janeiro 28, 2015

.......................................................... GISÈLE FREUND: RETRATOS da ALMA

auto-retrato de gisèle freund
Nascida em Berlim, Alemanha, de pais judeus abastados, intelectuais e colecionadores de arte, GISÈLE FREUND (1908 - 2000) se interessou por fotografia desde muito jovem, ao ganhar uma Leica. Com a ascensão do nazismo, fugiu para a capital francesa, praticamente sem um tostão, enquanto sua família escapava para a Inglaterra. Sem os recursos familiares habituais, começou a fotografar como meio de sobrevivência. Em poucos anos, seria conhecida pelos retratos de artistas e intelectuais, além da atuação como fotojornalista, trabalhando para as revistas Life, Paris Match, Picture Post e SUR.

Seus temas variados incluem desde a pobreza britânica à importantes figuras políticas, como, por exemplo, quando fotógrafa oficial de François Mitterrand, acompanhando-o durante as eleições para presidente da França, em 1981. Pioneira no uso da cor, que acreditava permitir uma aproximação realista e sensível à personalidade do retratado, sua primeira exposição, em 1938, inovou ao exibir retratos coloridos. Um deles, o do escritor irlandês James Joyce, estampou a capa da revista Time, em 08 de maio de 1939. Ao contrário da maioria dos fotógrafos de seu tempo, GISÈLE FREUND via as fotografias coloridas como mais próximas da vida, embora também fotografasse em preto e branco.  

Na Paris de 1936, já doutora pela Sorbonne, teve sua tese de conclusão premiada e publicada em livro, “La Photographie en France au Dix-neuvieme Siècle. A invasão nazista na França obrigou GISÈLE FREUND a fugir novamente, desta vez para a Argentina. O destino não foi escolhido aleatoriamente, sua decisão veio através de um convite recebido da escritora argentina Victoria Ocampo, criadora e editora da revista literária SUR (1931-1992), considerada uma das publicações mais importantes da América Latina. Por intermédio de Victoria, a fotógrafa viria a conhecer e fotografar, em Londres, Virginia e Leonard Woolf. A difícil Virgínia Woolf não gostou particularmente da fotógrafa, no entanto, não deixou de presenteá-la com um livro de fotografias de sua tia-avó Júlia Cameron.


Com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, GISÈLE FREUND voltou a França, indo a seguir aos Estados Unidos, em 1947, convidada por Robert Capa para ingressar na agência Magnum, fundada por ele e Henri Cartier-Bresson. Em 1950, na Argentina, fotografa Juan e Evita Perón, que estavam no auge do poder. A Life publicou algumas das fotografias, gerando um incidente diplomático ao revelar para o mundo a fabulosa coleção de joias de Evita.

Convidada para palestrar no México, em 1950, apaixonou-se pela cultura local, ficando dois anos no país, época em que fez amizade com Frida Kahlo e Diego Rivera. Ao tentar retornar aos Estados Unidos, descobriu seu nome incluído na lista negra norte-americana, ao lado de outros artistas e intelectuais considerados comunistas pelo Senador McCarthy, conhecido pela obsessão anticomunista. Demitida da Agência Magnum por causa disso, decidiu morar em Paris. De personalidade forte, descrita como extremamente complicada, chamava os escritores que fotografava de “minhas vítimas”. Às vezes, as vítimas revidavam criticando publicamente seus retratos. Certa vez, numa entrevista, ela questionou: “Explique-me, por que os escritores querem ser fotografados como estrelas e as estrelas como escritores?”.


Com tantas andanças, realizou uma espécie de arquivo visual do star system da cultura, de um tipo de cultura determinada. Sem dúvida, um trabalho importante como testemunho, documento e arte, captando o magnetismo das personalidades retratadas. GISÈLE FREUND dizia ser “o rosto uma máscara, esconde emoções e sentimentos, e o que procuro fotografar está detrás dessa máscara”. Também afirmava não se interessar pela técnica, realizando retratos ao criar um clima de cumplicidade ou quando o modelo - especialmente escritores - não percebia que estava sendo fotografado. Assim realizava imagens encantadoras, talentosas, sem pose, autênticos retratos da alma.

Findado o idílio mexicano, passou o resto da vida em Paris, publicando vários livros. Entre eles, “James Joyce in Paris: His Final Years” (1965), “Le Monde et ma Camera” (1970), “Photographie et Société” (1974) e Memoirs de l' Oeil. Conquistou o Grand Prix National des Arts (França), o primeiro dado a uma mulher. Também foi a primeira fotógrafa a ganhar uma retrospectiva no Museu Nacional de Arte Moderna, na capital francesa, em 1991. Morreu em 2000, aos 91 anos de idade.

 
jean cocteau

paul valèry

virgínia woolf

henri matisse

jean-paul sarte

henri michaux

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colette

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pablo neruda

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james joyce

marcel duchamp

andre malraux

vita sackville-west

janeiro 18, 2015

.................................. DORIS LESSING: o PRAZER da ESCRITA



Ilustrações: 
GIACOMO BALLA


I PARTE
CRÔNICA DE UM ENCONTRO SINGULAR

Londres, 1998. A companheira de moradia compartilhada, Rute M., bela jovem do sul do Brasil, fazia faxinas em antigas casas britânicas para pagar seu curso de inglês. Trabalho duro, que incluía passar aspirador em toda a casa, catar folhas secas nas varandas, esfregar azulejos e os vidros das grandes janelas, deixar banheiros impecáveis, além de lavar copos e pratos em pias geralmente cheias. O árduo ofício feito por imigrantes ilegais tinha vantagens: bem remunerado, gastava-se um máximo de três horas semanais em cada residência e os proprietários raramente estavam presentes, deixando educadamente sanduíches e o pagamento do dia num envelope. Ao gripar-se num inverno impiedoso (ou teria ido passar uns dias em Gales com o namorado escocês? Já não lembro), Rute M. pediu aos amigos para substituí-la na humilde e necessária faina durante esse período de ausência. Repartindo a clientela, fiquei com uma típica casa vitoriana, de tijolinhos aparentes, em Hampstead. Sabia apenas que vivia ali uma idosa e solitária senhora, possivelmente escritora. Rute M. trocava poucas palavras com ela e me advertiu sobre o maior problema do serviço: livros e papéis espalhados por todos os lados, como insetos vivos, e não era permitido tocá-los nem para tirar o pó.

Imaginei uma dessas autoras românticas fracassadas, afetadas e neuróticas. Nem ousei pensar em Iris Murdoch ou Muriel Spark, seria como estar na intimidade com Lygia Fagundes Telles ou Hilda Hilst. Às nove da manhã toquei a campainha, coberto por uma névoa fina e gélida que atravessava o gorro e o casaco de pelica forrado de lã de carneiro. Reconheci imediatamente o par de olhos verdes na porta semiaberta. “Bom dia, senhora. Sou amigo de Rute M. Ela está enferma e eu farei o seu serviço”. “Pobrezinha. O que tem? Algo sério? Precisa de ajuda?”. “Apenas uma virose, logo estará recuperada, Miss Lessing”, respondi, fingindo uma naturalidade impossível, desejoso de beijar as mãos da mulher de olhos profundos e rosto costurado de rugas. “Como sabe que me chamo Miss...Lessing?”, desconfiou. “A correspondência...”, menti, recolhendo cartas e jornais no chão. Ela sorriu, cortês, abrindo a porta de vez.


Usava os cabelos grisalhos quase azulados, em coque; colete azul elegante; macacão branco, masculino. Aos 79 anos, essa mulher imaginativa, que mais parecia avozinha de contos de fadas, um pouco gorda, era uma das escritoras mais célebres da Europa e seu nome referencial para o Prêmio Nobel de Literatura. A sua novela mais famosa, a quase autobiográfica “O Carnê Dourado” (1962), é um êxito mundial, inclusive no Brasil. Lembro quando a Stela Simpson de Tônia Carrero, na telenovela global “Água Viva”, brilhava numa cena lendo-o. DORIS LESSING nasceu na Pérsia, criada na antiga Rodésia, hoje Zimbábue. Conhecida como escritora realista, embora seja autora de cinco novelas de ficção-científica (o ciclo “Canopus in Argus: Archives”). Escreve com segurança e talento sobre o desmoronamento familiar, a permanente crise dos sentimentos humanos e a competição entre casais, retratando a mulher dos nossos dias com lucidez e ferocidade.

Perguntou se eu queria tomar algo. Esqueci-me de responder, hipnotizado com a escada que levava ao primeiro andar, cheia de caixas de livros, e ao passar na cozinha e no salão principal, arregalei os olhos com o número sem fim de livros desordenados. “Gosta de doce de gengibre?”, ofereceu afetuosa. Disse que gostava, mas preferia começar o trabalho, ela não precisava se preocupar, Rute M. havia me explicado o que deveria ser feito. DORIS LESSING sorriu, sorria sempre, e desapareceu escada acima. Limpei o andar térreo por quase uma hora e, ao alvejar os vidros, avistei o jardim selvagem, tomado por plantas belas e descuidadas. O silêncio era suave, não se ouvia música nem passos nem televisão. Ao subir as escadas de madeira escura, deparei-me com uma sala com poucos móveis: uma grande mesa sobrecarregada de livros e papéis, almofadas orientais espalhadas pelo chão, alguns pufes e um sofá baixíssimo, sem pés – como um recanto de espírito hippie. Um gato gordo e velhíssimo saltou de cima de um grosso volume de “Satyricon”, de Petrônio, revelando somente três patas.


Praticamente imóvel, DORIS LESSING escrevia a mão, sentada numa das almofadas. Virou-se para mim, dizendo: “Este é O Magnífico. Tem 18 anos e teve uma pata amputada. Tinha câncer. Está muito idoso, pobrezinho”. O gato olhou-me indiferente, aconchegando-se em cima de outro livro. Poderia ser o gato existencialista da atriz decadente de “Horas Nuas”, de Lygia Fagundes Telles. Tudo era novidade, não sabia se me surpreendia principalmente com a vastidão de livros em vários idiomas, o gato de três patas ou a ágil e serena senhora sentada numa almofada como se fosse adolescente. Por fim, levantou-se, sussurrando: “Isto é a velhice. Entende? A velhice é a dificuldade de se levantar”. Continuei o trabalho, enquanto ela mexia em papéis, perguntando outra vez se eu não queria tomar algo. Quando a cada minuto voltava-me discretamente para olhá-la, os seus olhos subitamente encontravam os meus.

Sorriu lindamente, perguntando: “Como se chama?”. “Antonio”, respondi tirando o pó dos objetos. “Antonio, você gosta de livros, não?”. “Muitíssimo”. Ela sorriu mais uma vez e depois de uma pausa demorada, continuou a conversa sutil e inesperada: “Você chora normalmente?”. ”Somente ao ver filmes que me sensibilizam”. “Eu também nunca choro. É horrível jamais chorar”. “Como joga fora os seus medos?”, ousei perguntar. “Através da literatura. Uma vez passei um ano inteiro sem escrever e vivia de mal humor. A escrita é uma espécie de equilíbrio”. Nos pequenos e intensos olhos verdes, enxerguei a infância dura numa antiga colônia britânica sul-africana, num sítio espaçoso nas montanhas, a fuga aos 14 anos, o casamento aos 18. Logo abandonou o marido e os dois filhos, desprezando o regime racista e machista da colônia. Uma heroína de filmes de aventura. Uma mulher poderosa, lúcida, de prosa personalíssima, caráter forte, cultiva a literatura como espaço de domínio e liberdade pessoal.

Ao terminar o trabalho, aceitei o chá e o doce de gengibre. Boa anfitriã, ela sentou-se ao meu lado na cozinha, colocando a chaleira, as xícaras floridas e o doce entre os livros na mesa rústica. Ela sorria sempre – lembrar-me-ei dela eternamente sorrindo. “Escrevo também. Sou um aprendiz”, confessei. “Imaginei”. “Não consegui nenhum êxito”, afirmei. “Cada livro tem sua própria vida. Todos os livros têm que lutar a princípio contra a negatividade e a indiferença. A maioria de meus livros recebe violentas reações negativas. Na verdade não é importante que a pessoas gostem deles, o importante é o prazer de escrevê-los e a consciência de que a realidade é sempre pior do que o que se escreve”. Durante essa conversação inesquecível, de evidentes e mútuas aspirações de nos entendermos, MISS LESSING me presenteou com o livro “A Proper Marriage” (1954) - no Brasil, “Um Casamento Convencional” -, insistindo que eu levasse um pouco do doce de gengibre para Rute M. Não tive coragem de beijá-la, um abismo sagrado nos separava. “É preciso sobreviver às piores circunstâncias, meu caro”, aconselhou, sábia, enquanto me entregava o envelope com o pagamento da faxina. Não o aceitei, ela insistiu com vigor, não o quis de forma nenhuma. Enfrentando a rua insultada pelo inverno rigoroso, em direção à estação de trem, lágrimas corriam pela face. Na cabeça, o prazer da escrita, a felicidade clandestina e a excitação do encontro revelador com uma criatura resistente, magnânima e indômita. 



II PARTE
A ENTREVISTA
(publicada no caderno CULTURAL do jornal A TARDE e no livro “ARTEPALAVRA – CONVERSAS NO VELHO MUNDO”, 2002)



PALMAS PARA DORIS LESSING

A escritora britânica DORIS LESSING (nascida Doris May Tayler, em Kermanshash, Pérsia, 1919), autora de “O Carnê Dourado” (1962), é lembrada para o Nobel de Literatura, ano após ano, nas últimas três décadas. No mês passado, levou o premio Príncipe Astúrias de Letras, o mais importante galardão literário espanhol, em reconhecimento a “uma das mais indiscutíveis figuras da literatura universal”. Amável, elegante, cabelos brancos atados, profundas rugas que guardam histórias e um olhar hospitaleiro, ela passou tempos difíceis, mas a sua fama como romancista só faz crescer.

Com uma meia centena de livros publicados, o seu percurso privado é tão fascinante como a obra. Viveu a juventude na Rodésia e na África do Sul. Após duas separações matrimoniais, do abandono de dois filhos e de perseguição política ao denunciar o regime racista, mudou-se para Londres em 1949, com pouco dinheiro e um manuscrito, “A Erva Canta / The Grass is Singing”. Aos 31 anos, viu publicada essa história que fala de um assassinato misterioso e um casamento estranho, abrindo caminhos à causa da emancipação feminina no pós-guerra, embora a escritora recuse com determinação o rótulo feminista.

Ao aparecer na sala reservada para a coletiva, no Instituto Britânico de Barcelona, palmas e flashes pipocaram como se estivéssemos diante de uma estrela pop. Ao ser chamada de intelectual por uma jornalista, DORIS LESSING se defendeu: “Sou autodidata. Intelectual não é precisamente a imagem que tenho de minha pessoa.”


ANTONIO NAHUD – A SENHORA SE CONSIDERA UMA ESCRITORA POLITIZADA?

DORIS LESSING – Deixei de ser comunista no início dos anos 1950. Faz muito tempo. Os meus livros são resultados de experiências, mas as pessoas costumam associá-los a fatos políticos. Eu discordo, nunca tive tempo para me ocupar com política. Escrevi muito, cuidei de um filho, tive que lutar para sobreviver, mas nunca houve essa tal de atuação política que me atribuem.

ANTONIO NAHUD – MAS A SUA LITERATURA AJUDOU A CAUSA FEMINISTA...

DORIS LESSING – Nunca fui militante feminista. Não me envolvi com nenhuma associação feminista. Sou uma mulher que escreve, mas nunca escrevi pensando “estou escrevendo como mulher”. Escrevo a partir da experiência feminina, nada mais.

ANTONIO NAHUD – CONCORDA EM SER ENCLAUSURADA NO GUETO DA CHAMADA “LITERATURA FEMININA”?

DORIS LESSING – Claro que não. É uma espécie de literatura que não me interessa. Penso que a boa literatura não é boa por ser escrita por homens ou mulheres, é boa porque tem qualidades. O sexo do autor pouco importa. E eu não suporto a dita literatura feminina.


ANTONIO NAHUD – TAMPOUCO SUPORTA A LITERATURA COMPROMETIDA POLITICAMENTE?

DORIS LESSING – Nunca acreditei na literatura engajada. Desagrada-me. Sempre penso que se produz muita literatura de má qualidade. A escrita tem que ter vida própria em sua essência, nascida de uma mistura de experiências reais. A escrita política, panfletária, não tem nenhuma vida, é oca.

ANTONIO NAHUD – ENTÃO, QUEM LÊ OS SEUS LIVROS COMO LITERATURA COMPROMETIDA E FEMINISTA NÃO A COMPREENDE?

DORIS LESSING – Escrevo com sinceridade. Escrevo, repito, sobre minhas experiências, minha visão de mundo, mesmo quando se trata de narrativas não realistas, como as de ficção-científica. Escrevo claramente, mas percebi há muito tempo que se uma pessoa não tiver experimentado o mesmo que eu, ela não entenderá completamente o que quero dizer.

ANTONIO NAHUD – MAS ONDE ESTÃO SUAS EXPERIENCIAS DE VIDA NA SÉRIE DE FICÇÃO-CIENTÍFICA “CANOPUS EM ARGOS: ARQUIVOS”?

DORIS LESSING – Não existe uma diferença substancial entre realismo e fantasia. É só uma convenção. Pode-se dizer a verdade através da fantasia ou do realismo. Não importa a forma para se transmitir algo. O mais importante é a sinceridade do material escrito.


ANTONIO NAHUD – O SEU ESPÍRITO LIVRE É MUITO ADMIRADO...

DORIS LESSING – Ninguém é livre. A ideia de que se pode ser livre e fazer o que bem entender é ilusão. Uma coisa típica da juventude. Todos nos encontramos, mais cedo ou mais tarde, obrigados a fazer coisas por determinadas situações ou pessoas.

ANTONIO NAHUD – QUASE SEMPRE É ASSOCIADA A “O CARNÊ DOURADO”. NO BRASIL, ESTE ROMANCE CHEGOU A SER UTILIZADO COMO LEITURA FAVORITA DE UM PERSONAGEM LIBERTÁRIO DE TELENOVELA.

DORIS LESSING – Fico feliz que o livro tenha sido útil para tanta gente. Mas estou cansada de sempre falar sobre “O Carnê Dourado”. Já disse tudo o que tinha a dizer sobre ele, afinal escrevi muitos outros livros.

ANTONIO NAHUD – A SENHORA PUBLICOU UM ÚNICO VOLUME DE POESIAS, “FOURTEEN POEMS”. NÃO SE CONSIDERA BOA POETA?

DORIS LESSING – Nem boa nem má, não sou poeta. Não me vejo escrevendo poesia. Continuo interessada em escrever prosa.

ANTONIO NAHUD – QUAL A FUNÇÃO DA SUA LITERATURA?

DORIS LESSING – A mesma de qualquer outra literatura honesta: comentar sobre a vida para as pessoas que estão interessadas em analisar a sua própria vida através da literatura. Não tento mudar o mundo com a literatura. Não é possível. Creio também que escrever me faz mais humana.


ANTONIO NAHUD – O QUE PENSA DO UNIVERSO FEMININO?

DORIS LESSING – O mesmo que penso sobre os homens. Acho piegas o conceito de mulheres como seres mais delicados e generosos. Basta estudar a história para encontramos mulheres terríveis, cruéis. Não enxergo as mulheres de forma maniqueísta, nem os homens. Todos podem ser bons ou maus.

ANTONIO NAHUD – NESSA ÉPOCA TENSA, OS ESCRITORES QUE DÃO O SEU TESTEMUNHO PÚBLICO SOBRE O CONFLITO OCIDENTE VERSUS ORIENTE ESTÃO ULTRAPASSANDO LIMITES?

DORIS LESSING – Não se pode obrigar o escritor a opinar quando não o deseja, mas ele tem todo o direito de dar sua opinião sobre o que tiver vontade. Eu acho o Bush detestável, um homem horrível. Nos Estados Unidos, as bibliotecas e os colégios não recebem a verba de manutenção que necessitam, mas há sempre dinheiro para bombardeios, tanques de guerra etc. Nunca há dinheiro para as coisas verdadeiramente importantes.

ANTONIO NAHUD – DISSE-ME EM 1998, EM SUA CASA LONDRINA DE HAMPSTEAD, QUE “A REALIDADE É SEMPRE PIOR DO QUE O QUE SE ESCREVE”. CONTINUA COM A MESMA OPINIÃO?

DORIS LESSING – Mantenho esta opinião. Basta abrir os olhos para enxergar injustiças, violência, crueldade. Está tudo aí, diante de nossos olhos, mais duro que qualquer história romanceada. A vida é dura para a maioria das pessoas.

ANTONIO NAHUD – A VELHICE NÃO PARECE PREOCUPÁ-LA...

DORIS LESSING – Não é nada do outro mundo. Envelhecemos e morremos. E é tudo. Não se pode fazer nada.


ANTONIO NAHUD – NOS SEUS ENSAIOS SOBRE EDUCAÇÃO, CRIOU A EXPRESSÃO “NOVOS BÁRBAROS”. PODE EXPLICAR O QUE QUER DIZER?

DORIS LESSING – Falo de pessoas que não sentem curiosidade pela história ou pela literatura, por exemplo. São pessoas com muitos anos de estudo e, ainda assim, não se preocupam profundamente com a leitura. É um fenômeno novo que vem abalando a reputação educacional.

ANTONIO NAHUD – QUAL O CAMINHO QUE UM JOVEM ESCRITOR DEVE SEGUIR?

DORIS LESSING – Não existe um caminho concreto. Tudo depende da experiência e das escolhas de cada um. Fundamental é adquirir independência interior, ter fé em seu próprio julgamento e não dar atenção aos modismos literários. Um crítico que nos trata com desprezo pode no futuro dar tapinhas nas nossas costas. Tudo pode mudar da noite para o dia.

ANTONIO NAHUD – TEM REMORSOS POR TER ABANDONADO SEUS FILHOS?

DORIS LESSING – Não abandonei meus filhos. Abandonei um estilo infame de vida. Uma existência racista, enfadonha, horrível e insignificante. Não conseguia continuar vivendo esse tipo de vida inferior. Foi uma questão de sobrevivência.

ANTONIO NAHUD – LANÇOU RECENTEMENTE “THE SWEETEST DREAM”. FALE UM POUCO SOBRE ELE.

DORIS LESSING – Narra um tempo em que se tinha ideologia. Eu mesma tive algumas crenças utópicas. Outros tiveram utopias boas ou más. As utopias transformam os homens em selvagens capazes de matar. O meu livro trata disso.

Barcelona, Espanha, 2001.


DORIS LESSING 
o NOBEL DE LITERATURA em 2007. 
Morreu em 2013, aos 94 anos.