a presença dos ciganos marca o caráter do povo, excessivo na expressão dos sentimentos. Talvez seja a primeira interpretação homossexual de “Carmen” (“Carmen, Carmen”, de Antonio Gala, 1976, não chega a tanto). Grande obra literária, “Carmen” de Prosper Merimée é explosão de sensações. Não há como não se sentir atraído por essa mulher que preferiu morrer a deixar de ser livre , rainha do seu desejo, da sua vontade. Uma temática atual. Não é à toa que Nietzsche escreveu sobre o livro: “Para mim, esta obra merece uma viagem a Espanha”. Com certeza.

OBRAS CONSULTADAS

PROSA / POESIA


prosper mérimée
GALA, Antonio, “Carmen, Carmen”, 1976;
GAUTHIER, Théophile, “Poemas Completos”;
GAUTHIER, Théophile, “Voyage en Espagne”;
JIMÉNEZ, Luis López e ESTEVE, Luis-Eduardo López, “Merimée: Una Vocación Española (Resumen Biográfico)
, 1989;

LORCA, Federíco García,“Poema del Cante Jondo”, 1921;
LOUYS, Pierre, “La Femme et la Pantin”, 1898;
MAINGUENEAU, Dominique, “Carmen. Les Recines d'un Mythe”, 1984;
MERIMÉE, Prosper, “Viagem a Espanha”;
MERIMÉE, Prosper, “Carmen”, 1845;
STEINER, George, prefácio para “Carmen y Otros Cuentos”, 1981;

MÚSICA

maria callas como carmen
BIZET. George, MEILHAC. H. e HALÉVY, L., “Carmen”, 1875, cantada por Maria Callas, Jessie Norman, Teresa Berganza e Victoria de los Ángeles;
QUINTERO, LEÒN e QUIROGA, “Carmen de España”, 1953, cantada por Carmen Sevilla;

CINEMA

ARANDA, Vicente,“Carmen”, 2003, com Paz Vega;
BUÑUEL, Luis, “Esse Obscuro Objeto do Desejo”, 1977, com Angela Molina e Carole Bouquet;
CHRISTIAN-JACQUE, “Carmen”, 1942, com Viviane Romance;
DE MILLE, Cecil B., “Carmen”, 1915, com Geraldine Farrar;
DEMICHELI, Tulio, “Carmen – O Diabo Feito Mulher”, 1959, com Sarita Montiel;
FEYDER, Jacques, “Carmen”, 1926, com Raquel Meller:
GODARD, Jean-Luc, “Prénom, Carmen”, 1983, com Maruschka Detmers;
LUBITSCH, Ernest, “Amor Cigano”, 1918, com Pola Negri;
PREMINGER, Otto, “Carmen Jones”, 1954, com Dorothy Dandridge,
ROSSI, Francesco, “Carmen”, com Julie Migenes-Johnson;
SAURA, Carlos, “Carmen”, 1983, com Laura del Sol;
VIDOR, Charles, “Os Amores de Carmen”, 1948, com Rita Hayworth;

WALSH, RAOUL. Amores de Carmen, 1927, com Dolores del Rio;

BANDA DESENHADA




TELEVISÃO

PEREZ, Glória, “Carmen”, com Lucélia Santos;

ARTES PLÁSTICAS

DORÉ, Gustave, ilustrações para “L`Espagne”;
MERIMÉE, Prosper, “Retrato de Cigana”, aquarela;
PICASSO, Pablo, ilustrações, 1949 e 1967;

TEATRO

GARCIA, Nicole, leitura de “Carmen”, em cassete, 1987;
THOMAS, Gerald, “Carmen com Filtro”, 1986.

 



abril 09, 2015

.......................... JOSÉ MAURO de VASCONCELOS: o MODELO



Texto: 
DIOGENES da CUNHA LIMA

Ilustrações:
DAVID HOCKNEY


JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS (1920-1984) teve vida e movimento pitorescos muito mais intensos que a sua vida literária.
Nenhum dos seus livros é mais autobiográfico que Doidão, 1963, relato de sua juventude em Natal. Vida e obra se confundem.
De pai vigia e mãe lavadeira, Zé Mauro nasceu em Bangu, Rio de Janeiro. Morto o pai, veio morar aqui, com o tio, o médico Ricardo Paes Barreto, filho de Juvino Barreto.
Em suas próprias palavras, quando rapaz, tinha um “corpo bonito, esguio, forte, dourado”.
Estudou no Colégio Marista, dirigido pelo irmão José. No romance, os irmãos maristas dizem que  Geografia é matéria de vadio, de vagabundo. E Zé, descontente, questiona os amigos, não quer ser nada, tem o coração de vagabundo, ama Geografia...
Detestava Matemática, dizia ser exata demais para ser de gente. Tinha todas as namoradas que desejava: Estela, Valdívia, Maria Apolônia, Ieda, Conceição, Marli, Maria de Lourdes... Mas, paixão mesmo, por Silvana, tia de Dorian Gray Caldas, chamada Sylvia no romance.
Zé, Zezé, Zé Mauro levava a namorada para o Royal Cinema, os filmes ajudavam nos sonhos. Disse ao amigo Tarcísio da Natividade Medeiros que iria para a Legião Estrangeira. Fácil, bastaria matar uma pessoa. Na Legião seria recebido sem que indagassem quem era e que crime cometera. Tarcísio perguntou, então, quem escolheria para matar. Respondeu que seria irmão José. Jogaria ele torre abaixo.
“Mas e se ele, gordo, não conseguir subir na torre?”
“Eu mato ele com aquele veneno azul da aula de Química, dissolvo na cerveja dele.”
Ah, Zé Mauro, homem de sonhos. Sonhou ser também um coqueiro sob a brisa e o sol. Disse que iria para a Amazônia, cumprir as raízes do seu sangue indígena, ser um deus branco de uma enorme tribo. Iria comer muitos brancos.
Foi campeão de natação, de iole e de sinuca. Em regata, chegou em primeiro lugar, do Cais da Tavares de Lira ao Refoles. E foi aplaudido por torcedores das equipes rivais, Clube Náutico e Sport.
Usava uma tanga minúscula, reclamada por sua irmã adotiva por ser imoral. Certa manhã, foi repreendido por um delegado gordão na Praia de Areia Preta:
“Vá se vestir. Aqui é praia de família.”
Respondeu:
“Venha me pegar.”
O delegado chamou dois soldados, ele entrou nadando mar adentro, continuou gritando:
“Meganha, se for homem venha me pegar.”
O delegado ficou esperando a volta, mas ele nadou para praia mais distante.
Um dia, sentindo-se tristíssimo, decidiu morrer no mar. Deixou as suas roupas na Praia do Meio e nadou, até cansar. Pescadores em jangada o recolheram. Lembraram que ele podia ter sido devorado por um tubarão. Perto da praia, como iam pra Ponta Negra, mandaram que ele voltasse nadando até a Praia do Meio.
Aqui, estudou Medicina por dois anos, e abandonou o curso, porque a cidade era pequena para a sua ansiedade e os seus desejos. Disse que preferia ser modelo no Rio de Janeiro. E lá, foi: pescador, professor de desenho, boxeur, garçom, ator de teatro, cinema e TV e... modelo da Escola Nacional de Belas Artes, onde foi modelado em bronze, mármore, gesso, pintura, e imortalizado em escultura de Bruno Giorgi.
Publicou muitos livros, Zé Mauro. O primeiro deles, Banana Brava, 1942, recebeu apresentação de Câmara Cascudo, que ressaltou sua vida tumultuosa e brava. Cascudo é citado em Doidão, em diálogo travado com o amigo Tarcísio:
“E a nossa Marinha tem submarino?”
“Esse é o ponto nevrálgico. Ninguém sabe. Quem deve saber é Cascudinho. Vamos perguntar a ele?”
“Mas se perguntar ele fica sabendo do seu segredo.”
Toda a ficção de Zé Mauro partia da sua intensa vivência.
Seguiu os irmãos Villas-Bôas em expedições. Conviveu com xavantes, maués, caiapós, tupinambás, carajás. Chegou a entender e falar línguas nativas. Foi trabalhar nas salinas de Macau para escrever o Barro Blanco, 1948. Seu grande sucesso editorial foi Meu Pé de Laranja Lima, 1968. Em todos os livros coloca um toque de ternura, dizendo que a literatura é a arte mais difícil, porque deveria ter todas as cores e nuances da pintura, harmonia da música, a arte do movimento.
Em entrevista, declarou que Natal nunca o abandonou. É o lugar do amor, dos amigos, da infância. Luís G. M. Bezerra, seu vizinho era dos mais queridos, confidente nas visitas anuais a Natal.
Zé Mauro merece ser lembrado, eternamente.

josé mauro de vasconcelos na juventude, em natal (rn)
DUAS ou TRÊS COISAS sobre JOSÉ MAURO


Boxeur, repórter, garçom de boate, agricultor, operário, professor primário, garimpeiro, sertanista, ator de TV e cinema (em filmes como “Floradas na Serra” de 1954, “Mulheres e Milhões” de 1961 e “A Ilha”, de 1963, entre outros), radialista, escritor, pintor e modelo na Escola Nacional de Belas Artes. Seu corpo para sempre fixo em bronzes, mármores, gesso. Há uma escultura sua, como modelo, de Bruno Giorgi, no Monumento à Juventude, na antiga sede do Ministério da Educação. Dessa atividade errante nasceu um solidarismo revoltado e cheio de ternura pela diária exibição do panorama da miséria notória e disfarçada.

Com uma vida nada fácil, JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS ganhou uma bolsa de estudos na Espanha, período em que viajou por vários países da Europa. De volta ao Brasil trabalhou junto aos irmãos Villas-Boas, principalmente explorando a inóspita região do Araguaia. Desta aventura resultou seu livro de estreia, “Banana Brava” (1942), sobre o mundo dos homens dos garimpos. Depois veio “Barro Blanco” (1945), sobre as salinas de Macau, no Rio Grande do Norte, seu primeiro sucesso de crítica. A seguir “Longe da Terra” (1949), “Vazante” (1951), “Arara Vermelha” (1953) e “Arraia de Fogo” (1955). Porém, só com “Rosinha, Minha Canoa” (1962), atingiu o sucesso literário e ganhou fama como escritor, sendo este livro utilizado em curso de Português na Sorbonne, em Paris.

Doidão” (1963), sobre sua adolescência em Natal, “O Garanhão das Praias” (1964), “Coração de Vidro” (1964) e “As Confissões de Frei Abóbora” (1966), antecederam seu maior sucesso popular, “O Meu Pé de Laranja Lima” (1968), que foi adaptado pela antiga Tupi e pela Globo, como telenovelas e também levado ao cinema. Vendeu nos primeiros meses de lançamento, 217 mil exemplares, retratando o choque sofrido na infância com as bruscas mudanças da vida. Dono de uma literatura leve e agradável, José Mauro fez grande sucesso junto ao público. Mesmo assim a importância do seu trabalho não é devidamente reconhecida no Brasil.


Em sua vasta obra, iniciada aos 22 anos de idade e lida em alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, japonês e holandês, entre outras línguas, ainda se destacam “Rua Descalça” (1969), “O Palácio Japonês” (1969), “Farinha Órfã” (1970), “Chuva Crioula” (1972), “O Veleiro de Cristal” (1973), “Vamos Aquecer o Sol” (1974), “A Ceia” (1975), “O Menino Invisível” (1978) e “Kuryala: Capitão e Carajá” (1979)

“Escrevo meus livros em poucos dias. Mas em compensação passo anos ruminando ideias. Escrevo tudo a máquina. Faço um capítulo inteiro e depois é que releio o que escrevi. Escrevo a qualquer hora, de dia ou de noite. Quando estou escrevendo entro em transe. Só paro de bater nas teclas da máquina quando os dedos doem. Só aí percebo quanto trabalhei. Sou um cara capaz de varar dias escrevendo até a exaustão”