março 30, 2023

................................................ JORNALISMO na CALADA da NOITE

paulo francis
   
 
“Jornalistas perdem qualidade porque não pisam na rua. 
Ficam no trabalho, quentinhos, fazendo-se de bons meninos e cumprindo ordens”.

“Arrume uma boa notícia e não tenha medo de explicá-la. 

Dê ao leitor a chance de se identificar com você ou rejeitá-lo.”

TOM WOLFE
(1930 – 2018. Richmond / EUA)

para Hélio Pólvora e Manoel Leal,
grapiúnas que me ensinaram o bê-á-bá do jornalismo

Ilustrações:
MARK T. SMITH
(1868. Wilmington, Delaware / EUA)


Convidado para um bate-papo sobre jornalismo em uma universidade potiguar, senti um toque de insegurança. Tímido para falar em público, lembrei-me do poeta José Carlos Capinam garantindo estar com TPM (segundo ele, “Tensão Pré-Manifestação”), pouco antes da sua fala no I Encontro Natalense de Escritores (ENE). Eu me vi assim. Dias antes, conversei durante horas, em uma mesa de bar, com veteranos consagrados da imprensa tupiniquim - Zuenir Ventura, Ignácio de Loyola Brandão e Villas-Boas Corrêa -, constatando o histórico sensacional das feras. O que eu poderia acrescentar de novo para estudantes encantados com uma profissão que perdeu o rumo? Quais os frutos e apontamentos? Como traduzir sem amargura a essência do mecanismo jornalístico?

Pensei em iniciar o depoimento com a revista “Veja” numa das mãos, firme, denunciando a imprensa mercenária e inconsequente que deve ser evitada a qualquer custo. Concluí que pegaria pesado, aniquilando esperanças, mesmo com a crença de que alguns dos jovens presentes eram leitores da polêmica coluna “Lado B”, que assinava no “JH-Primeira Edição”. E se mostrasse as antigas e lendárias “O Cruzeiro” e “Realidade”, provando que já existiu vida inteligente na nossa imprensa? Ou talvez contar casos inesperados acontecidos no exercício da profissão, citar influências, relembrar entrevistas que fiz para a “Folha de S. Paulo”, “O Tempo” (MG), “A Tarde” (BA), “Tribuna do Norte” (RN), jornais de Portugal e Espanha. Por fim, apostei no improviso. E tudo correu bem. Lembro aqui uma ou outra narrativa.

O clássico “Todos os Homens do Presidente” me fez despertar a vocação jornalística. Eu o vi na TV, num “Sábado a Noite no Cinema”, e desde então decidi que seria jornalista. A carreira começou em 1983, ainda bem jovem, no “A Região”, um jornal que fez época no sul da Bahia, publicando não só nomes consagrados, como os estreantes, pelos quais o diretor Manoel Leal tinha o maior apreço. Eu passava um tempão diante da máquina de escrever, à espera das palavras certas. 
 
Hélio Pólvora, nosso editor, disse certa vez que eu escrevia com toques de pura literatura, fez elogios. Animado, escrevi sem preconceitos, indomável, por vezes cáustico. Passei por todos os jornais da cidade natal e até como repórter da TV Manchete. Ativo, leitor obsessivo, apoiado em sólida pesquisa. Então passei a me considerar filho do jornalismo literário do norte-americano Tom Wolfe.

Talvez seja possível concluir essa trajetória de quatro décadas, inúmeras publicações e diversos países, dezenas de colunas e crônicas, blogues e redes sociais, como o transbordamento sincero de uma alma cigana. Entre o lúdico, o lúcido e estocadas violentas, procurei usar a palavra pela via da cultura, prestando serviço à divulgação das artes. Fui um paladino, se me permitem a palavra, da difusão das artes nordestinas. No fundo, creio na iconoclastia, na contracultura. Não aprecio jornalismo com Lexotan. David Nasser criticou a construção de Brasília e a inflação que gerou, tornando o presidente Juscelino Kubitschek seu inimigo, e invadiu os subterrâneos da Maçonaria, até então um mistério. Um escândalo! É a minha cara!

A favor do cuspir fogo e também da sensatez, tenho o brilhante Paulo Francis como ícone confesso. O caro jornalista escreveu: “É bom poder ter espaço para resistir aos avanços da horda”. Ele é tão impecável como H. L. Mencken, J. R. Guzzo, Guilherme Fiuza ou Olavo de Carvalho. Fiquei contente ao saber que tinha como filme favorito o mesmo que está no topo da minha lista, o verborrágico “A Malvada” (1950), de Joseph L. Mankiewicz. Como ele, desconfio dos raciocínios temperamentais, afinal nenhuma verdade é absoluta. Entretanto, será que os jornalistas de espírito devem aparentar sobriedade, inteligência ou qualquer outro artifício? Creio que vale escrever como quem mija, sem freios.

Aventureiro, manipulador e manipulado, perseguindo a notícia e o seu conceito de verdade como um detetive, íntimo dos poderosos, solitário, trabalhador sem horário, nômade por dever de ofício, companheiro da noite, o jornalista (ou a imagem que se fazia dele) é das raras ocupações que, no seu estado natural, tinha uma aura romântica para inspirar qualquer fantasia intrépida. Por fim, a visão do jornalista-herói-da-verdade, herdado em grande parte do cinema norte-americano, ficou no passado, não mais existe no nosso “admirável mundo novo”. Há atualmente uma baixa de credibilidade e uma opinião generalizada negativa face ao excesso militante e mercenário da classe jornalística.

A velocidade e facilidade das comunicações, e as alterações da consciência arrebatada do jornalismo introduzidas pela televisão e a internet, provocaram paradoxos. O que tinha sido uma vocação espiritual, ou seja, um destino, tornou-se uma profissão e uma carreira com vantagens: em vez de conhecer e dar a conhecer o mundo ou influenciá-lo, viver à custa de magros privilégios, resultando em denúncia ou louvor infundados. E o jornalista denunciante é tão repugnante como o jornalista anunciante. O que escreve em benefício de outro, é tão repugnante como o que escreve para prejudicar outro.

Na sociedade em que vivemos infelizmente tudo tem seu preço. A prática da imprensa nem sempre merece ser interpretada como atributos sem escrúpulos. O que deve oferecer em primeiro lugar? A conexão direta entre o olhar, a linguagem e a informação. Notícias que não escondam nem o desatino nem a corrupção. Justas, pragmáticas, evitando representar os anseios corrompidos de uma parcela humana que deteriora a sociedade numa alienação progressiva lamentável, num politicamente correto usando e abusando do suposto respeito pelas minorias e pela defesa dos direitos humanos.

A palavra falsa ou patrocinada conduz a massa hipnótica, ignorante e robotizada rumo ao clero da desinformação. A masmorra e as correntes enferrujadas dos carrascos da mídia aprisionam cérebros numa conduta hipócrita e imprópria. Digno seria investir no movimento frutífero, alimentado na narrativa íntegra, onde a motivação do texto se completa do início ao fim, avançando a passos largos ao fato em si. Como ele é. Qual a sua importância. Como se desdobra.

Descortinando as penumbras da desinformação e fornecendo elementos da realidade nua e crua, o jornalismo reproduz um cidadão bem informado, apto a processar sua opinião no meio que está inserido. Eu creio que jamais será um bom jornalista quem não tem o hábito de ler livros (prosa e poesia, ficção e não-ficção). O bom jornalista leu Flaubert, Victor Hugo, Balzac, Dostoievski, Dickens, Tolstoi, Orwell, Guimarães Rosa etc. Integra a sua cultura literária no que escreve. Jamais será um bom jornalista quem não frequenta teatro e museus, quem não ouve música de qualidade ou desconhece obras cinematográficas além do puro entretenimento. A ignorância aparentemente prazerosa mata qualquer talento nato.

O jornalismo vai além da manchete e do escândalo. Ele questiona com a voz da coletividade, investiga com os olhos do bem comum, opina balizado na formação intelectual correta, independente e igualitária. Não merece ser o monstro fabricado nos laboratórios de palavras pagas servindo a pilantras. Não merece ser o texto tosco de militantes esquerdistas, que lacram seus poucos neurônios em uma sabotagem egoísta, reacionária e desoladora, sempre em proveito próprio. O jornalismo de bem passa longe das redações onde fraudadores, ditos profissionais de comunicação, fabricam inverdades, retóricas enfermas, planos escusos de perpetuação de um projeto pessoal oportunista.

Mais que uma profissão sacrificada, o jornalismo é um conjunto de palavras e pensamentos iluminados para o leitor, fecundando notícias esclarecedoras, libertadoras, e acima de tudo, conscientizadoras. A melhor preparação para a função jornalística será jogada ao lixo se não for acompanhada de honestidade no trabalho. Sabemos que a verdade objetiva é dúbia, nunca existiu, e a imparcialidade é praticamente impossível. Conta-se o que se vê. E cada um conta à sua maneira, baseado no que aprendeu e imitou e admirou. Mas o dever fundamental do jornalista não é para com seu empregador, mas para com a sociedade. É para ela que escreve.


Todo jornalista admirável caminha longe da ideologia de palanque e dos favores monetários. Uma crítica excessiva, puramente partidarizada, afasta leitores inteligentes. O jornalista só será respeitável se for indiferente as propinas que corrompem, sendo vetor de discussões robustas, sensações e fluências, numa linguagem de elementos e pertinências bem intencionadas. Ele não necessita de afagos. Basta o realismo social, buscando na solidão das letras a sua própria sorte. Só assim o jornalismo pode ser uma forma de arte.

No jornalismo, é necessário combinar eficientemente clareza e objetividade em uma estrutura com foco narrativo. Não brota jornalismo verdadeiro sem princípios e valores éticos. Não deveria se tornar jornalista quem não tem coragem, quem não combate o bom combate, quem se apega a valores materiais acima de qualquer moral. Não deveria ser jornalista quem se esquiva da polêmica, quem coloca o status acima do bom desempenho do ofício ou aquele que não procura a viabilidade de um povo independente e civilizado.

Cultivo o fruto do aprendizado, pois sei que nada sei e tenho muito a aprender, sempre. Na calada da noite e no silêncio do lar, reafirmo um sentimento de amor e compaixão pela profissão que escolhi como ganha-pão. Atravessei dúvidas e dádivas - como a publicação do livro de entrevistas “ArtePalavra – Conversas no Velho Mundo”, em 2003 -, com o jornalismo pulsando dentro de mim: inquieto, incontrolável, verdadeiro. Apesar de tudo, satisfeito e consciente de que esse ofício maltratado tem relação visceral com meu tempo, meu espírito e com quem por ventura acredita numa admirável imprensa sem armadilhas. Afinal, de jornalismo honesto também se vive. 

2006-2023


 VINTE JORNALISTAS BRASILEIROS NOTÁVEIS

01
ASSIS CHATEAUBRIAND
(1892 – 1968. Umbuzeiro / São Paulo)

02
AUGUSTO NUNES
(1949. Taquaritinga / São Paulo)


03
DAVID NASSER
(1917 – 1980. Jaú / São Paulo)

 
04
FLORISVALDO MATTOS
(1932. Uruçuca / Bahia)


05
GLÓRIA MARIA
(1949 – 2023. Vila Isabel / Rio de Janeiro)


06
GUILHERME FIUZA
(1965. Rio de Janeiro / RJ)


07
GUSTAVO CORÇÃO
(1896 – 1978. Rio de Janeiro / RJ)


08
HÉLIO PÓLVORA
(1928 – 2015. Itabuna / Bahia)


09
J.R. GUZZO
(1943. São Paulo / SP)


10
JOEL SILVEIRA
(1918 – 2007. Lagarto / Sergipe)


11
LEDA NAGLE
(1951. Juiz de Fora / Minas Gerais)


12
MARÍLIA GABRIELA
(1948. Campinas / São Paulo)


13
MARISA RAJA GABAGLIA
(1942 – 2003. São Paulo / SP)


14
MATINAS SUZUKI JR.
(1954. Barretos / São Paulo)


15
OTTO LARA RESENDE
(1922 – 1992. São João del Rei / Minas Gerais)


16
OTTO MARIA CARPEAUX
(1900 – 1978.  Viena / Áustria)


17
PAULO FRANCIS
(1930 – 1997. Rio de Janeiro / RJ)

18
SAMUEL WAINER
(1910 – 1980. Edineţ / Moldávia)


19
SÉRGIO AUGUSTO
(1942. Rio de Janeiro / RJ)


20
SONIA COUTINHO
(1939 – 2013. Itabuna / Bahia)